Diogo Luís Manganelli de Oliveira

O ano de 2023 começou animado no que se refere às relações internacionais brasileiras, em especial visando a retomada de protagonismo do país no contexto sul-americano. Em visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Argentina, ainda em janeiro, muito se falou do estreitamento da relação comercial entre ambos os países, inclusive com a possível criação de uma moeda única.
Longe de possuir o intuito de substituir o real ou o peso argentino, a moeda – previamente denominada “sur” – atuaria apenas como facilitador para viabilizar a relação entre os países vizinhos, reduzindo custos operacionais ao se utilizar outras moedas estrangeiras e diminuindo a vulnerabilidade das negociações em relação ao contexto comercial<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Se por um lado os impactos econômicos de tal medida são ainda duvidosos e foram recebidos com dúvidas e temores pelo mercado nacional e internacional<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, por outro lado é inegável que a ação reposiciona o Brasil na condição de liderança geográfica na América do Sul e, por que não, na América Latina, fato que é extremamente importante no papel geopolítico que pretende exercer. Igualmente, demonstra ao vizinho portenho a intenção de fortalecer ainda mais os laços comerciais entre os países, o que soa positivo, uma vez que a Argentina é, historicamente, um dos nossos principais parceiros econômicos e representa grande parte das exportações na balança comercial brasileira<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Embora este texto não tenha o objetivo de explorar a viabilidade, benefícios e eficácia econômica de tal proposta, debruça-se sobre uma questão tangente, mas não menos importante: proteção de dados pessoais. E qual relação entre uma coisa e outra? Para responder a este questionamento, é necessário realizar uma digressão até à Europa de meados até fins do século 20.
Embora o próprio conceito de privacidade, como o direito a ser deixado só, tenha tido sua origem nos anais da Harvard Law Review, especificamente no texto de Warreis e Brandeis, não é novidade para ninguém que se interesse pelo tema de privacidade e proteção de dados que o sistema de direitos e deveres que despontam hoje como globais tiveram suas origens estabelecidas no contexto europeu. Em um processo que demorou mais de 40 anos, a evolução legislativa do velho continente foi marcada por substanciais alterações, que vão desde as Resoluções 73 e 74, guias da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>, Convenção 108, Diretiva 95 até, finalmente, a promulgação do Regulamento Europeu de proteção de dados (GDPR) em 2016.
E entre muitos pontos de melhoria e avanços interpretativos sobre direitos e responsabilidades, especialmente quanto à utilização de dados pessoais de cidadãos por organizações públicas e privadas, um contexto regional merece destaque: a evolução em paralelo do Espaço Econômico Europeu (EEE) em 1994<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, culminando na criação da União Europeia e, consequentemente, a necessidade de harmonização cada vez maior entre as normas dos países-membros para o livre fluxo de dados pessoais e negócios.
Ou seja, quanto maior o nível de proximidade comercial entre os Estados-membros, maior a necessidade de se desenvolver regras unificadas sobre a temática que, por sua vez, tragam segurança jurídica aos negócios ao passo em que garantam os direitos e liberdades dos cidadãos. Inclusive, uma das principais diferenças entre a Diretiva 95, superada pelo Regulamento Europeu, é justamente o formato legislativo que cada uma das normas impõe.
Enquanto o primeiro estabelece regras únicas, mas ainda permite um certo grau de autonomia e independência por parte dos Estados na sua aplicação, o segundo é de incidência taxativa, o que significa que deve ser incorporado de maneira integral e sem interpretações substanciais que alterem a sua forma. Isso salvo casos específicos previstos pelo próprio GDPR (por exemplo, nas situações envolvendo dados de pessoas falecidas).
E afinal, o que o contexto europeu de proteção de dados pessoais tem a ver com a possível criação de uma moeda única entre Brasil e Argentina? Cabe reiterar que, assim como ocorreu na Europa, a evolução do contexto econômico regional foi fundamental para o amadurecimento de um sistema robusto de proteção de dados pessoais. Assim, é possível inferir, a título hipotético, que sem a criação do Espaço Econômico Europeu em sua plenitude, como hoje se encontra, provavelmente teríamos um arcabouço legislativo de proteção de dados pessoais distinto, voltado mais especificamente para a preservação de princípios e direitos dos titulares, com fortes diferenças locais entre os Estados-membros, e sem uma visão de integração regional. Logo, o enredo econômico certamente teve um importante impacto na construção legislativa nos moldes como hoje se identifica.
Portanto, embora com objetivos iniciais diversos do verificado na Europa, o avanço de uma homogeneização econômica preliminar no contexto da sul-americano e latino como um todo, pode representar o primeiro passo concreto em direção ao fortalecimento do bloco de países locais. Indiretamente, por sua vez, poderá trazer outras importantes consequências, como um eventual amadurecimento regional em matérias de proteção de dados pessoais por meio do estreitamento comercial.
E o momento não poderia ser mais propício para isso. Enquanto o Brasil segue em seu processo de fortalecimento da Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a>) e intensificação da atuação da sua Autoridade Nacional de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anpd">ANPD</a>), inegavelmente inspiradas no Regulamento Europeu, outros países também caminham em direção a constituir legislações semelhantes, como é o caso do Chile e Peru. Também é possível visualizar movimentos no sentido de se atualizar as legislações já existentes, como é o caso da própria Argentina, tornando-a mais próxima ao que se tem hoje no contexto global – Argentina e Uruguai são os dois únicos países do continente sul-americano que são considerados “adequados” pela Comissão Europeia, órgão da UE que determina os níveis de adequação em matéria de proteção de dados pessoais e simplifica a fluxo internacional.
Atualmente, o sistema de proteção de dados pessoais na América do Sul é descentralizado e, de certa forma, confuso em relação às respectivas legislações na região, poderá ser beneficiado pela iniciativa. Logo, uma aproximação entre as regulamentações, ainda que por fatores externos e indiretos às próprias negociações econômicas já citadas, certamente simplificaria o sistema de transferência regional de dados pessoais, fortalecendo a sua maior harmonização.
O amadurecimento de relações econômicas e comerciais entre os países latino-americanos, especialmente os sul-americanos, assim como ocorreu no cenário europeu, poderá ser um catalizador de iniciativas para que possivelmente tenhamos discussões no sentido de harmonizar as legislações de proteção de dados no continente e, assim, facilitar ainda mais as relações comerciais.
É claro que o contexto econômico, legislativo e social sul-americano e latino-americano é totalmente diverso daquele verificado na Europa, motivo pelo qual não é possível apenas supor que os mesmos resultados já verificados lá sejam reproduzidos aqui. Para um eventual amadurecimento do debate, devem ser consideradas as diversidades e viabilidades locais.
Desta maneira questiona-se: o desenvolvimento de uma harmonização sobre proteção de dados na região deriva, necessariamente, de uma unificação econômica? É muito provável que não. Todavia, é certo que o aumento nas relações comerciais entre os países, fortalecido por iniciativas neste sentido, trará maiores necessidades e desafios nesta seara, consequentemente induzindo maiores discussões e aprofundamentos neste sentido, fortalecendo a maturidade da região no tema.
Além disso, a evolução das discussões para uma harmonização em matéria de proteção de dados pessoais na região permitiria, ainda que indiretamente, o estreitamento e adequação das normativas às realidades locais. Fato este que é importante e salutar ao desenvolvimento do ambiente regulatório em questão, já que ao incorporar previsões constituídas em outros contextos econômicos, culturais e sociais e poucas reflexões, se reduz também a chance de sucesso e incorporação dos valores na sociedade latino-americana. Trata-se de uma possibilidade concreta de se romper com uma nova espécie de colonialismo cultural que hoje se identifica.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64375705">https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64375705</a>. Acesso em 5 de abril, 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/a-reacao-do-mercado-a-embrionaria-moeda-comum-com-a-argentina/">https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/a-reacao-do-mercado-a-embrionaria-moeda-comum-com-a-argentina/</a>. Acesso em 5 de abril, 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/Balanca2022.pdf">https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/Balanca2022.pdf</a>. Acesso em 5 de abril, 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: <a href="https://www.eesc.europa.eu/pt/tags/espaco-economico-europeu">https://www.eesc.europa.eu/pt/tags/espaco-economico-europeu</a>. Acesso em 5 de abril, 2023.

dados lgpd

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Com estreitamento de relações políticas e econômicas na região é necessário se debruçar sobre a questão

Proteção de dados pessoais na América Latina: é possível uma harmonização?

Com estreitamento de relações políticas e econômicas na América Latina é necessário se debruçar sobre a proteção de dados pessoais