Maria Luciana Pereira de Souza

“Surpresa”, esse foi o sentimento coletivo desencadeado pelo Projeto de Lei nº 5.762/2019, apresentado em 30 de outubro de 2019 na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é a prorrogação da entrada em vigor da Lei nº 13.709/2018 (“Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD”) para o dia 15 de agosto de 2022.
Pelo que se percebe dos paupérrimos argumentos de justificação do Projeto de Lei, ao propor o adiamento do início da vigência da LGPD, o Parlamentar não dispensou uma análise aprofundada sob a ótica da garantia e proteção de direitos fundamentais da pessoa natural e do desdobramento legal e econômico que a pretensa medida, se aprovada, acarretará. 
Já no primeiro parágrafo da justificação, depreende-se equívoco interpretativo inaceitável e que pode delimitar equivocadamente o âmbito de aplicação do marco legal, isto porque, ainda que os avanços das Tecnologias da Informação e Comunicação que caracterizam a economia cognitiva e imaterial alicerce da sociedade da informação, tornem o ciberespaço “território de inegável relevância para a delimitação de direitos e deveres”, ao tratar a questão como direito do “internauta brasileiro”, o proponente ignorou o que se depreende da simples leitura do artigo 1º, afinal, a LGPD é uma lei que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive, nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
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E não é só, outro ponto que denota a absoluta falta de cuidado na propositura do PL é configurado pela amostra quantitativa utilizada para substanciar exposição de motivos, afinal, dados<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> recentes do SEBRAE sinalizam que no Brasil há aproximadamente de 16 milhões de empresas, das quais quase 1 milhão, enquadradas como de médio e grande porte, logo, é no mínimo, insipiente que num mercado de tamanha grandeza, se proponha uma medida de grave impacto na seara dos direitos fundamentais da pessoa natural e com inegável desdobramento econômico, consubstanciada em análise de pouco mais de uma centena de questionários.
Não é segredo que a aprovação da Lei 13709/2018 sofreu fortíssima influência do Regulamento Europeu de Proteção de Dados (RGPD), que dentre outras disposições, estabeleceu que só poderão ser realizadas transferências de dados pessoais com o Espaço Econômico Europeu (EEE) os países terceiros que prevejam um nível adequado de proteção dos direitos fundamentais dos titulares dos dados.
Cumpre esclarecer que o fluxo transfronteiriço de dados pessoais, isto é, para países fora do EEE (países terceiros), não exige autorização específica ou, ainda, que o sistema legal de proteção de dados do país terceiro seja idêntico ao da União Europeia, aos países terceiros, como é o caso do Brasil, basta a demonstração de que conferem aos titulares dos dados pessoais, o mesmo nível de proteção dos direitos fundamentais dos titulares dos dados contidos no Regulamento Europeu.
E esse resultado, é exatamente o que alcança a LGPD, afinal, no que pese a forte inspiração, a Lei brasileira não configura mera cópia da norma europeia, tanto que em alguns pontos, a nossa legislação se revela ainda mais protetiva aos direitos dos titulares dos dados, como por exemplo, quando estende o âmbito de aplicação da Lei às pessoas jurídicas de direito público. 
Apesar de a LGPD inserir no contexto legal/empresarial brasileiro uma nova cultura do tratamento de dados pessoais norteada pela transparência, governança e a segurança, é inegável que estes já são pilares intrinsicamente insertos no conjunto de prerrogativas que compõem a função social da empresa nos termos do art. 5º, inciso XXIII, da CF/88.
Como se sabe, o exercício atividade econômica organizada também deve cumprir uma função social específica, a qual, segundo Fábio Ulhoa Coelho<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>, estará satisfeita quando houver dentre outros resultados, a contribuição para o desenvolvimento econômico, social e cultural do entorno, adoção de práticas sustentáveis e respeito aos direitos dos consumidores, assim, pretender a concessão do prazo total de 04 anos para atender o que já é esperado pelo ordenamento pátrio, deflagra um cenário de insegurança jurídica e desconfiança internacional.
Também não se pode deixar de considerar que recentemente o Brasil protagonizou de um dos maiores escândalos mundiais de corrupção de todos os tempos, nossas Instituições passaram a despertar desconfiança por toda parte, a crise econômica é sentida por praticamente todos os brasileiros, especialmente, os quase 13 milhões de desempregados, donde se pode concluir sem qualquer dificuldade que o afastamento, ainda que temporário, de um movimento global balizado por boas práticas e segurança nas operações com dados pessoais, pode ser interpretado pelo mercado internacional como um descaso aos direitos fundamentais da pessoa natural, trazendo consigo, ainda, nefasto efeito econômico, que diante do panorama interno, pode agravar ainda mais a crise que assola o nosso País.
Conforme se extrai do Artigo 46 da Lei, o que se espera das pessoas naturais e jurídicas que tratam dados pessoais com fins econômicos, é basicamente que adotem medidas de segurança - técnicas e administrativas - aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito, observando-se, ainda, a boa fé e os princípios elencados no Artigo 6º.
Ainda no rebate da singelíssima justificação do PL, ainda que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) não esteja em plena atividade, seus membros já começaram a ser nomeados, e quanto aos nomeados até o presente momento, cumpre reconhecer que são detentores de inegável expertise técnica, o que contribuirá para que no exercício das funções que competem à ANPD, o Brasil passe a integrar a tropa de elite dos Estados Democráticos que reconhecem a relevância do tema e conferem direitos e sólidas garantias aos titulares dos dados pessoais.
Também merece destaque, a experiência europeia, vez que, nem mesmo lá, diante de manifesto contexto social de maturidade e valorização de uma cultura de proteção dos dados pessoais, cujo tema era oficialmente regulado desde a Diretiva no 95/46/CE, estudo<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> divulgado pela Trustarc aponta que em 25 de maio de 2018 (data da entrada em vigor do RGPD), apenas 20% das empresas já haviam atingido a conformidade legal. 
Por fim, a questão é tão prejudicial ao interesse de TODAS as partes – pessoas naturais titulares dos dados e pessoas naturais e/ou jurídicas que tratam dados pessoais - que até o momento da finalização do presente texto, a consulta pública<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> disponibilizada na página eletrônica do Senado, contava com pouco mais de 1000 participações, sendo que destas, 68% (sessenta e oito por cento) sinalizavam a absoluta discordância com a proposta de dilação do início do prazo de vigência.
Assim, ainda que seja atraente a vantagem na concessão de mais 24 (vinte e quatro) meses para o início da vigência para as pessoas físicas e/ou jurídicas que necessitam se adequar, estas também serão as pessoas assombradas pela perda de competitividade e pelo cerceamento de operações previsto no RGPD (sem prejuízo do que outros países já legislaram nos mesmos moldes, exatamente para se manter em nível adequado de proteção dos direitos fundamentais dos titulares dos dados), logo, é possível concluir que a medida, se aprovada, representa um verdadeiro “perde x perde” para o Brasil!
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Disponível em <a href="https://datasebrae.com.br/totaldeempresas">https://datasebrae.com.br/totaldeempresas</a>
<a style="font-weight: bold;" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 37.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Disponível em <a href="https://www.trustarc.com/press/20-of-companies-report-being-gdpr-compliant-post-may-25-deadline/">https://www.trustarc.com/press/20-of-companies-report-being-gdpr-compliant-post-may-25-deadline/</a>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Disponível em <a href="https://forms.camara.leg.br/ex/enquetes/2227704/resultado">https://forms.camara.leg.br/ex/enquetes/2227704/resultado</a>
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JOTA

Em consulta pública, 68% discordam da proposta de dilação do início do prazo de vigência

Prorrogação da LGPD: a quem interessa medida que instrumentaliza ‘perde x perde’?

Em consulta pública, 68% discordam da proposta de dilação do início do prazo de vigência