Thais de Bessa Gontijo de Oliveira

Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel

Pietra Vaz Diógenes da Silva

Fabiana de Menezes Soares

A proteção de dados está prestes a chegar à Constituição. Como amplamente noticiado, em 20 de outubro de 2021 <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/20/senado-inclui-protecao-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental-na-constituicao">o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 17/2019</a>.
Apesar da comemoração e do simbolismo positivo para a sociedade brasileira, trazemos algumas reflexões sobre a potencial precarização deste direito com a reforma constitucional, em relação às duas alterações: a elevação da proteção de dados ao status de direito fundamental; e a centralização, na União, de competências legislativas e materiais quanto à proteção de dados pessoais.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
<h3>Proteção de dados pessoais como direito fundamental: avanço ou retórica? </h3>
Com a aprovação da PEC, a Constituição passa a garantir aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, como direito fundamental, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. No entanto, é importante ressaltar que a lista de direitos fundamentais é longa e alguns direitos dos titulares relacionados à proteção da privacidade já encontravam amparo constitucional.
Isso porque já é direito fundamental de todos nós a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, bem como a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. No entanto, o status constitucional desses direitos não impede problemas que vão desde o recebimento de ligações não autorizadas de robôs de bancos e operadoras de telefonia até a coleta excessiva de dados e as práticas de personalização de anúncios feitas por Big Techs.
Nesse sentido, o obstáculo à proteção dos direitos não seria a falta de norma constitucional, mas sim a falta de conformidade das obrigações regulatórias por parte das plataformas digitais dominantes.
Diante disso, neste artigo, sugerimos que a transformação e a concentração digital são problemas complexos que não podem ser resolvidos apenas com a constitucionalização de um novo direito fundamental à proteção de dados.
Uma forma de abordar esse tipo de problema é recorrer às ferramentas da Legística. Atendendo ao convite de Luzius Mader<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, adotamos uma concepção dinâmica e instrumental do Direito, em que o Estado intervém na sociedade civil para realizar fins cada vez mais diversificados, empregando a legislação como um de seus principais instrumentos de ação. Nesta proposta, a atividade legislativa é realizada com finalidade precisa, destinada a produzir resultados concretos e a contribuir para a solução de problemas efetivos.
Assim, antes de qualquer impulso legislativo, é preciso questionar: qual é o problema que a nova norma deve resolver? É nesse sentido a pergunta que deixamos para o leitor: o que se ganha – ou espera-se ganhar – em termos de proteção com a elevação da proteção de dados à condição de direito fundamental?
Outra reflexão diz respeito à avaliação dos efeitos efetivamente produzidos, mapeando e conhecendo todos os impactados pela PEC. Nota-se que, além dos titulares dos dados, são impactadas todas as empresas brasileiras ou em operação no Brasil, passando pelas pequenas barbearias e padarias, encontrando empresas de inovação (fintechs e startups de diferentes setores), e chegando até os grandes conglomerados dominantes (Big Techs), sem esquecer dos profissionais liberais (como psicólogos e nutricionistas). Todos tratam dados pessoais; no entanto, o volume e o impacto desses tratamentos para os titulares é diferente. Nesse sentido, é possível imputar a todos um mesmo regime regulatório?
Retornamos à ideia de finalidade: se o objetivo é aumentar a proteção ao titular de dados, torná-la um direito fundamental é o melhor caminho? Não seria mais efetivo aprofundar o arcabouço da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm">Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)</a>, criando estratégias mais factíveis de concretização para a Lei, em vez de acrescentar mais um inciso ao artigo 5º da Constituição? Evocando <a href="https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf">as perguntas de Jean-Daniel Delley para a construção de uma boa lei</a> – Qual é o problema a resolver? Quais são os objetivos a atingir? Como alcançar esses objetivos? –, parece-nos que a PEC mais pressiona pequenos atores a alcançar uma conformidade de difícil execução do que de fato reafirma o compromisso brasileiro com a proteção de dados.
E, como qualquer outro programa de conformidade (seja ela tributária, trabalhista ou ambiental), a conformidade de dados custa dinheiro. Definitivamente, empresas brasileiras de inovação não possuem os mesmos recursos que uma Big Tech. No entanto, esses custos parecem ser minimizados pelo legislador, ou talvez desconhecidos por ele, obrigando profissionais, pequenas empresas e o setor de inovação do Brasil a navegarem por mais um microcosmo regulatório complexo e cheio de incertezas. Ao mesmo tempo, porém, as Big Techs continuam operando e <a href="https://www.degruyter.com/document/doi/10.7312/star17015-002/html">conduzindo o debate digital</a>.
Considerando que a coleta e análise de dados são os motores do desenvolvimento tecnológico, <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3022646">qualquer regulação que atinja os dados tem claramente o potencial de entravar o desenvolvimento de novas tecnologias</a> pelas empresas brasileiras, até porque o acesso aos dados ficou mais caro, conforme as inúmeras e rigorosas obrigações legais que qualquer controlador de dados deve seguir, de acordo com a LGPD.
Portanto, a proteção dos dados de titulares envolve muito mais do que constitucionalizar um novo direito fundamental – isso consolida uma preocupação, mas não resolve problemas. Também vai além de estabelecer regulações duras imputando as mesmas obrigações para qualquer agente de tratamento de dados, sem levar em conta o porte e o risco que oferecem aos titulares. Dar o mesmo remédio a todos pode parecer, à primeira vista, uma boa estratégia de efetividade, porém, ao analisar com cautela, percebemos que isso é uma falácia. Ao ajudar a manter o status quo de concentração digital, normas sobre regulação de dados, inclusive a própria PEC 17, contribuem para a precarização da proteção de dados no Brasil.
<h3>Proteção de dados como competência exclusiva da União: segurança jurídica ou esvaziamento? </h3>
Além da inclusão da proteção de dados como direito fundamental, a PEC 17/2019 define as competências administrativas e legislativas no tema. São definidos quais entes federativos têm poder para editar normas sobre proteção de dados pessoais, e então quais têm poderes para ​​organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais (competência material). Nos dois casos, a decisão final do Congresso foi centralizar tudo nas mãos da União.
No projeto original da PEC no Senado, havia apenas centralização da competência legislativa. Naquela oportunidade, os senadores entenderam que não havia racionalidade em permitir que estados e municípios legislassem sobre a matéria, considerando a LGPD vigente. Argumentaram, ainda, pela necessidade de se evitar a fragmentação e minimizar a insegurança jurídica com "<a href="https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/10/20/senado-aprova-pec-que-inclui-protecao-de-dados-como-direito-fundamental.ghtml">dezenas – talvez milhares – de conceitos legais sobre o que é 'dado pessoal' ou sobre quem são os 'agentes de tratamento' sujeitos à norma legal</a>".
Todavia, a convivência de legislação multinível é consequência da adoção do federalismo, especialmente no modelo cooperativo, em que há dezenas de matérias sujeitas à legislação concorrente. Assim, a solução da legislação concorrente resolve exatamente o problema mencionado pelos Senadores, pois à União compete o estabelecimento de normas gerais – caso da LGPD, de alcance nacional –, cabendo aos outros entes regular conforme suas particularidades e, caso a União se omita, suprir lacunas.
Dessa forma, <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219">o federalismo exige o compromisso de colaborar</a> dos agentes no exercício do poder. Nas competências legislativas concorrentes, já não haveria legislações municipais e estaduais que estabelecessem normas gerais nem que afrontassem a LGPD, sob pena de inconstitucionalidade, mas nada impediria que os entes subnacionais legislassem sobre o tema seguindo os parâmetros da LGPD.
Na <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2210757">tramitação na Câmara dos Deputados</a>, uma outra competência privativa da União foi acrescentada: a de "organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei". Trata-se de <a href="https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2010;000885180">competência constitucional material</a>, geral ou de execução, ou seja, que credencia cada ente federativo ao desempenho de diferentes tarefas ou serviços. Talvez esse tenha sido o maior esvaziamento da proteção de dados até agora, pois, para além de legislar, os estados e municípios não poderão sequer fiscalizar o tratamento de dados, mesmo respeitando a  LGPD.
No atual cenário, toda essa competência ficará apenas a cargo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública direta ligado à Presidência, sem autonomia administrativa para desempenhar plenamente as suas atribuições. Preocupa-se, com razão, com o enforcement da LGPD ao se concentrarem na ANPD todas as competências para fiscalizar, supervisionar e sancionar os agentes de tratamento de dados em todo o território brasileiro.
Houve, durante a tramitação, <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7945369&amp;ts=1556212192317&amp;disposition=inline">uma tentativa de ao </a><a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7945369&amp;ts=1556212192317&amp;disposition=inline">menos </a><a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7945369&amp;ts=1556212192317&amp;disposition=inline">prover maior autonomia para a ANPD</a>, transformando-a em entidade reguladora independente. Ainda que isso não resolvesse a questão da necessidade de fiscalização pelos estados e municípios, a pauta da independência técnica, administrativa e orçamentária da ANPD se adequa ao seu <a href="https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/planejamento-estrategico/planejamento-estrategico-2021-2023.pdf">objetivo estratégico de aprimorar as condições para o cumprimento de suas competências legais</a>. A catalisação desse movimento de autonomia certamente seria uma mudança positiva para a proteção de dados com alteração da legislação infraconstitucional; sem o peso simbólico que tem a sua elevação a direito fundamental, mas com um melhor impacto na prática.
<h3>Uma primeira conclusão</h3>
É importante, enfim, que a inclusão da proteção de dados na Constituição seja celebrada com parcimônia. É louvável que o Poder Legislativo esteja atento às novas demandas sociais e que a proteção de dados tenha ganhado nova tônica para guiar a elaboração de novas leis e políticas públicas.
No entanto, a PEC 17/2019, em si, não tem o condão de resolver problemas: de um lado, a constitucionalização do direito fundamental parece não trazer resultados concretos; de outro, há fortes indícios de que a centralização das competências, especialmente de fiscalização, na União poderá levar a um esvaziamento da proteção de dados dos titulares.
É preciso, mais do que nunca, abandonar comemorações prematuras e focar em caminhos de concretude: discutir e implementar medidas para fortalecer o poder de supervisão das autoridades, e estabelecer regulações proporcionais aos riscos das atividades de tratamento desempenhadas, para que a proteção de dados seja um direito respeitado por todos, sem representar um obstáculo ​​à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico nacional.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MADER, Luzius. A avaliação legislativa: uma nova abordagem do Direito. Legislação, n. 1, abr./jun. 1991, p. 39-49.

proteção de dados

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Em prol da retórica, PEC 17/2019 pode reduzir supervisão da LGPD no Brasil

Uma visão cética da constitucionalização da proteção de dados

Em prol da retórica, PEC 17/2019 pode reduzir supervisão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil