Amanda Flávio de Oliveira

César Mattos

Foi Roberto Campos quem advertiu para o fato de que, se a capacidade do Estado de fazer o bem é limitado, o de fazer o mal é infinito<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Um problema dos mais complexos e que atormenta o regulador financeiro brasileiro há tempos repousa nos altos juros cobrados no país pelo uso do cartão de crédito e do cheque especial.
Juros nada mais representam que o preço do dinheiro hoje em relação a amanhã. Entretanto, na história da humanidade, eles sempre foram vistos como algo negativo e condenável: a Igreja, no Concílio de Viena de 1331, autorizou que a Inquisição condenasse os praticantes da usura à morte. A justificativa utilizada é particularmente curiosa: como a cobrança de juros representaria ganhar dinheiro com o tempo, e este último a Deus pertence, trata-se de claro pecado.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
No Brasil, os juros e os spreads (diferença entre as taxas de captação e empréstimo dos recursos pelos intermediários financeiros) altos têm sido uma constante desde o Plano Real. Em 2019, o país <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> constituiu o terceiro país com maior taxa de juros no crédito ao setor privado (37,47% ao ano) do mundo, apenas abaixo de Madagascar (49%) e Argentina (67,6%) e bem longe dos EUA (5,28%).
A razão mais comumente apontada para explicar a alta taxa de juros seria a elevada concentração do mercado bancário no país, que geraria lucros extraordinários aos bancos.
Enfrentá-la importaria em remover as barreiras à entrada remanescentes no mercado de crédito as quais, no passado, foram, muitas vezes, atribuíveis ao próprio regulador.
<blockquote class="jota-article__eye">Vale destacar que, à histórica preocupação do Banco Central do Brasil com a higidez do mercado financeiro, não se somou o mesmo nível de cuidado com a concorrência no setor.</blockquote>
Ao contrário, o padrão de intervenção do Banco Central foi muitas vezes em direção oposta. Por exemplo, em 2010, o Bacen chegou a acionar a Polícia Federal e o Ministério Público contra a primeira Fintech que surgia. A Fairplace, primeira startup brasileira de empréstimos entre pessoas, foi acusada de estar praticando “agiotagem online”.
É de se reconhecer, todavia, uma reversão razoavelmente recente desta predisposição do regulador. Desde 2016, a Agenda BCB+ fez incluir entre seus propósitos o fomento à concorrência, com expressa referência ao mercado de cartões, ideia que segue mantida e aprimorada na Agenda BC#, de 2019.
Entre outros fatores já apontados como razão para os altos valores praticados a título de juros do cartão de crédito e do cheque especial no Brasil incluem-se a oferta agressiva e/ou irresponsável de crédito por parte dos bancos, a atitude inconsequente das decisões judiciais de invalidar garantias acordadas em contrato entre as partes, a situação de insegurança jurídica que acompanha o desenho regulatório nacional, entre outras.
Inúmeras inciativas de enfrentamento do problema já foram testadas, propostas, estudadas, implementadas ou abandonadas, pelos três Poderes, revelando uma única e inafastável constatação sobre o problema: sua solução não é simples.
Pois bem. Eis que, no entanto, em plena crise econômica decorrente da pandemia que tomou o mundo, surge um projeto de lei contendo a proposta de se tabelar os juros do cartão de crédito e do cheque especial, proibindo a prática de percentual acima de 20% ao ano até julho de 2021, vedada a redução dos limites de crédito.
A justificativa, constante do Projeto de Lei nº 1166/2020, menciona a preocupação de permitir que, no período de crise, o “pequeno empresário, o profissional liberal ou o empregado que deixar de ter renda e possuir cartão de crédito” possa utilizar o “cartão para comprar o que precisar”.
A iniciativa não é exatamente inédita. O próprio Banco Central do Brasil limitou, a partir de 06 de janeiro de 2020, os juros do cheque especial a 8% ao mês, limite bem superior aos 20% ao ano do projeto, mas ainda sim “limite”.
Projetos de lei de moratória, de tabelamento de preços, entre outras medidas semelhantes têm proliferado nos últimos meses no Brasil e já foram tema de artigo publicado neste mesmo espaço<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Na oportunidade, defendeu-se a ideia de que a situação excepcional e de crise exige um exercício sóbrio de busca de solução racional e baseada em evidências.
Mesmo no plano constitucional, medida semelhante já foi adotada, em versão original do texto, corrigida posteriormente por meio de Emenda Constitucional. Em seu artigo 192, parágrafo 3º, a Constituição de 1988 limitava as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, ao limite de doze por cento ao ano, em disposição que o citado Roberto Campos classificava de “anedótica”.
Agora, com a aparente boa intenção de amenizar efeitos da crise sobre a população, sem estudo prévio de impacto legal, sem referência a evidências do acerto da medida, fixando período arbitrário de tempo para a determinação legal em um cenário de incertezas quanto à duração da crise, sem definir critérios ou perfis para a concessão dos novos patamares, fixa-se percentual aleatoriamente definido como justo para o preço a ser pago pelo dinheiro. E para piorar, a medida se revela discriminatória, eis que a parte efetivamente mais desfavorecida da população não tem acesso a cheque especial ou a cartão de crédito.
<blockquote class="jota-article__eye">Desconsidera-se, sobretudo, inúmeras e sólidas evidências de que a proposta tende a ser muito mais gravosa que benéfica, com inevitáveis prejuízos à economia brasileira, especialmente os mais pobres.</blockquote>
Note que a taxa de juros, no plano microeconômico, é o preço que permite mediar a oferta de recursos de poupadores (que trocam dinheiro presente por mais dinheiro futuro) com a demanda de investidores e consumidores, em especial o governo, que tomam emprestado no presente e se comprometem a pagar valor maior no futuro.
Como ocorre com qualquer produto (dinheiro, principalmente), quando o governo procura definir um valor máximo do preço, se este for inferior ao preço que equilibra oferta e demanda, o resultado será um excesso de demanda por recursos.
A escassez deverá ser gerida por mecanismos extra preço como filas, prioridade a alguns escolhidos (não infrequentemente os mais ricos e/ou os “amigos de algum rei”), dentre outros mecanismos menos eficientes e justos.
E quando se está em um período de gigantesco choque na economia como o da Covid-19, aumenta-se naturalmente a demanda de recursos e reduz-se a oferta. Na crise atual, o governo, especialmente Banco Central e Tesouro, fizeram um esforço hercúleo de relaxamento das políticas monetária e fiscal para mitigar os efeitos da crise, especialmente para pequenas empresas e os mais pobres.
Como as pressões inflacionárias já estavam sob controle antes da crise e houve um choque negativo de demanda, estes movimentos não geraram (ainda) pressões de aumento de preços.
Mas a tendência natural, sem aquela intervenção do governo, é que num momento de crise como esse haja pressão de aumento da taxa de juros. Seu controle direto, como pretendido pelo Projeto em comento, apenas tende a agravar o problema, gerando mais escassez de recursos, com retração maior da oferta de crédito.
Em um prazo maior, o movimento de entrada de novos players no mercado financeiro, como as Fintechs, pode ser atenuado ou mesmo revertido pelo controle de juros, comprometendo a concorrência e, portanto, o próprio objetivo de reduzir o spread bancário.
Ou seja, o controle da taxa de juros no curto prazo é disfuncional para a própria redução desta mesma taxa de juros em um prazo mais longo. Mais uma vez o país estaria fazendo uma escolha pelo ilusório ganho populista de curto prazo em detrimento da solidez do longo prazo.
No plano macroeconômico também haveria prejuízos. O Conselho de Política Monetária, o Copom, tem como principal instrumento para implementar o regime de “metas de inflação”, a definição da Selic, a taxa básica de juros da economia. A “missão” da Selic nesse regime é, conforme o Bacen, “influenciar todas as taxas de juros do país, como as taxas de juros dos empréstimos, dos financiamentos e das aplicações financeiras”.
Quando a Selic aumenta (diminui) o objetivo é gerar um efeito nas outras taxas de juros da economia de forma a reduzir (aumentar) a demanda e, portanto, reduzir (incrementar) a inflação para dentro do intervalo da meta<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Havendo um teto para a taxa de juros do crédito oferecido por cartões ou cheque especial, a Selic deixa de influenciar a demanda por estas operações, reduzindo a capacidade (ou potência) de a política monetária afetar a inflação.
Para que se chegue ao resultado desejado de controle da inflação, o aumento da Selic terá que ser bem maior sobre as outras operações de crédito, que não cheque especial e cartões de crédito, de forma a gerar o mesmo efeito do ambiente sem controle de juros sobre algumas operações.
Ou seja, o controle da inflação, política que protege relativamente mais os pobres, fica severamente comprometido com o teto de juros. Em síntese, o Projeto de Lei nº 1.166/2020 constitui um retrocesso institucional e de política econômica simplesmente gigantesco no Brasil.
Ainda no século XIX, Bastiat denunciava o fato de que a lei havia se pervertido. Um das causas dessa perversão se constituía precisamente na falsa filantropia<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. No caso específico, ao argumento de se proteger pessoas vulneráveis e impactadas pela crise, distorcem-se artificialmente mecanismos econômicos inescapáveis, aprofundando e estendendo a crise, sem ser eficiente no enfrentamento da situação dos mais pobres.
Já se disse que “para cada problema complexo há uma solução simples, elegante e completamente errada”. A proposta de tabelar juros do cartão e do cheque especial é bem assim, embora, nesse caso, ela sequer possa ser considerada elegante.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Campos, Roberto. A Constituição contra o Brasil. LVM Editora.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.theglobaleconomy.com/rankings/lending_interest_rate/">https://www.theglobaleconomy.com/rankings/lending_interest_rate/</a>&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/moratoria-e-servicos-essenciais-medida-bem-intencionada-com-efeitos-indesejaveis-16042020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/moratoria-e-servicos-essenciais-medida-bem-intencionada-com-efeitos-indesejaveis-16042020</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Em 2020, a meta de inflação é de 4,00% e o intervalo é de mais ou menos 1,5 pontos percentuais, ou seja, entre 2,50% e 5,50%.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Bastiat, Claude Frédéric. A lei . LVM Editora.

Edifício-Sede do Banco Central do Brasil em Brasília

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JOTA

Análise sobre tabelamento de juros do cartão de crédito

Problemas complexos e soluções simplistas e equivocadas

Análise sobre tabelamento de juros do cartão de crédito