Eliane Moreira

Ana Carolina Haliuc Bragança

A Constituição Federal de 1988 estabelece prioridades de natureza social e ambiental que devem guiar o regime de ordenamento fundiário. Nesse sentido, a destinação de terras públicas e devolutas deve obedecer a critérios hierárquicos que privilegiam territórios indígenas, territórios quilombolas e tradicionais, a implementação do Programa Nacional de Reforma Agrária, a proteção ambiental e outras finalidades de interesse público. Apenas na hipótese de não se apresentar justificativa de ordem pública a indicar a destinação de terras a uma dessas finalidades, admite-se o atendimento a interesses particulares e individuais, inclusive mediante regularização fundiária de ocupações. 
Todavia, temos assistido à composição de políticas públicas fundiárias, engendradas a partir de um arsenal legislativo, administrativo e judicial, que tem caminhado no sentido de privilegiar a destinação de terras públicas a particulares e até mesmo convalidar ocupações ilegais ou não autorizadas pelo Poder Público, o que ao final encoraja em larga medida a grilagem de terras e o desmatamento na Amazônia.  
A regularização fundiária, por meio da concessão de títulos de propriedade a ocupantes de terras públicas, é regulada na esfera federal pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11952.htm">Lei 11.952/2009</a>, com as alterações trazidas pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm">Lei 13.465/2017</a>. Dentre os critérios a serem cumpridos por uma pessoa para obter o título de propriedade, consta a existência de ocupação e exploração econômica da área pública postulada até um determinado marco temporal: 22 de julho de 2008 (artigo 5º, inciso IV). O artigo 38, parágrafo único, da Lei 11.952/2009 admite uma regularização especial, mediante pagamento, para casos de ocupações ocorridas até dezembro de 2011. Não há critério adicional que exija o uso da terra conforme sua função ambiental, de tal sorte que a ocupação ocorrida com a supressão ilegal da floresta ainda assim poderá ensejar a regularização fundiária, o que ao final premia a grilagem e a destruição da mata nativa. 
Em nenhuma hipótese, contudo, admite-se regularização de ocupações posteriores ao marco temporal definido: dezembro de 2011, no mais tardar. Isso significa que qualquer ocupação ou exploração econômica iniciada após esse marco é, necessariamente, ilegal. 
A despeito de tal circunstância, tem ocorrido rotineiramente a inserção de imóveis incidentes sobre áreas públicas não exploradas e ocupadas até tais marcos temporais no Cadastro Ambiental Rural, instituído pela Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal) com objetivos exclusivamente ambientais. Em desvio de finalidade, o CAR tem sido utilizado como documento comprobatório de posse sobre áreas públicas, graças à falta de rigor com que o cadastro tem sido tratado por órgãos ambientais federais e estaduais. Não existem bloqueios automáticos no CAR para tais inscrições, embora a legislação exija comprovação de posse ou propriedade para validação da inserção de um imóvel no sistema (artigo 29, §1º, II, <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm">Lei 12.651/2012</a>). 
Pelo menos quatro circunstâncias se organizam para estruturar este cenário: 1) a permissividade das políticas públicas da regularização fundiária, inclusive pós-2009, em benefício de grileiros e desmatadores; 2) a tolerância de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) em áreas públicas, destinadas ou não; 3) a prática de concessão de crédito para atividades rurais conduzidas em ocupações irregulares de áreas públicas; e 4) a flexibilização da admissão de posse sobre terras públicas por decisões judiciais esparsas que alteram a jurisprudência até então consolidada pelos Tribunais Superiores. 
Veja-se que, a rigor, uma ocupação de terras públicas não constitui posse, em especial se incapaz de gerar efeitos de propiciar a regularização fundiária do imóvel. Nesse sentido, vinha decidindo o STF[1], bem como o STJ[2]. Destaca-se, ainda, o teor das Súmulas 340 do STF e 619 do STJ. Consequentemente, ocupações não poderiam, por si só, ser admitidas, ainda que provadas, como suficientes para embasar a inserção de imóveis no Cadastro Ambiental Rural. A prática administrativa, contudo, tem ignorado tal circunstância, gerando a legitimação de um estado de coisas – ou de um estado de ocupações – que se reflete em uma aparência de legalidade dada ao imóvel inscrito no CAR, conquanto representativo de uma detenção ilegal de terras públicas. 
A inserção de um imóvel no CAR, ainda que se trate de mera ocupação ilegal de áreas públicas, abre para o titular do bem possibilidades de financiamento, inclusive de ordem pública. O Manual de Crédito Rural (Resolução CMN nº 4.883, de 23 de dezembro de 2020), por exemplo, admite a possibilidade de concessão de crédito rural para financiamento de atividades agropecuárias nos municípios que integram o bioma Amazônia mediante mera apresentação pelos interessados de documentos como “requerimento de regularização fundiária, em caso de ocupação em área da União” (item 11.II), ou “protocolo de requerimento de regularização fundiária, emitidos pelo órgão estadual competente” (item 11.III). Isso significa que a concessão de crédito é possível independentemente de a ocupação ser regular ou não, isto é, de ela ensejar efetivamente a regularização fundiária ou não. O grileiro que invadiu terra da União em 2018, por exemplo, desmatou, e fez requerimento de regularização fundiária, inserindo sua pretensão fundiária no Cadastro Ambiental Rural, tem acesso a crédito público para seguir promovendo suas atividades lesivas ao meio ambiente e ao patrimônio público. 
A compreensão de que a inserção de um imóvel constituído a partir de ocupação ilícita de terras públicas no CAR não pode ser admitida, assim como não pode tal imóvel propiciar a concessão de financiamentos, pauta-se fortemente na ideia de que essa ocupação não constitui posse, mas mera detenção, tal como entendida juridicamente. Como fato, essa ocupação é incapaz de produzir efeitos jurídicos, salvo se cumpridos os requisitos estritos da Lei 11.952/2009, sendo esse o entendimento predominante no STJ e STF nos julgados acima expostos.  
Contudo, mais recentemente, surgiram julgados admitindo, para determinadas finalidades, a existência de posse sobre terras públicas. Para esses julgados, embora não exista posse oponível ao Estado-proprietário, haveria posse, por exemplo, para fins de inserção dos imóveis no CAR, ou para obtenção de proteção possessória.  
Exemplificativamente, o STJ declarou no REsp 148304/DF ser possível o reconhecimento de posse em áreas públicas para proteção em face de terceiros distintos do Estado-proprietário. Em sentença proferida em 2019 Ação Civil Pública[3], o Juízo da Vara Agrária da 1ª Região do Pará, com sede na Comarca de Castanhal, no Pará, utilizou esse precedente para entender ser possível a inserção de imóvel no CAR, ainda que incidente a ocupação sobre área pública. Subjacente à decisão, encontra-se a ideia de que a inscrição no CAR não constitui exercício de pretensão de posse contra o Estado-proprietário. Interessante ressaltar que, neste caso, o Juízo determinou o cancelamento da matrícula do Imóvel em decorrência de sua origem fraudulenta; todavia, indeferiu o cancelamento do CAR, o que na prática permitiu a continuidade da atividade agrária num caso de evidente grilagem de terras públicas. 
Nenhum dos julgados citados enfrenta a questão da data da ocupação da terra, ou mesmo da ausência de elementos fundamentais para configuração da posse. Isso significa que reconhecem, ambos, a possibilidade de uma ocupação ilícita e, mais do que isso, criminosa na forma do artigo 20 da Lei n. 4.847/1966, porquanto ocorrida após os marcos temporais dados pela Lei n. 11.952/2009, ser lida como posse e produzir efeitos jurídicos.  
Esses efeitos jurídicos não se resumem à proteção possessória em face de terceiros: com a abertura da possibilidade de inscrição do imóvel no CAR, alimenta-se o Estado-administrador em sua prática de desatrelar as regularizações ambiental e fundiária, admitindo CARs para áreas invadidas, e a prática do Estado-fomentador e do mercado de financiar atividades produtivas em áreas invadidas e desmatadas. São efeitos de premiação para agentes que usurparam patrimônio público e furtaram ao Estado e à coletividade a chance de definir a escorreita destinação das terras públicas: se à proteção ambiental, se à reforma agrária, se à proteção dos povos da floresta, se à exploração econômica mediante concessões florestais, se a projetos agropecuários extensivos a serem licitados.  
Os exemplos citados, ilustram o cenário em que práticas administrativas e judiciais desatentam para seus próprios significados e efeitos subjacentes.  
Em conclusão, observa-se como o Estado contribui para a perpetuação da cultura de invasão de terras públicas, associada a desmatamento na Amazônia. Compreender a complexidade das intrincadas relações entre as distintas práticas legislativas, judiciais, administrativas, e, também socioeconômicas e ambientais é um desafio para operadores do Direito e uma obrigação dos agentes públicos, a fim de evitar-se a tomada de decisão, em qualquer esfera, que contribua para a perda da floresta e para o perecimento de seus povos.
<hr />
[1] ACO 685 e <a class="Hyperlink SCXW105469400 BCX0" href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=3351535" target="_blank" rel="noreferrer noopener">AI 852.804 AgR</a>. 
[2] AgInt no REsp 1448907/DF, REsp 900.159/RJ e AgRg no REsp 1200736/DF. 
[3] n. 0802911-13.2018.8.14.0015.

proteção ambiental

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JOTA

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