Daniela Guarita Jambor

Guillermo Glassman

A regulamentação atual dos procedimentos de registro de novos alimentos e ingredientes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anvisa">Anvisa</a>) foi desenvolvida no final da década de 1990<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> como resposta ao intenso fluxo de pedidos relativos a produtos com características de composição, apresentação e efeitos na saúde que não estavam adequadamente regulados pelas normas de alimentos até então vigentes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Passados mais de 20 anos dessa onda regulatória, as empresas do setor têm apontado a necessidade de modernização dessas normas, o que vem sendo reconhecido pela própria Anvisa, que incluiu a matéria em sua agenda regulatória de 2017/2020 e a manteve na agenda de 2021/2023<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Agora, esse movimento de modernização regulatório tomou contornos muito mais concretos com a abertura da <a href="http://antigo.anvisa.gov.br/consultas-publicas#/visualizar/504080">Consulta Pública 1.158/23</a> (CP 1.158/23)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> para contribuições sobre o tema entre 3 de maio e 31 de julho: trata-se de momento fundamental para a definições dos contornos regulatórios que facilitarão a inovação no setor e a manutenção da competitividade dos produtores brasileiros.
O mercado e a Anvisa convergem no sentido de que a atual a RDC 16/99 (Regulamento Técnico de Procedimentos para Registro de Alimentos e ou Novos Ingredientes) traz insegurança jurídica e dificulta a inovação do setor, possuindo lacunas que não permitem tratamento proporcional ao risco dos respectivos produtos. A modernização desse marco regulatório está tramitando na Anvisa desde 2019, mediante diálogos com os agentes produtivos, o que culminou na publicação de Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) em fevereiro deste ano<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. O objetivo geral da Anvisa é modernizar a regulação pré-mercado, garantindo tratamento proporcional ao risco à saúde em face da natureza, composição, histórico e condições de uso destes produtos, bem como aumentar a convergência internacional e eficiência da atuação da Anvisa (Voto 88/2023/SEI/DIRE2/Anvisa).
Entretanto, apesar dessa modernização regulatória estar em trâmite já há vários anos, existem ainda aspectos fundamentais que pedem reflexão crítica atenta no âmbito da CP 1.158/23: (1) escolha de autoridades estrangeiras para a convergência regulatória; (2) divisão de competências com o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA); (3) publicização de consultas sobre a classificação dos Produtos; e (4) soluções não normativas para apoiar o cumprimento de requisitos normativos e conferir maior transparência e eficiência ao processo de avaliação e regularização dos Produtos.
Com relação à convergência regulatória internacional, a Anvisa considerou União Europeia, Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos, expressamente escolhidos por disponibilidade das informações e dos documentos na língua inglesa nos sítios eletrônicos das Autoridades Reguladoras (Voto 88/2023/SEI/DIRE2/Anvisa). Ocorre que a escolha das jurisdições de referência não pode ter como critério apenas a facilidade em localizar normas em websites e documentos em inglês. É preciso considerar, além disso, os desafios próprios de países com as dimensões e a diversidade socioeconômica brasileira.
Quanto ao diálogo interagências com o MAPA, a proposta da minuta objeto da CP 1.158/23 é de que os produtos que estejam sob competência do MAPA sejam incluídos em instrução normativa da Anvisa apenas após a anuência do MAPA. Ocorre que essa fórmula proposta mantém amplo espectro de indefinição, uma vez que não há uma identificação adequada dos critérios para dita anuência do MAPA nem uma clara divisão de tarefas e competências entre os órgãos nas hipóteses de atuação conjunta. Permanece, portanto, a dificuldade do mercado para lidar com essa regulação sobreposta (especialmente, por exemplo, no caso dos alimentos plant-based).
Quanto à publicização de consultas prévias à Anvisa para verificar se um produto está sob sua jurisdição regulatória e outros aspectos específicos da rua regulação permanece, também, prejudicial incerteza. Isso porque, nos termos da minuta objeto da CP 1.158/23 a Anvisa poderia rever o posicionamento publicizado a qualquer tempo (conforme consta do art. 66, §2º, da minuta de RDC). E, além disso, outros aspectos fundamentais para a segurança jurídica do funcionamento desse mercado restam indefinidas ou não suficientemente esclarecidos: a publicização da resposta à consulta vincularia terceiros, que não o consulente? No caso de inovações tecnológicas e comerciais, dada a necessidade de publicização das respostas às consultas, como evitar que os concorrentes antecipem as movimentações do consulente? Criaremos categorias de alimentos “referência-genérico” como existe no mercado farmacêutico?
Finalmente, quanto ao uso de soluções não normativas (manuais, guias e roteiros) para auxiliar no cumprimento dos requisitos normativos e conferir maior transparência e eficiência no processo de análise e regularização, a Anvisa reconhece (acertadamente) que os avanços tecnológicos são inúmeros e a velocidade de atualização dos atos normativos não acompanha tais avanços. A solução apresentada para tal desafio seria a adoção de soluções não normativas, de tramitação e publicação mais ágeis. Entretanto, tais documentos não normativos ficam também “presos no tempo” e, na prática, são adotados pela Agência como se tivessem força impositiva. Melhor seria que a Anvisa efetivamente os considerasse “solução não normativa”, reconhecendo a eles apenas e tão somente o caráter de orientação, permitindo, dessa forma, a análise de inovações diretamente a partir dos seus elementos inovadores. Flexibilizar o posicionamento tão tradicional da Gerência-Geral de Alimentos será, entretanto, um desafio, mas ele precisa ser enfrentado.
Como visto, ainda é cedo para afirmar, categoricamente, se a Anvisa fez ou não a sua “lição de casa” ao propor a modernização do marco regulatório dos alimentos e novos ingredientes. No entanto, a abertura da CP 1.158/23 merece, por si só, elogios, uma vez que Agência finalmente “destravou” esse processo de inovação regulatória cuja necessidade já é amplamente reconhecida há anos. Resta, agora, que o mercado participe ativamente dessa etapa tão importante e torcer para que finalmente essa modernização ocorra até o final do ano, momento em que a Agenda Regulatória se “encerra”.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Resolução nº 16, de 30 de abril de 1999, referente aos procedimentos de registro de novos alimentos e ingredientes; Resolução nº 17, de 30 de abril de 1999, que estabelece as diretrizes para avaliação de risco e de segurança de alimentos; Resolução nº 18, de 30 de abril de 1999, relativa às diretrizes básicas de análise e comprovação de propriedades funcionais e ou de saúde alegadas na rotulagem de alimentos; Resolução nº 19, de 30 de abril de 1999, que estabelece os procedimentos para registro de alimentos com alegações de propriedades funcionais e ou de saúde em sua rotulagem; e Portaria nº 15, de 30 de abril de 1999, que institui a Comissão de Assessoramento Tecno-científico em Alimentos Funcionais e Novos alimentos (CTCAF).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ANVISA. Novos alimentos e ingredientes: Documento de base para discussão regulatória (julho/2020), p. 6. Disponível em: &lt; http://antigo.anvisa.gov.br/documents/33880/5833856/Documento+de+base+sobre+novos+alimentos/ed783550-fc93-42c2-91cc-ccbd02c36fc9&gt;. Acesso em 30/04/2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ANVISA. Relatório de Conclusão da Agenda Regulatória 2017/2020. Disponível em: &lt; https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/regulamentacao/agenda-regulatoria/2017-2020/arquivos/relatorio_conclusao_ar_2017_2020_finalizado.pdf&gt;. Acesso em 30/04/2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ANVISA. Consulta Pública n° 1.158, de 24 de abril de 2023 – DOU de 26/04/2023. Disponível em: &lt; http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6582266/CONSULTA+PUBLICA+N+1158+GGALI.pdf/ab969721-11ed-420d-97a3-bb488ef821c5&gt;. Acesso em 30/04/2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ANVISA. Relatório de Análise de Impacto Regulatório sobre a modernização do marco regulatório, fluxos e procedimentos para novos alimentos e novos ingredientes, Brasília, 2022. Disponível em: &lt; http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6582266/Relat%C3%B3rio+de+AIR+Novos+Alimentos.pdf/fdc2f762-15a9-4811-a9ea-cc92add0ddce&gt;. Acesso em 30/04/2022.

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JOTA

Proposta de modernização do marco regulatório de novos alimentos

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