Daniel Becker

Maria Eduarda Sampaio

Carlos Eduardo Ferreira de Souza

Em fevereiro de 2022, a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) aprovou o primeiro código de conduta setorial desde a entrada em vigor do Regulamento de Proteção de Dados Europeu (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/gdpr">GDPR</a>). O chamado “Código de Conduta Regulamentar para o Tratamento de Dados Pessoais no Campo de Ensaios Clínicos e Outras Pesquisas Clínicas e Farmacovigilância”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, apresentado pela Associação Espanhola da Indústria Farmacêutica, possui aplicação nacional, mas poderá se tornar uma referência a nível europeu e internacional em razão do pioneirismo na aprovação.
É inegável a importância dos códigos de conduta para os sistemas de autorregulação, estimulados tanto pela legislação de proteção de dados da Europa quanto pela brasileira, com o objetivo de adaptar tais disposições, por vezes genéricas, às particularidades de determinados setores, entre os quais se incluem as visadas áreas de saúde e farmacologia.
O art. 40 do GDPR determina que a Comissão Europeia de Proteção de Dados deve estimular a elaboração de códigos de conduta com o objetivo de contribuir para a correta aplicação da lei, tendo em vista as especificidades dos diversos setores econômicos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Nesse sentido, o art. 50 da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">LGPD</a> também dispõe, no contexto nacional, que controladores e operadores poderão formular regras de boas práticas e governança em privacidade e proteção de dados. Aliás, nos termos do art. 52, §1º, inc. IX, da LGPD, a adoção de políticas de boas práticas e governança será um dos critérios analisados pela <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">ANPD</a> na aplicação de sanções.
O incentivo à elaboração de códigos de boas práticas é um dos elementos de responsividade na regulação de proteção de dados. A Teoria da Regulação Responsiva, apresentada por Ian Ayres e John Braithwaite, busca fugir da dicotomia entre a intensificação da intervenção estatal e a desregulação, oferecendo um modelo de cooperação entre o regulador e o regulado, o que permite a adoção de medidas adaptadas às particularidades do mercado regulado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Observa-se que o GDPR e a LGPD revelam a opção dos legisladores por aspectos da abordagem responsiva na regulação da proteção de dados, optando por uma estratégia de maior accountability para as organizações e diminuição da intervenção estatal<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Os códigos de condutas e políticas de boas práticas são fundamentais, pois favorecem o diálogo entre o agente regulado e o regulador, além de garantir o enforcement da legislação, adequado aos comportamentos dos agentes do setor. O Código de Conduta da Farmaindustria divide-se em três partes: (i) disposições gerais e governança, (ii) protocolos para ensaios clínicos e outras pesquisas, e (iii) protocolo para atuação em farmacovigilância, com enfoque para a investigação de eventos adversos.
Dentre as medidas, é prevista a criação do Órgão de Governo do Código de Conduta (OGCC), um órgão de controle independente que realizará o controle do cumprimento das normas estabelecidas, em consonância com o art. 41 do GDPR, que dispõe sobre o monitoramento dos códigos de conduta. São estabelecidos, ainda, procedimentos de resolução extrajudicial de controvérsias.
Além disso, o OGCC representará a Farmaindustria perante a AEPD no cumprimento das suas atribuições de supervisão e monitoramento do tratamento dos dados pessoais por parte das entidades associadas, que somam mais de uma centena e representam praticamente toda venda de medicamentos prescritos na Espanha. Entre as atribuições do OGCC, estão o atendimento a consultas das entidades associadas em relação ao cumprimento do código, a promoção e execução de atividades de formação direcionadas às entidades associadas e o recebimento de informações das entidades associadas sobre a aplicação do código e seu grau de eficácia.
As medidas são fundamentais, pois reduzem a intervenção externa e não especializada em um ramo de atuação tão técnico e específico como de saúde e farmacologia. De outro lado, permanecem fortalecidos o estímulo ao cumprimento e adequação aos termos do GDPR, ampliando a privacidade e a proteção de dados pessoais do titular. Não há impedimento de controle externo, mas sua necessidade é bastante reduzida, o que gera aumento de economia e eficiência para todas as partes envolvidas, com maior efetividade de tutela dos direitos do titular.
Quanto aos protocolos de ensaios clínicos, o código orienta a elaboração de avaliação de impacto à proteção de dados pessoais antes de iniciar a investigação clínica. Considera-se uma recomendação adequada também em relação à LGPD, que dispõe, no art. 38, sobre o Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais, o qual poderá ser requisitado pela ANPD, inclusive quando há o tratamento de dados pessoais sensíveis, como é o caso de ensaios clínicos.
Também há orientação quanto à disponibilização de informação aos participantes sobre as consequências da sua participação do ponto de vista clínico e os aspectos relativos ao tratamento dos seus dados pessoais, em especial quanto às finalidades do tratamento e a base legal adotada.
O código acerta ao indicar que o tratamento de dados pessoais no bojo da farmacovigilância e de ensaios clínicos possui como base legal o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, dispensando a coleta de consentimento. Tal disposição considera as regulações setoriais que determinam a garantia de qualidade e segurança dos medicamentos, o que exige a realização das atividades ora reguladas. No Brasil, o cumprimento de obrigação legal ou regulatória também deve ser considerada a base aplicável, nos termos do art. 11, II, “a” da LGPD, ante às normas expedidas pela Anvisa a respeito de ensaios clínicos com medicamentos, como a <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/rdc-260-2018.pdf">RDC nº 260</a>, de 21 de dezembro de 2018, e, no caso da farmacovigilância, a <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/rdc-406-2020.pdf">RDC ANVISA nº 406</a>, de 22 de julho de 2020.
Vale complementar, ainda, que o código disponibiliza diversos modelos de comunicação e resposta aos titulares de dados pessoais para orientar as entidades associadas em relação aos aspectos práticos das normas.
Conforme observado, os códigos de conduta também seriam relevantes no Brasil, sobretudo para a construção de um ambiente regulatório de conciliação entre os agentes envolvidos e as normas aplicáveis, tendo em vista a generalidade da LGPD e a especificidade das regulações de cada fatia da indústria. O fortalecimento das medidas de autorregulação diminui a rigidez regulatória e abre espaço para novas soluções adaptadas aos desafios de cada setor. O documento aprovado possui potencial de se tornar um modelo para políticas setoriais de boas práticas em diversos países, inclusive para a indústria farmacêutica brasileira, contribuindo para o fortalecimento de uma cultura de privacidade e proteção de dados no mercado como um todo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> AEPD. Código de Conducta regulador del tratamiento de datos personales em el ámbito de los ensayos clínicos y otras investigaciones clínicas y de la farmacovigilancia. Disponível em: <a href="https://www.aepd.es/es/documento/codigo-conducta-farmaindustria-cc-0007-2019.pdf">https://www.aepd.es/es/documento/codigo-conducta-farmaindustria-cc-0007-2019.pdf</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho (General Data Protection Regulation). Disponível em: <a href="https://gdpr-info.eu/art-40-gdpr/">https://gdpr-info.eu/art-40-gdpr/</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GARCIA. R.C. de C. Proteção de dados pessoais no Brasil: uma análise da Lei nº 13.709/2018 sob a perspectiva da Teoria da Regulação Responsiva. Revista de Direito Setorial e Regulatório, Brasília, v.6, nº 2, out. 2020, p. 48. Disponível em: <a href="https://periodicos.unb.br/index.php/rdsr/article/download/28490/27737/86327">https://periodicos.unb.br/index.php/rdsr/article/download/28490/27737/86327</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> IRANA, A. RGPD v. LGPD: Adoção Estratégica da Abordagem Responsiva na Elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil e do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. Revista Direito, Estado e Telecomunicações, Brasília, v. 12, nº 2, out. 2020, p. 105. Disponível em: <a href="https://periodicos.unb.br/index.php/RDET/article/download/34692/27752">https://periodicos.unb.br/index.php/RDET/article/download/34692/27752</a>.

tubos de ensaio

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JOTA

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