Eduardo Pizarro Carnelós

Flávia Amarante Teixeira Duarte

Depois de ter sido aprovado pelo Senado, o Projeto de Lei 8.045/2010 – que institui um novo Código de Processo Penal (CPP), de autoria do ex-senador José Sarney – parece estar próximo de votação pela Câmara dos Deputados. Iria à votação o substitutivo elaborado pelo deputado João Campos de Araújo, mas na semana passada o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, criou um novo grupo de trabalho para que seja elaborado um novo relatório sobre o projeto.
Pouco se ouvia falar sobre a proposta, até que entidades de membros do Ministério Público passaram a atacá-la, com destaque para a pretendida regulamentação da atuação do Parquet na apuração de infrações penais. É curioso que, tendo obtido por decisão judicial o que a Constituição não lhe atribuiu – consideramos um erro o que assentou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar o recurso extraordinário 593.727, que reconheceu a legitimidade da investigação em matéria penal pelo titular da ação penal de iniciativa pública –, os integrantes do MP não admitem que essa atividade investigatória seja subsidiária àquela que a Carta atribui às polícias civis e à Polícia Federal, exceto nos casos de crimes militares.
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Como se trata de um novo CPP, não nos foi possível analisar todos os aspectos das alterações sugeridas para o sistema ainda vigente, mas a leitura de pontos importantes nos permite dizer com tristeza que, se aprovado, o substitutivo feito pelo deputado João Campos não brindará o país com um Código capaz de fazer valer as garantias e os direitos inscritos na Constituição da República; ainda que possam ser identificados alguns poucos avanços, há inúmeros retrocessos, além de graves defeitos técnicos.
Por exemplo, veja-se o capítulo destinado ao habeas corpus (artigos 739 a 757). Depois de repetir o texto do inciso LXVIII, do artigo 5º, da Constituição da República (“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”), o artigo 739 do Substitutivo acrescenta uma exceção: “salvo nos casos de punição disciplinar militar”. Contraditoriamente, porém, o artigo 740 dispõe não caber o instrumento, “salvo se o paciente estiver preso ou na iminência de sê-lo: I – para decretar nulidade ou trancar investigação ou processo criminal; II – quando a medida for utilizada como sucedâneo recursal ou substitutivo de revisão criminal”.
Ora, se a Carta assegura a concessão do habeas corpus nos termos acima transcritos, é evidente que não pode a lei ordinária vedar seu cabimento nos casos em que se pretenda a decretação de nulidade ou o trancamento de investigação ou ação penal (o texto do projeto preferiu a expressão “processo criminal”, opção que não parece a mais técnica), ou ainda quando o remédio for buscado como sucedâneo recursal ou substitutivo de revisão criminal; e tal vedação afigura-se-nos inadmissível mesmo com a exceção “salvo se o paciente estiver preso ou na iminência de sê-lo”.
Realmente, o habeas corpus é instrumento tutelar da liberdade do indivíduo, e não pode sofrer vedações ou restrições, sob pena de ser transformado em simples modalidade de recurso. Tem natureza constitucional e, no Brasil, sua utilização, historicamente, tem sido admitida de forma ampla, salvo nos períodos de exceção, ou, mais recentemente, em razão de lamentáveis decisões judiciais que, em nome duma alegada eficiência ou integridade do sistema recursal, passaram a não conhecer de impetrações chamadas “substitutivas de recurso ordinário” (depois se estendeu a restrição quando cabível qualquer recurso, não apenas o ordinário em habeas corpus), embora julguem o mérito dos pedidos, concedendo-os “de ofício”, quando reconhecida a presença de coação ilegal.
Se o remédio heroico não é recurso, mas ação mandamental inscrita como garantia na Constituição, limitar ou vedar seu cabimento, impedindo-se o próprio conhecimento do pedido por esse ou aquele motivo, constitui violação à própria garantia. E é certo que, ainda que remotamente, a existência de nulidade processual; a deflagração de investigação à qual falte justa causa; ou a instauração de ação penal por meio de recebimento de denúncia inepta, que impute fatos atípicos, ou carente de justa causa, são evidentes ameaças à liberdade de alguém, impondo-se em qualquer dessas situações, a admissão do habeas corpus para fazer cessar a coação que se revelar ilegal.
Tanto o que se disse é verdadeiro, que o próprio Substitutivo, depois de incorrer nos erros apontados, dispõe, no artigo 740, ser ilegal a coação (que o texto parece usar como sinônimo de prisão, em mais uma falha técnica, pois é sabido que outras medidas diversas da privação imediata da liberdade também devem ser consideradas coação) quando “I – não houver justa causa para a persecução penal (...) VI – o processo for manifestamente nulo (...)”. O dispositivo, porém, não prevê ilegalidade da coação quando não houver justa causa para a prisão, embora trate do excesso de prazo dela (II); da falta de competência da autoridade coatora (III); da cessação do motivo que a autorizou (IV); da ausência de substituição da prisão por outra medida cautelar cabível (V); e da extinção da punibilidade (VII). Pelo texto proposto, portanto, o habeas corpus não poderá ser impetrado para buscar a revogação da prisão indevidamente decretada, o que constitui rematada teratologia.
Outro ponto merecedor de crítica é a manutenção, com piora, do tratamento dado às nulidades processuais. No artigo 187, o Substitutivo prevê: “A decretação de nulidade e a invalidação de ato irregular dependerão de manifestação específica e oportuna do interessado, sempre que houver necessidade de demonstração de prejuízo ao pleno exercício de direito ou de garantia processual da parte, observadas as seguintes disposições: I – é dever do juiz buscar o máximo de aproveitamento dos atos processuais; II – nenhum ato será declarado nulo se da irregularidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa; III – o prejuízo não se presume, devendo a parte indicar, precisa e especificadamente, o impacto que o defeito do ato processual gerou no exercício do contraditório ou da ampla defesa; IV – não se invalidará o ato quando, realizado de outro modo, alcance a mesma finalidade da lei, observado o princípio da ampla defesa”.
Vê-se, pois, a adoção de princípios norteadores do processo civil, o que, por si só, demonstra o erro da proposta. Além disso, o disposto do caput (“sempre que houver necessidade de demonstração de prejuízo...”) mostra-se desprovido de sentido, quando se lê o inciso III que o segue.
Em matéria de processo penal, impõe-se a compreensão de que a forma é garantia, não preciosismo; por isso, não cabe falar em instrumentalidade da forma, como se faz no processo civil. Também já é passado tempo de se desapegar do adágio francês pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo). Ora, se a forma é garantia (e é!), o desrespeito a ela, sem correspondente declaração de nulidade, é convite – na verdade, estímulo – à prática de ignorar os comandos processuais.
<blockquote class="jota-article__eye">Com efeito, o prejuízo, no processo penal, decorre da inobservância ou do descumprimento da norma processual; e ponto! Se não se respeitam as normas estabelecidas, o prejuízo está consumado, pois a partir daí não se pode falar em devido processo legal, ou, mais precisamente, em devido processo penal.</blockquote>
Curiosa e paradoxalmente, o artigo 188 dispõe: “Serão nulos e insanáveis os atos de cuja irregularidade resulte violação dos direitos e garantias fundamentais do processo penal, notadamente no que se refere: I – à observância dos prazos; II – à observância do contraditório e da ampla defesa; III – às regras de impedimento; IV – à obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais; V – às disposições constitucionais relativas à competência jurisdicional”. Os parágrafos desse artigo também trazem importantes disposições garantidoras, a saber: “§ 1º – são absolutamente nulas as medidas cautelares ordenadas por juiz ou tribunal constitucionalmente incompetente. (...) § 3º – o juiz não declarará a nulidade quando puder julgar o mérito em favor da defesa.”
Como conciliar os textos dos artigos 187 e 188, acima transcritos? Evidentemente, se são nulos e insanáveis os atos referidos por este último, o prejuízo cuja prova é exigida pelo primeiro decorre da própria inobservância das regras processuais estabelecidas, cujo fundamento é impedir a violação dos direitos e garantias fundamentais do processo penal. E, nesse caso, não faz sentido pretender que o acusado demonstre o prejuízo, o qual, portanto, deve ser, sim, presumido, ao contrário do que determina o inciso III, do artigo 187.
Diferentemente do que muitos ainda pensam e sustentam – inclusive, lamentavelmente, juízes –, o processo penal não é instrumento a serviço da pretensão punitiva estatal. Ele é, precisamente, o contrário disso: um conjunto de normas destinadas a dar efetividade às garantias e aos direitos fundamentais inscritos na Carta Política, a fim de limitar o exercício dessa pretensão punitiva pelo Estado. E o juiz criminal deve ser, antes acima de tudo, o garantidor do respeito a esse conjunto de normas; da inobservância ou da afronta a cada uma delas resultará prejuízo ao acusado, cuja prova não lhe pode ser exigida.
Esses são apenas alguns dos defeitos que podemos apontar neste artigo, até mesmo em razão da limitação de espaço.
Estamos convencidos de que o Substitutivo está longe de trazer um Código de Processo Penal garantista, e por isso esperamos que ele seja submetido a maiores debates, para que o resultado seja um texto que jogue na lata do lixo da História, definitivamente, conceitos distorcidos que impedem a adoção entre nós de um processo penal democrático, único capaz de fazer valer os direitos e garantias constitucionais do indivíduo frente ao poder punitivo estatal.
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algemas1

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JOTA

Em matéria de processo penal, não cabe falar em instrumentalidade da forma

Processo penal garantista ainda distante

Em matéria de processo penal, não cabe falar em instrumentalidade da forma