Lucas de Souza Prates

Emilio Peluso Neder Meyer

O Congresso Nacional tem uma atual legislatura integrada por uma sólida <a href="https://www.estadao.com.br/politica/novo-congresso-assume-na-quarta-mais-conservador-e-empoderado-veja-o-perfil-dos-parlamentares/">configuração conservadora</a>, composta por muitos parlamentares aliados ou simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro. O movimento político originado a partir do protagonismo do ex-presidente, o <a href="https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64234271">bolsonarismo</a>, estabeleceu-se como uma forte <a href="https://www.conjur.com.br/2022-out-03/bolsonarismo-profissionaliza-aumenta-presenca-congresso">força política</a> no cenário brasileiro e nos canais institucionais. Diante desse cenário, já era previsível que surgissem movimentos de <a href="https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/bancada-conservadora-congresso-brecar-pautas-progressistas-governo-lula/">resistência parlamentar</a> com relação a pautas progressistas e democráticas, assim como era possível antever tentativas de reinterpretação do que ocorreu durante a gestão 2019-2022.
Essa conjuntura explica os frequentes movimentos de reação dentro do Poder Legislativo diante das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), como observado nos casos das propostas legislativas que <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/1006272-comissao-aprova-projeto-que-proibe-o-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo/">vedam o casamento homoafetivo</a>, <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/14/senado-tera-pec-para-tornar-crime-porte-de-drogas-em-qualquer-quantidade-anuncia-pacheco">criminalizam</a><a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/14/senado-tera-pec-para-tornar-crime-porte-de-drogas-em-qualquer-quantidade-anuncia-pacheco"> o porte de drogas em qualquer quantidade</a> e <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lira-diz-que-nao-vai-barrar-pec-que-limita-decisoes-monocraticas-do-stf/">limitam as decisões monocráticas na corte</a>. Ocorre que essa força política conservadora está em constante articulação na tentativa de controlar a narrativa do recente histórico do bolsonarismo, visando, principalmente, amenizar os crimes cometidos contra as instituições democráticas.
Desde quando se percebeu o arrefecimento das possibilidades de reeleição de Bolsonaro, parte do quadro político já <a href="https://www.conjur.com.br/2022-set-26/anistia-bolsonaro-juridicamente-incerta-seria-negativa-brasil">ensaiava</a> a estratégia de perdão para o ex-presidente. As principais ferramentas levantadas foram aquelas que possibilitariam extinguir a eventual punibilidade penal, como a anistia, graça e indulto. O ex-presidente Michel Temer, por exemplo, invocou o instituto da anistia para defender a busca de um “<a href="https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/09/22/temer-defende-anistia-do-passado-para-a-harmonia-do-pais.ghtml">pacto de harmonia nacional</a>” entre governadores, parlamentares, presidente e organizações da sociedade civil.
Jair Bolsonaro, em seu governo, já havia se utilizado do <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/veja-a-integra-do-decreto-de-bolsonaro-que-perdoa-daniel-silveira/">indulto</a> para o ex-deputado federal Daniel Silveira, que havia sido condenado criminalmente por tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer Poder da União ou dos estados (<a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6207102">Ação Penal 1.044/DF</a>). Sua posição apresentava uma estratégia de ampliar a campanha de <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/868884-oposicao-faz-protesto-em-plenario-contra-indulto-a-pena-de-daniel-silveira/">questionamento do Poder Judiciário</a>. O indulto foi <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=507050&amp;ori=1">derrubado</a> pelo STF sob o argumento de que houve desvio de finalidade na norma editada.
Com relação à anistia, é importante destacar que o instituto extingue a punibilidade sobre determinado ato (art. 107, inc. II, Código Penal). A competência para concessão de tal medida é do Congresso Nacional (art. 48, inc. VIII, da Constituição de 1988). Conforme analisa Cezar Roberto Bitencourt, a anistia representa uma forma de atenuar os rigores excessivos das sanções penais, configurando-se como uma espécie de "esquecimento jurídico" do ato tipificado como crime. Uma vez concedida, ela não pode ser revogada (Tratado de Direito Penal: Parte Geral [arts. 1º a 120] 29. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 464). A anistia já foi protagonista de debates institucionais significativos no Brasil em momentos-chave, como no caso da ADPF 153. Diante desse histórico, a indagação que surge é: de que forma a anistia tem sido abordada no cenário público em 2023?
Ao utilizar o termo “anistia” nas ferramentas de busca de propostas legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado, com filtro temporal do ano de 2023, foi possível mapear 9 projetos de lei (3 propostas do Senado: <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158551">PL 3338/2023</a>, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158530">PL 3316/2023</a>, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160575">PL 5064/2023</a> e 6 da Câmara: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2358548">PL 2162/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2363322">PL 2671/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2364606">PL 2768/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372008">PL 3312/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372030">PL 3317/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372278">PL 3352/2023</a>). Os projetos de leis (PL’s) são orientados por dois eixos centrais, nos quais se busca: (1) perdoar crimes eleitorais das eleições de 2022; e, (2) perdoar as manifestações antidemocráticas e golpistas do final de 2022 até 8 de janeiro de 2023.
Os PLs demonstram backlash em relação a decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do STF. No TSE, <a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-11/ministro-do-tse-condena-bolsonaro-inelegibilidade-pela-terceira-vez">as condenações de Bolsonaro</a> por abuso de poder e uso eleitoreiro do aparato estatal geraram inelegibilidades do ex-presidente e, em um dos casos, do ex-ministro Braga Netto por 8 anos: até o momento, são 3 condenações. No STF, sob a condução do ministro relator Alexandre de Moraes, estão ocorrendo diversas condenações pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático (art. 359-L) e golpe de Estado (art. 359-M). No mesmo sentido, o <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/relatorio-da-cpmi-do-8-de-janeiro-institucionalizacao-das-respostas-e-atuacao-do-stf-12112023">Relatório Final</a> da CPMI dos Atos de 8 de janeiro de 2023 pede o indiciamento de Bolsonaro ao lado de militares, agentes públicos, agentes de segurança, parlamentares e outros indivíduos.
O panorama geral desse backlash do Legislativo demonstra como as vias institucionais oficiais estão tentando instrumentalizar a anistia para manter a relevância de Bolsonaro e possibilitar a oxigenação do bolsonarismo no espaço público e permitir maior espaço para o revisionismo e negacionismo dos atos antidemocráticos.
O <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9484858&amp;ts=1699358631387&amp;disposition=inline&amp;_gl=1*1j495vu*_ga*MTM5MzcwMzczNy4xNjkzNDM1OTQz*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5OTQwMTY4MS4zMy4xLjE2OTk0MDE2ODUuMC4wLjA.">PL 5064/2023</a>, apresentado pelo senador e ex-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), argumenta que os órgãos de persecução penal não estão conseguindo individualizar as condutas dos “manifestantes” de 8 de janeiro, razão pela qual deve-se buscar anistiar todos. O <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2358548">PL 2162/2023</a> segue o mesmo teor ao pretender afastar os “manifestantes” desde de 30 de outubro de 2022 até a vigência da lei, se eventualmente aprovada.
Com argumentos semelhantes, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2364606">PL 2768/2023</a> busca a anistia do ex-parlamentar Daniel Silveira, que, conforme já salientado, havia sido beneficiado pelo indulto de Bolsonaro, o qual foi derrubado pelo STF. Já os <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158530">PL 3316/2023</a>, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160575">PL 5064/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372008">PL 3312/2023</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372030">PL 3317/2023</a> e <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372278">PL 3352/2023</a> buscam anistiar os crimes eleitorais cometidos na busca de uma suposta “pacificação social” da sociedade brasileira, em uma clara tentativa de apagar as condenações de Jair Bolsonaro no TSE. Já o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2363322">PL 2671/2023</a> parece responder à decisão do TSE que estabeleceu a inelegibilidade do ex-deputado federal Deltan Dallagnol.
Dado o contexto, as anistias discutidas no Congresso Nacional pretendem provocar um esquecimento manipulado e abusivo para deturpar a memória dos fatos e possibilitar a gestação de novos projetos políticos do bolsonarismo e do radicalismo. Fica evidente que as anistias dos PLs mencionados estão desvirtuando os ideais de justiça e reparação institucional. Como expõe a professora <a href="https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64034272">Juliana Alvim</a>, não existem motivos contextuais para criação de anistia para os atos de Bolsonaro. Pode-se adicionar que não existem motivos legítimos para anistiar as medidas do bolsonarismo.
É importante destacar que os projetos de lei apresentam narrativas com retóricas de esquecimento e distorções da realidade, além de inflamarem ações antidemocráticas como ataques ao Poder Judiciário. Na verdade, fica claro que são medidas de institucionalização do revisionismo e do negacionismo. Elas contribuem para o processo de degradação da democracia estabelecido pela Constituição de 1988.
Extinguir a punibilidade de crimes que atentaram contra o Estado brasileiro e suas instituições democráticas é atentar contra os próprios fundamentos da existência do Estado democrático de Direito. Ao contrário do que objetivam os PLs, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/bolsonarismo-e-violencia-politica-uma-questao-de-responsabilizacao-11012023">responsabilizar</a> é o caminho para resiliência das instituições, não a anistia.

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JOTA

Propostas na Câmara e no Senado são medidas de institucionalização do revisionismo e do negacionismo

Projetos de lei buscam anistiar inconstitucionalidades do bolsonarismo

Projetos de Lei buscam valer-se de força política que apoiadores do ex-presidente para anistiar ações do bolsonarismo