Carlos Alberto Vilhena

Eu existo porque tinha uma professora teimosa que correu atrás de mim dentro do bueiro, entendeu? Essa mulher [palmas], essa senhora se chama Rita de Cássia. Ela se ligou que eu não gostava de ir pra escola, mas que eu gostava de história em quadrinhos, e ela passou a me dar todas as matérias em forma de história em quadrinhos. Vocês sabem quanto um professor ganha; vocês sabem o tempo da preparação pruma aula... essa mulher pegou um tempo da vida dela pra transformar o conteúdo que eu precisava ter acesso em história em quadrinhos. Cês sabem que não é fácil fazer uma história em quadrinhos. Ela dedicou muito tempo daquilo pra uma criança, sabe? Que era eu. E a partir do meu encontro com ela, o mundo ganhou muitas outras possibilidades, sabe? Dona Rita de Cássia me deu o mundo, sem perceber que ela tava fazendo isso. Ela só não queria que eu ficasse dentro do bueiro o resto da minha vida, sabe? <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Essa fala de Emicida, ativista negro, empresário, rapper e um dos mais destacados artistas da atualidade no Brasil, sintetiza a importância, a dedicação e a desvalorização do(a)s professore(a)s em nosso país.
O testemunho do artista reforça a ideia do poder transformador da educação na vida das pessoas, mas igualmente exibe as deficiências de um sistema educacional incapaz de prestigiar o corpo docente que é sua espinha dorsal.
Segundo o censo escolar de 2021 e o Censo da Educação Superior de 2020, o Brasil conta com pouco mais de 2,5 milhões de pessoas atuando como docentes. A ampla maioria, 2,2 milhões de profissionais, encontra-se no ensino básico, enquanto 320 mil estão nas instituições de ensino superior<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Num levantamento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OCDE">OCDE</a>) realizado com 38 países, o Brasil paga o pior salário inicial para professores do ensino básico, na casa dos 14 mil dólares/ano. A Colômbia, cujo rendimento nacional bruto per capita é inferior ao brasileiro<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, oferece um salário inicial de 23 mil dólares/ano aos docentes desse nível de ensino<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O baixo salário é apenas um dos fatores que marcam a desconsideração com quem transmite conhecimento para os adultos do futuro.
Em abril deste ano, um levantamento feito em mais de mil escolas públicas brasileiras por tribunais de contas mostrou que 57% delas estão inadequadas para operar. Entre outras deficiências de infraestrutura, mais de 30% desses estabelecimentos não dispõem de captação de esgoto; cerca de 60% não têm biblioteca e quase 90% deles não possuem alvará de funcionamento do corpo de bombeiros<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Adicione-se à precariedade de meios a violência com que são tratadas as professoras e professores neste país. Seja porque há grande parcela de estudantes vivendo profundos problemas sociais, seja porque alunos e alunas não receberam em casa a devida orientação para respeitar o(a)s profissionais de ensino. Isso resulta em xingamentos, agressões físicas e, infelizmente, na morte de docentes.
Não podemos tampouco esquecer da vigilância promovida por pais e responsáveis que perseguem – ou até mesmo ameaçam – docentes por discordarem dos conteúdos apresentados em classe.
Tal vigilância se estende ao ambiente acadêmico, em que a liberdade de cátedra – assegurada por nossa constituição – vem sendo atacada por grupos refratários ao debate e ao livre pensar.
Quem ensina, portanto, se submete a uma rotina desumana e emocionalmente adoecedora. Não é por acaso que a maioria das licenças de trabalho de profissionais de ensino vincula-se a doenças mentais<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Nosso país tem a postura hipócrita de louvar os professores e o ensino em palavras, mas enxovalhá-los nas ações. Nossa educação é subfinanciada há tempos. Deveríamos investir 25% de nosso PIB per capita em estudantes do ensino básico, mas só alocamos 15%<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. A distância entre o falar e o fazer vem se mostrando desalentadoramente grande.
Professoras e professores que superam todos esses desafios o fazem à custa de esforços sobre-humanos, desgastes pessoais e familiares, bem como abalos na saúde física e mental. Fazem isso alimentado(a)s por um senso de empatia e dever fora do comum. Educar cidadãos deixa de ser profissão para tornar-se uma atividade heroica, e isso não deveria ser assim.
Profissionais de ensino deveriam poder viver dignamente, sem medo e com tranquilidade. Isso é possível num sistema educacional gerido para tanto, com infraestrutura adequada e recursos financeiros para operar em níveis adequados.
Sabotar a atividade docente, como atualmente fazemos, é não só desonrar pessoas essenciais à construção de um país melhor, mas também condenar estudantes a um destino de ignorância, violência e indignidade.
As “Ritas de Cássia” que estão em nossas salas de aula, verdadeiras heroínas, deveriam ser ovacionadas todos os dias, e ainda assim seria pequena a homenagem. Nós as honraríamos muito mais se lhes déssemos o direito de não precisarem ser heroicas, se lhes proporcionássemos condições para que não precisassem salvar as crianças dos bueiros às custas de sua vida pessoal. Essas pessoas precisam de que o ano todo seja do(a) professor(a), do(a) aluno(a) e da escola, e não apenas um solitário dia do mês de outubro.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>              A fala ocorreu durante o evento Festival LED | A ponte para o futuro vem do passado: uma educação crítica e antirracista em julho de 2022. Disponível em <a href="https://globoplay.globo.com/v/10772587/">https://globoplay.globo.com/v/10772587/</a> a partir de 37min 47s. Acesso em 16/10/2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a><a href="https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/dados-revelam-perfil-dos-professores-brasileiros">              https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/dados-revelam-perfil-dos-professores-brasileiros</a>. Acesso em 16/10/2023
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>              Segundo o Banco Mundial o Rendimento Nacional Bruto é per capita no Brasil é de cerca de 8 mil dólares, enquanto na Colômbia ronda os 6,5 mil dólares. <a href="https://data.worldbank.org/indicator/NY.GNP.PCAP.CD%C2%A0?view=map">https://data.worldbank.org/indicator/NY.GNP.PCAP.CD%C2%A0?view=map</a>. Acesso em 16/10/2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a><a href="https://worldpopulationreview.com/country-rankings/teacher-salary-by-country">              https://worldpopulationreview.com/country-rankings/teacher-salary-by-country</a>. Acesso em 16/10/2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a><a href="https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/04/5090914-levantamento-aponta-o-estado-lastimavel-das-escolas-publicas-do-brasil.html">              https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/04/5090914-levantamento-aponta-o-estado-lastimavel-das-escolas-publicas-do-brasil.html</a>. Acesso em 17/10/2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a><a href="https://www.brasildefato.com.br/2023/10/15/saude-mental-e-principal-problema-para-professores-do-pais-aponta-pesquisa">              https://www.brasildefato.com.br/2023/10/15/saude-mental-e-principal-problema-para-professores-do-pais-aponta-pesquisa</a>. Acesso em 17/10/2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a><a href="https://jornal.usp.br/artigos/educacao-publica-subfinanciada/">              https://jornal.usp.br/artigos/educacao-publica-subfinanciada/</a>. Acesso em 17/10/2023.

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JOTA

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