
O presente texto é o segundo de dois artigos de opinião escritos para apresentar o posicionamento dos autores quanto à problemática e aos desafios envolvidos no caso do Projeto Inspire, correspondente ao desenvolvimento de um modelo de respirador artificial, bem como ao entendimento jurídico adequado para solucioná-los.
O primeiro texto apresentou um breve histórico do caso, com destaque ao ambiente institucional no qual a iniciativa foi desenvolvida, e a problemática envolvida, caracterizando-a como sendo pertinente a um caso de uma inovação, de tipo tecnológica e aberta.
Neste segundo artigo, apresentam-se considerações pertinentes aos principais riscos e incertezas identificados no caso, caracterizando-lhes, em suas modalidades penal e civil, bem como apontando as medidas tomadas para mitigá-los, e o adequado entendimento dos instrumentos empregados para isto.
A incerteza, caracterizada pela imprevisibilidade e imensurabilidade de antemão de todas as variáveis do desenvolvimento, é componente essencial da atividade inovativa[1]. Com isto em vista, o regime de inovação aberta introduz uma série de riscos e dúvidas. No caso dos respiradores, o experimentalismo figura como uma particularidade especial que, juntamente do componente de incerteza e da adoção do regime de inovação aberta, resulta em riscos importantes, merecedores de tratamento próprio.
Tais riscos possuem caráter técnico, no sentido de empregarem-se meios adequados aos resultados almejados, político-econômicos, ligados às dificuldades de mobilização ágil de recursos, e jurídicos, aqui associados à potencial responsabilização dos agentes envolvidos no processo inovativo. O objetivo deste artigo é analisar exatamente estes riscos de responsabilidade sob o enfoque da responsabilização civil e penal.
Entre os riscos relativos à responsabilização, alguns são pertinentes a qualquer atividade inventiva. É o caso da configuração de crime culposo por resultado lesivo e previsível relacionado a algum dever técnico de cuidado não tomado, ou da responsabilização civil por defeito do projeto ou produto. Contudo, a opção por um modelo de inovação aberta potencializa tais riscos, haja vista a impossibilidade de planejamento ou fiscalização, pelos pesquisadores, das etapas posteriores ao desenvolvimento do projeto - desempenhadas, por suas vezes, por agentes do mercado.
De fato, a impossibilidade de planejamento e fiscalização de todas as etapas era inerente ao Inspire, haja vista o intuito primário do projeto de, chegando-se a um modelo ótimo (na relação custo x tempo x sofisticação), difundi-lo ao máximo no mercado para produção em escala industrial, de modo a multiplicar a capacidade de amparo do sistema de saúde.
Diante desses riscos e incertezas, e com assessoria e orientação de professores e pesquisadores da Faculdade de Direito da USP, optou-se por segmentar a atividade inovadora, conferindo maior densidade ao tratamento jurídico pertinente a cada etapa de seu ciclo produtivo – especificamente à etapa pela qual os professores envolvidos no desenvolvimento do projeto responsabilizar-se-iam.
Com este intuito e visando à limitação da responsabilidade dos pesquisadores apenas aos riscos técnicos do projeto (e não do produto)[2], algumas medidas de precaução foram tomadas, sendo as orientações de duas principais ordens: (i) cumprir com excelência os deveres técnicos de cuidado pertinentes ao projeto e (ii) estabelecer limites claros de responsabilidade entre o desenvolvimento do modelo de respirador e sua posterior produção por empresas credenciadas pela Anvisa. Nesse cenário, os pesquisadores e inventores assumiriam exclusivamente os riscos ligados à excelência do projeto (especificações técnicas sobre os materiais, as dimensões e as tecnologias empregadas). A indústria, como contraparte ao acesso à invenção, suportaria os riscos (i) pelo arranjo produtivo para sua escalabilidade, (ii) pela garantia de conformidade ao projeto e às normas e protocolos de segurança (por meio da realização dos testes exigidos) e (iii) pela supervisão da produção.
No que tange aos riscos relacionados à eventual responsabilização por crime culposo, caracterizado pela ocorrência de lesão previsível e evitável a um interesse social fundamental (tal como a vida ou a integridade física), decorrente da violação de um dever de cuidado (p. ex. o desrespeito a norma ou a protocolo técnico específico), a fim de mitigá-los foram seguidas as regras técnicas específicas à área do projeto, referentes à utilização de materiais, realização de testes e atendimento às exigências próprias da Anvisa (conforme foi posteriormente certificado pela própria agência de controle).
Nesse sentido, um exemplo de procedimento adotado, voltado a conferir segurança aos protótipos desenvolvidos, foi a realização de testes, em parceria com as Faculdades de Medicina e Veterinária, para conferir-se o desempenho e a utilidade dos respiradores de baixo custo em quadros graves de comprometimento pulmonar. Assim, foi possível mensurar, na medida do conhecimento científico atual, se eram dotados de capacidade para tratar, ou não, indivíduos nestes estados.
Por se tratar de projeto experimental e inovador, é natural que houvesse aspectos concretos que fugissem ao pleno domínio técnico atual, que poderiam levar à eventual disfuncionalidade do respirador em circunstância imprevista, causando lesão a interesses sociais fundamentais.
Nesta hipótese, o desconhecimento daquilo que era impossível de ser conhecido a partir do atual estado da ciência poderia levar a resultados imprevisíveis que não deverão poder ser imputáveis aos inventores a título de culpa, tanto por não disporem dos meios para, com a velocidade desejável ao contexto de calamidade pública, realizar os testes necessários à mitigação destas incertezas inerentes a um processo de inovação como este, quanto pela atribuição funcional da Universidade (enquanto instituição).
De todo modo, a título preventivo, das informações técnicas do projeto constaram os dados e especificações técnicas e as devidas medidas de cuidado tomadas, esclarecendo-se que tais medidas não eram aptas a suprir a realização dos testes necessários para a posterior fabricação dos respiradores, a fim de verificar e garantir a segurança de seu funcionamento.
De outra parte, eventual responsabilidade penal poderia advir de omissão quanto ao dever de fiscalizar a produção de respiradores por empresas participantes do projeto. Entretanto, é importante ressaltar que a omissão é penalmente relevante apenas no caso de atribuir-se ao agente um dever jurídico (legal ou contratual) de agir. Nestas hipóteses, o agente assume a posição de garantidor da não ocorrência de resultados lesivos – responsável, portanto, no caso dos resultados lesivos e evitáveis ocorrerem.
No caso concreto, conforme as informações constantes do contrato de licença do Inspire, a concepção do projeto não se confunde com sua posterior utilização por empresas privadas certificadas pela Anvisa para a fabricação de respiradores. E, se tal atividade produtiva não está submetida ao controle efetivo da coordenação técnica de desenvolvimento do projeto, a nenhum de seus membros atinge dever jurídico de agir neste sentido. Assim, conforme as regras estabelecidas no contrato de licença, o licenciante não deverá poder ser responsabilizado por eventual desvirtuamento do projeto original pelo licenciado, bem como por concretos defeitos de fabricação que decorram de falta do dever de cuidado do fabricante.
Em suma, como medidas preventivas de eventuais riscos na esfera penal, adotaram-se as seguintes: (i) a observância dos deveres de cuidado exigíveis na concepção do projeto; (ii) a não vinculação da marca USP aos respiradores produzidos pelas empresas licenciadas; (iii) a inserção no website, de forma clara e objetiva, de todas as informações sobre o desenvolvimento e resultados do projeto, inclusive eventuais pontos de desconhecimento ou de conhecimento limitado; (iv) a inserção no website e nos contratos de licença com advertência expressa sobre a necessidade de realização de testes de fabricação pelos licenciados; e (v) a inserção no website e nos contratos de licença de informação expressa sobre a não fiscalização/certificação pela USP da atividade de fabricação dos licenciados.
Para além da mitigação do risco penal, essas medidas também auxiliam na mitigação do risco por responsabilidade civil, uma vez que elucidam a caracterização do vício de produto como culpa exclusiva do terceiro-fabricante, causa de rompimento do nexo causal.
Estudos de casos de inovação na pandemia podem e devem contribuir para que aproveitemos, não obstante a sua dimensão catastrófica no Brasil, a experiência institucional colhida do desempenho em condições adversas para a sua internalização, assimilação de forma a restarem como potencial para a construção de soluções técnicas, na forma de produtos, processos e serviços inovadores.
Mencionamos alguns tipos de riscos (técnicos, econômico-políticos e jurídicos) e incertezas (a forma de recepção da novidade pelo sistema jurídico) enfrentadas na experiência do Inspire, bem como alguns remédios de compliance adotados (realização de testes, atendimento a todos os protocolos já existentes, indicação dos pontos de incerteza, contrato de licença com atribuição de dever de realização de novos testes pelos futuros produtores, avisos expressos a respeito de obrigatoriedade de conformidade ao projeto original, da não responsabilização por defeitos de fabricação, e do dever de conformidade regulatória) que podem servir a outros casos, presentes e futuros.
Para o melhor entendimento dos instrumentos apontados, tem-se a distinção central entre projeto e produto, materializados nos processos de desenvolvimento de modelo tecnológico, de um lado, e de fabricação do produto comercial, respectivamente. Esta distinção é essencial na definição de campos de responsabilidade próprios a atores distintos envolvidos neste caso: os pesquisadores-inventores, e os fabricantes industriais.
Ana Elisa Liberatore Bechara – Professora titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Entrevistada. Auxiliou, com orientações jurídicas pertinentes aos riscos de responsabilização penal, os responsáveis pela iniciativa que culminou nos respiradores Inspire
Marcelo Knörich Zuffo – Professor titular do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). É um dos projetistas do respirador Inspire. Atualmente é o Coordenador Geral do InovaUSP
Raúl Gonzáles Lima – Professor titular do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). É um dos projetistas do respirador Inspire
Maria Carolina Foss – Pós-doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professora de direito na graduação do Insper. Coordenadora e pesquisadora do Núcleo Jurídico do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP
Lucca Lopes Monteiro da Fonseca – Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado
Tomás Domschke Tomic – Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador do Núcleo Jurídico do Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados da USP
[1] Sobre a incerteza nas atividades de inovação, consultar: SALERNO, M. S. e GOMES, L. A. V. Gestão da inovação (mais) radical. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2018.
[2] LESSA, M. Contratos para inovação. In BARBOSA, D., Direito da Inovação, 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, RJ, 2011, p. 22: "A incerteza 'de que determinados meios produzam o resultado esperado num contexto técnico' é a definição de risco técnico. Este se soma ao risco de mercado na caracterização do maior desafio à inovação".