Matheus Ferri

Rodrigo Cuéllar Bockmann Moreira

Ainda que pouco se fale sobre, a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#anexo72">Convenção 169 da OIT</a> é de inquestionável relevância jurídica. Ratificada pelo Brasil em julho de 2002, presta-se a tutelar direitos de povos indígenas e tribais, prevendo mecanismos alternativos para que as necessidades e opiniões de tais povos sejam levadas em conta nos processos de tomada de decisão dos Estados signatários. Trata-se, principalmente, da consulta prévia a tais povos, mediante procedimentos próprios, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas que possam lhes afetar diretamente. 
 É o que se passa, a título de exemplo, em licenciamentos de grandes empreendimentos, especialmente obras de infraestrutura. Nestes casos, não é rara a judicialização por questões concernentes à consulta prévia aqui tratada.
 Com efeito, é pertinente delimitar o âmbito de aplicação da Convenção, especialmente no que toca a quem se destina. Afinal, se de um lado a norma se presta a objetivos da maior significância − alinhados a valores constitucionais e direitos humanos − de outro, sua incidência indiscriminada pode, em tese e além de subverter seu propósito, afetar negativamente projetos que trazem expressivos ganhos socioeconômicos à coletividade, indo de encontro ao art. 3º, II da Constituição Federal. 
 Antes da análise, é essencial estabelecer algumas premissas importantes sobre a Convenção, a partir de seus próprios preceitos:
i) a convenção se aplica a povos tribais cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores, regidos total ou parcialmente por seus costumes ou legislações especiais; ou povos considerados indígenas e que conservam todas ou parte de suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas. Um critério central para a definição de ambos é a consciência de sua identidade por parte dos membros (art. 1º da Convenção);
ii) a aplicação da Convenção dar-se-á mediante procedimentos apropriados, especialmente através das instituições representativas dos interessados e “deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas” (art. 6º da Convenção).
 Assim, tem-se dois tipos de destinatários que, para além do autoconhecimento como povos tribais ou indígenas, vivem sob condições que os peculiarizam do restante da população, a ensejar sua proteção reforçada pelo ordenamento. A partir da literalidade da norma, infere-se que sua aplicação é bastante restrita. Não obstante, analisando-se algumas normativas e manifestações de órgãos e entidades do Poder Público, percebe-se a pretensão de alargamento da incidência da Convenção a quaisquer comunidades tradicionais. 
 Sobre o assunto, a Defensoria Pública já se manifestou no sentido de que, embora as normas de direito internacional mencionem apenas os povos tribais ou originários, as disposições da Convenção 169 seriam aplicáveis a “todos os povos” que vivem sob condições peculiares e regidos total ou parcialmente por seus próprios costumes (JFPR, ACP 0419645020214047000, mov. 60). Já a Resolução 230/2021, do MPF, milita pela aplicação da Convenção 169 a “povos e comunidades tradicionais”, sugerindo a nulidade de processos e procedimentos que não observem referida consulta, por meio de protocolos elaborados pelos grupos afetados. 
 É possível cogitar que esta pretendida equiparação entre povos tribais/indígenas e povos/comunidades tradicionais se deva, em parte, ao <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm">Decreto 6.040/2007</a>, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, cujo art. 3º qualifica povos e comunidades tradicionais a partir de critérios semelhantes aos da Convenção. Não obstante, o Decreto não equipara os povos e comunidades tradicionais aos povos tribais e indígenas destinatários da Convenção.
 Importa consignar que os povos e comunidades tradicionais têm direito de intervir nos processos e procedimentos por meio de mecanismos padronizados, como a audiência pública e o direto de petição. Ademais, os impactos de quaisquer empreendimentos em relação a tais povos e comunidades serão obrigatoriamente considerados no licenciamento ambiental, como se dá com outras populações afetadas. Objetivamente, defender que sejam ouvidos mediante protocolo próprio, ao seu tempo e modo (como há de ser em se trantado de povos tribais ou indígenas) não parece se coadunar à Convenção 169, que nem sequer incide em tais casos.
 Nestas circunstâncias, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ibama">Ibama</a> aprovou a Orientação Jurídica Normativa 56/2022, que traça com precisão o conceito de povos tribais para fins de aplicação da Convenção 169, a partir de análise do histórico e documentos de sua edição e de precedente do STF. A Orientação Normativa é bastante assertiva na distinção entre os povos tribais referenciados na Convenção e povos e comunidades tradicionais indicados no Decreto 6.040/2007 – cujos direitos são resguardados não por aquela, mas por instrumentos normativos próprios (por ex., Decreto 8.750/2016, Lei 11.516/2007, Lei 11.284/2006 e art. 27 do Pacto Internacional sobre Civis e Políticos).
 O documento conclui que, no Brasil, para além dos povos indígenas, somente os remanescentes de quilombos, enquanto povos tribais que vivem em condições de isolamento semelhantes aos indígenas, são destinatários da Convenção 169 da OIT, a partir das premissas e critérios da própria norma e do entendimento do STF, manifestado na <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=749028916">ADI 3.239</a>.
 Bem vistas as coisas, a automática equiparação pretendida por alguns tem o efeito concreto de estender no tempo (e sem lastro jurídico) licenciamentos ambientais de diversos empreendimentos relevantes, retardando desenvolvimento socioecômico e mantendo gargalos em setores estratégicos.
 Por conseguinte, é coerente exigir a consulta prévia, livre e informada, por protocolos específicos, elaborados pelos próprios afetados, somente em se tratando de povos indígenas, tribais e quilombolas. Os demais povos e comunidades tradicionais, igualmente sujeitos de direitos e dignos de proteção, devem se valer das normativas próprias e, em licenciamentos ambientais, de mecanismos ordinários de participação, sendo imprescindível que impactos em relação a tais povos sejam considerados e mitigados pelo Poder Público e empreendedor. Esta calibragem na aplicação da Convenção é um importante passo para harmonizar todos os diversos e legítimos interesses envolvidos em grandes projetos de interesse nacional.

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JOTA

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