Vinícius Klein

Gabriela Pepeleascov

Os processos de criação de empresas estatais e a sua privatização geram posições extremadas no debate público, mesmo que possa se observar um caráter cíclico nos processos de criação de empresas estatais e de privatização.
No contexto brasileiro, é possível ressaltar uma onda de privatizações durante os anos 1990, que foi impulsionada pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) e que se seguiu por diversos governos. Ao longo desse período, foram realizadas diversas privatizações nos mais variados setores da economia.
O cenário atual de uma pausa nos processos de privatização, ao menos em âmbito federal, deve ser aproveitado para debater melhorias e aperfeiçoamentos tanto nos desenhos dos procedimentos que levam à privatização quanto na avaliação dos seus resultados.
Neste contexto, o foco exclusivo nos valores arrecadados em leilões e procedimentos de privatização pode levar a avaliações parciais. Afinal, o valor da venda do ativo privatizado não é necessariamente o ponto central de todos os processos de privatização, já que o impacto institucional causado nos setores privatizados também deve ser considerado.
Em termos legislativos em função do art. 4º da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9491.htm">Lei 9.491/97</a>, a privatização pode ser entendida como a alienação de participação acionária estatal que lhe garantia o controle totalitário ou majoritário e, portanto, trazia consigo o regime jurídico das empresas estatais. Para fins de uma abordagem não exclusivamente jurídica, mas que envolva aspectos institucionais, propõe-se pensar a privatização como o afastamento efetivo do Estado do poder de decisão da empresa. Ainda, na mesma lógica no caso de privatizações de setores antes inteiramente estatais, a privatização seria a substituição do Estado pelo mercado como organizador principal – já que sempre haverá um contorno institucional/legal estatal – da atividade econômica naquele setor.
Os processos de privatização são complexos e não apenas a decisão pela privatização em si, mas o modelo de privatização adotado pode ser crítico para o seu sucesso. Portanto, o desenho dos procedimentos para a definição do modelo de privatização adotado deve ser apto a lidar com a diversidade de interesses afetados e com o risco de captura por esses interesses, bem como analisar os custos e benefícios envolvidos na modelagem escolhida. Aqui, deve-se destacar que em especial em casos de empresas estatais mais relevantes para a economia nacional o foco da modelagem e, posteriormente, da crítica, na maximização do valor do ativo a ser vendido deve ser necessariamente observado, mas não se restringir a isto. Afinal, tem-se uma oportunidade ímpar de construção e aperfeiçoamento de instituições de mercado, que podem gerar uma estrutura de mercado mais eficiente e robusta.
Existem razões de desenvolvimento econômico e social com fundamento na ordem econômica constitucional como a promoção da concorrência, da inovação, o favorecimento do consumidor, a proteção do meio ambiente e os impactos nas relações de trabalho e na redução das desigualdades que devem ser levadas em conta na definição do melhor modelo de privatização e podem ser denominadas razões de desenvolvimento. Assim, a maximização do valor de venda do controle da empresa estatal e as razões de desenvolvimento – e internamente os próprios objetivos de desenvolvimento – levam a trade-offs na definição do modelo de privatização, que devem ser transparentes e explicitamente avaliados.
Devemos destacar o esforço de promoção da concorrência como um objetivo em algum grau inerente aos processos de privatização. Afinal, o aumento da intensidade da pressão competitiva costuma gerar resultados mais benéficos a sociedade, respeitando-se os limites legais e institucionais para a disputa concorrencial.
Ainda, a preocupação com o aperfeiçoamento e a construção de instituições privadas relevantes para o melhor funcionamento do mercado – como por exemplo sistema de pagamento, acesso a crédito e financiamento privados, reduções de custos de transação em mercados adjacentes, inovação, afastamento de monopólios, dentre outras – podem ser vistas como ganhos tão relevantes quanto o valor da venda do ativo que está sendo privatizado.
Na hipótese de privatizações de setores da economia anteriormente dominados integralmente por empresas estatais, pode existir uma oportunidade de redesenhar o mercado e o próprio ambiente competitivo. Neste contexto, o foco exclusivo no valor da venda do controle acionário pode distorcer os conceitos de sucesso ou fracasso do processo de privatização. Modelos de privatização de controle disperso que sacrifiquem o valor da venda em troca de maior competitividade no setor e de maior pressão competitiva entre as empresas podem ser socialmente benéficos.
Neste conceito institucional de privatização fica mais claro o efeito pernicioso ou ao menos a oportunidade perdida de processos de privatização que permitem o controle estatal continue presente, mesmo que o regime jurídico seja o de uma empresa privada. Essas situações podem ser vistas como privatizações envergonhadas ou parciais. Em uma privatização bem-sucedida, se espera um crescimento na eficiência alocativa, um aumento na competitividade das empresas e um impacto geral positivo no desenvolvimento econômico<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
No caso de privatizações envergonhadas, nas quais o Estado mesmo que de forma indireta continua a coordenar e influenciar as decisões, pode-se ter uma soma de ineficiência decorrentes de ausência de incentivos efetivamente de mercado e menor transparência da atual estatal.
Assim, um modelo de privatização que sacrifique interesses de desenvolvimento econômico e social em função do foco exclusivo no valor a ser arrecado representa uma oportunidade perdida de mudança institucional.
Como exemplo, pode-se pensar se a privatização da Vale e posteriormente da CSN – mesmo que tenha afastado formalmente o Estado da tomada de decisões e da coordenação da atividade econômica no setor siderúrgico em função do modelo de privatização – deixou de contribuir para uma mudança mais estrutural do setor e para o aperfeiçoamento da governança e das instituições de mercado naquele setor. Isso pode ser observado pela participação cruzada e pela concentração no setor e pela influência estatal indireta através de fundos de pensão<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Por isso, é importante que a rediscussão dos processos de privatizações inclua o debate de desenhos de governança para o processo de privatização e de modelos alternativos de privatização em detrimento de um debate restrito a posições extremadas acerca da decisão de privatizar ou de manter os ativos sobre controle estatal e do valor da venda dos ativos.
A privatização não produz melhoria institucional por si só<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, mas o ambiente institucional e as capacidades institucionais do Estado são determinantes da qualidade da construção do modelo de privatização e, portanto, dos resultados. Entretanto, o processo de privatização pode contribuir para uma melhoria institucional se buscar reforçar instituições necessárias ao funcionamento do mercado e as condições de competitividade e permitir que o Estado crie capacidades institucionais com os recursos e com o espaço orçamentário que ela pode criar.
Assim, pode-se concluir no sentido da necessidade de se revistar os processos de privatização não com o foco exclusivo nos valores arrecadados, mas também no seu impacto institucional, ou seja, na sua contribuição em termos de eficiência econômica do mercado em questão como de reforço e melhoria das instituições de mercado no Brasil.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> PARGENDLER, Mariana; MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sergio G. In Strange Company: The Puzzle of Private Investment in State-Controlled Firms. Cornell International Law Journal, 46 (3), 2013, p. 569-610.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Um exemplo é a manutenção de diversas participações cruzadas, como analisado por:  KLEIN, Vinicius; GOMES, Gabriela Pepeleascov. Competition concerns in the privatization of the steel sector in Brazil: a case study on common ownership, disponível em:  https://drive.google.com/drive/folders/18Kty-Xk7vMSP0Wuk5tZuQ4zEFWEzzqkh. Ainda, para um debate mais amplo das razões de desenvolvimento nos processos de privatização ver: KLEIN, Vinicius; RODRIGUES, Fernanda Z. Enhancing Competition in Privatisation Process in Brazil : the case of correios. In: CULOT, Henri; TOURARD, Hélène; VINCENT, Philippe.  Pays Émergents et Droit International Économique: les grands équilibre mondiaux.  Bruxelles : Edition Bruylant, 2022, pp. 77-97.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> LAZZARINI, Sergio G. A privatização certa: porque as empresas privadas em empresas públicas precisam de governos capazes.  São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

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JOTA

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