Mariana Lins de Carli Silva

Viviane Balbuglio

A construção efetiva da igualdade de gênero pressupõe a liberdade. O encarceramento massivo de mulheres pobres, negras e moradoras de regiões periféricas em ascensão vertiginosa no Brasil precisa ser enfrentado a partir da constatação de que esse fenômeno se estrutura em violências institucionais contra os direitos das mulheres. Mesmo que medidas de redução de danos das grades para dentro sejam importantes, é urgente centrar esforços nas medidas jurídicas que permitam colocá-las das grades para fora. 
O desencarceramento de mulheres ganhou especial destaque normativo em 2016. A tradução oficial das Regras de Bangkok, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça, deve ser interpretada como estímulo à redução da população feminina encarcerada. Em sua diretriz n° 57, as Regras de Bangkok estabelecem que “(...). Deverão ser desenvolvidas, dentro do sistema jurídico do Estado membro, opções específicas para mulheres de medidas despenalizadoras e alternativas à prisão e à prisão cautelar, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres infratoras e suas responsabilidades de cuidado”. 
Isso é só o começo. A partir das conclusões da pesquisa “MulhereSemPrisão: desafios e possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres”, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania passou a enxergar a necessidade de um olhar atento às diversas alternativas à prisão provisória para as mulheres de modo que a opção por uma ou por outra seja menos gravosa de acordo com a realidade de cada mulher. É nesse sentido que refletir sobre o potencial e os limites do instituto da prisão albergue domiciliar cautelar parece ser fundamental. 
A prisão albergue domiciliar cautelar determina que a pessoa processada criminalmente permaneça em sua residência durante 24 horas, só podendo se ausentar mediante autorização judicial. É um instituto previsto como medida cautelar substitutiva da prisão preventiva, com redação dada por meio da Lei das Medidas Cautelares (Lei nº. 12.403/2011), cujo objetivo precípuo era romper com o rígido binômio prisão ou liberdade e assim fomentar a concretização de que a liberdade é a regra, e a prisão exceção. Por sua vez, o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº. 13.257/16) expandiu as hipóteses legais para concessão de prisão albergue domiciliar cautelar, notadamente os incisos que versam sobre gestantes, mulheres com filhos de até 12 anos de idade e homens responsáveis por filhos de até 12 anos. 
As hipóteses legais que se referem ao exercício da maternidade buscam proporcionar a convivência de bebês e crianças com suas mães em um espaço saudável, já que o ambiente prisional necessariamente produz uma série de limitações à garantia de direitos de saúde reprodutiva da mulher e de autonomia sobre o cuidado com os filhos. É patente que o pleno exercício da maternidade e dos direitos das crianças está vinculado à liberdade. 
Outro aspecto jurídico da medida cautelar com aptidão desencarceradora é o reconhecimento do tempo de permanência em prisão albergue domiciliar para o cálculo da detração penal, dispositivo que permite descontar no cálculo da pena privativa de liberdade ou de medida de segurança aplicada ao final da sentença condenatória o período de prisão provisória ou de internação para tratamento psiquiátrico que a pessoa sentenciada cumpriu anteriormente. Ora, sendo a prisão albergue domiciliar cautelar uma medida que traz sérias restrições ao direito de locomoção, inclusive aplicada na maioria das vezes em substituição à decisão de prisão preventiva, nada mais justo que considerá-la para fins de detração penal, que inclusive precisa ser sopesada quando do proferimento da sentença, podendo ser determinante para fixação de um regime de cumprimento de pena menos gravoso. 
Tecidas as considerações sobre o potencial desencarcerador da prisão albergue domiciliar cautelar, as entrevistas da pesquisa auxiliam a compreender alguns desafios para que a medida tenha eficácia. Uma primeira dificuldade da concretização da medida se refere à exigência usual de juízes e juízas de comprovante de endereço. Esse requisito inviabiliza a aplicação para pessoas em situação de rua e para pessoas migrantes sem familiares ou amigos no país. Sem ter um endereço a apontar, o instituto não consegue contemplar essas pessoas, mesmo que tenham direito a acessar casas de acolhida. 
Outro obstáculo a ser superado se refere às pessoas idosas. A discrepância entre a redação do dispositivo do CPP, que prescreve como idade os 80 anos para a concessão de PAD, e o parâmetro dos 60 anos estabelecido pelo Estatuto do Idoso salta aos olhos. Mulheres com mais de 60 anos entrevistadas pela pesquisa apresentavam graves problemas de saúde, acentuados por marcadores sociais de desigualdade econômica que por vezes diminui a expectativa de vida e coloca em curso um processo de envelhecimento precoce. Para mulheres idosas há muitas dificuldades em fazer com que a medida atinja seu potencial desencarcerador. 
Parece interessante refletir sobre o fato de a prisão albergue domiciliar ser a única medida jurídica que reconhece no bojo de suas hipóteses legais aspectos dos papéis sociais construídos sob o signo do feminino - notadamente a maternidade - vide as hipóteses sobre gestantes e mães de filhos com até 12 anos. No entanto, se por um lado há um reconhecimento do lugar social da mulher para garantir sua liberdade, por outro, pode ocorrer uma reafirmação da ordem patriarcal, pois a liberdade teria como pressuposto viabilizar que a mulher corresponda à expectativa do seu papel social de gênero. 
Ademais, delimitar que mulheres permaneçam exclusivamente no espaço privado pode acarretar dificuldades em exercer sua autonomia e liberdade. Há uma premissa falaciosa de que o espaço privado seja naturalmente acolhedor e seguro para as mulheres. De fato, não há dúvidas de que as possibilidades de existência digna sejam maiores em casa do que no ambiente prisional. Todavia, ao equacionarmos as outras dimensões de violências de gênero que as mulheres sofrem, como a violência doméstica, restringir o trânsito de uma mulher à sua casa pode prejudicar sua garantia de direitos, desde dificultar o enfrentamento da violência doméstica até mesmo conseguir independência financeira por meio de trabalho externo. Notamos por meio de nossas entrevistas que, para algumas mulheres, o confinamento domiciliar pode agravar outras formas de violências, e portanto, por si só, não garante o respeito à dignidade e integridade física, moral e psicológica de todas as mulheres.
A síntese das potencialidades e desafios da prisão albergue domiciliar cautelar revela que não há uma única resposta jurídica que contemple todas as mulheres em suas multiplicidades. Há uma necessidade primordial de que os agentes do sistema de justiça, principalmente sua defesa, busquem romper com o imaginário de uma mulher abstrata e universal, passando a reconhecê-las como indivíduos concretos, inseridos em uma realidade estruturalmente opressora de mulheres. Desse modo, é importante que a defesa não priorize automaticamente a prisão albergue domiciliar como melhor alternativa a toda e qualquer mulher, sem antes atentar para as demais medidas cautelares do artigo 319, do CPP. Para isso, a escuta da fala das mulheres no que se refere às diversas condições materiais e subjetivas de vida é um caminho para que a tão esperada liberdade não desencadeie outras formas de controle das mulheres.

gate-191675_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

Prisão albergue domiciliar cautelar para mulheres

Potencialidades e desafios