Bruno Calabrich

O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, ajuizou, em 21/05/2021, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para, em resumo, impedir “cautelares e decisões judiciais que ocasionem restrições a direitos fundamentais de cidadãos sem prévia oitiva do Ministério Público” (MP)<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Trata-se da ADPF n.º 847, em que o Ministério Público Federal (MPF) elenca diversos dispositivos legais que versam sobre diligências investigativas e sobre decisões judiciais proferidas com base em representações apresentadas por autoridades policiais e que, em tese, prescindiriam da anterior participação do MP. O pedido do PGR é de suspensão da aplicação das normas “naquilo que dispensam a prévia manifestação do Ministério Público na decretação judicial de medidas cautelares para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Eis os dispositivos apontados na ADPF: (i) arts. 3º-B, V, VI, VII, VIII, IX e XI, 127, 156, I, 242, 282, §§ 2º, 4º e 5º, e 311 do Decreto-Lei 3.689, de 3/10/1941 (Código de Processo Penal), com alterações das Leis 11.690, de 9.6.2008, e 13.964, de 24/12/2019; (ii) arts. 3º, caput e I, e 8º-A, caput, da Lei 9.296, de 24/7/1996 (interceptação de comunicações telefônicas), com alterações da Lei 13.964/2019; e (iii) art. 2º, caput, da Lei 8.038, de 28/5/1990 (normas procedimentais para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), c/c o art. 230-C, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, incluído pela Emenda Regimental 44, de 2/6/2011.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a> 
A iniciativa foi apresentada pelo PGR apenas 2 dias após terem sido deflagradas diversas medidas cautelares ostensivas, por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, numa investigação que envolve o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, (a denominada “operação Akuanduba”) e na qual se apura um suposto – e gigantesco – esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Os fatos são aparentemente gravíssimos e merecem rigorosa apuração. O ponto que aqui se destaca, entretanto, é outro: as medidas foram cumpridas sem manifestação e nem mesmo ciência prévia do Procurador-Geral da República. Não se tem registro de que algo parecido tenha acontecido antes na história do Tribunal, o que, segundo veiculado<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, pode indicar existir hoje um profundo desgaste nas relações entre PGR e STF. As razões que levaram a esse cenário são assunto que não cabe aqui analisar. O registro é feito apenas para lamentar que uma ADPF tão importante, sobre um tema tão caro quanto incompreendido, tenha sido ajuizada nesse contexto. Casos específicos não deveriam ter nada a ver com esse debate. Devemos confiar que o STF assim julgará a ADPF 847 – quem sabe num momento menos conturbado.
Os argumentos centrais da ADPF 847 são de que a determinação de diligências policiais constritivas de direitos na fase investigativa, de ofício ou mediante representação da autoridade policial, sem o requerimento ou a manifestação prévia do Ministério Público violam o sistema penal acusatório e os arts. 5º, LIV (deveres de inércia e de imparcialidade do magistrado que derivam do princípio do devido processo legal substantivo), 103, § 1º (oitiva prévia do Procurador-Geral da República em todos os processos de competência do STF), e 129, I, VII e VIII (funções institucionais do Ministério Público de promover privativamente a ação penal pública, exercer o controle externo da atividade policial e requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial), da Constituição Federal.
A tese apresentada pelo PGR na ADPF 847 está correta. Todavia, considerando o que foi pedido, a iniciativa foi tímida.
Em verdade, não é que “cautelares e decisões judiciais que ocasionem restrições a direitos fundamentais de cidadãos” dependam simplesmente da “oitiva” do Ministério Público. Num sistema que queira se afirmar acusatório, o Judiciário não pode decretar tais medidas (1) de ofício, nem (2) sem que haja um pedido expresso do titular da ação penal. Isso quer dizer que não basta que o MP dê um “parecer”, que “opine”, concordando ou discordando da representação feita pela polícia: ele, MP, tem que pedir. Lembre-se: a representação policial, ato praticado por uma autoridade administrativa que não é parte, não se confunde com pedido em sentido técnico processual penal. Pedido quem formula é... a parte.
<blockquote class="jota-article__eye">Num processo penal cautelar, ou no qual o Judiciário seja chamado a decidir, em sede de investigação criminal, sobre alguma medida que acarrete restrições a direitos fundamentais de cidadãos – como em matéria de prisões, buscas e apreensões domiciliares e compartilhamento de informações protegidas por sigilo bancário – o Ministério Público não deve simplesmente “opinar”.</blockquote>
Opinar é uma atividade consultiva, desvinculada, a princípio, de qualquer interesse. Hodiernamente, o MP, no processo penal e em qualquer outro processo no qual deva intervir, só o faz precisamente por estar vinculado a um interesse (público) que dirige e limita sua atuação. O interesse público que impõe sua manifestação, qualquer que seja a natureza do processo, é previsto em leis específicas e, de forma geral, pelo art. 127, caput, da Constituição: é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
No caso das cautelares processuais penais, se o MP concorda com a representação da autoridade policial, deve ele, MP, afirmar que acolhe a representação e, consequentemente, em nome do MP, requerer, em seu nome e por legitimidade própria, que o juiz autorize a medida X ou Y. Se discordar e não acolher a representação da autoridade policial, o MP deve, sempre fundamentadamente, promover o arquivamento da representação. Nesse último caso, ao juiz, eis que não há pedido do titular da ação, caberá arquivar os autos ou, excepcionalmente, aplicar a regra do art. 28 do CPP<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. É essa a interpretação constitucionalmente possível dos dispositivos legais que conferem à autoridade policial a legitimidade/atribuição para formular representações por medidas cautelares.
Como explica Wellington Saraiva<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>:
“Em todos os casos de cautelares probatórias no Processo Penal, quando se trate de ação penal de inciativa pública, o órgão legitimado a ajuizar a ação principal (isto é, a ação penal condenatória) é o Ministério Público, em caráter privativo, por força de norma constitucional expressa. (...) A polícia judiciária não possui capacidade postulatória nem legitimidade para promover ação penal de espécie alguma, seja condenatória, executória, seja cautelar. Por outro lado, o juiz não pode agir de ofício na fase pré-processual da persecução penal, por força do princípio dispositivo ou da ação (ne procedat judex ex officio) e do princípio acusatório (...). A consequência lógica e jurídica dessas premissas é que toda medida cautelar precisa de impulso prévio por parte do órgão legitimado ao Processo Penal, que é o Ministério Público”.
A compatibilização entre os dispositivos impugnados na ADPF 847 e a Constituição de 1988 é perfeitamente possível, desde que baseada numa interpretação tão simples quanto unívoca: quando a lei se refere à representação policial, deve-se interpretá-la como uma providência a ser endereçada ao Ministério Público, a quem compete rejeitá-la ou acolhê-la – nesse caso, formulando, a partir daí, um pedido ao Poder Judiciário.
Segundo Rafael Rayol<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>:
“(...) as medidas cautelares penais, aqui entendidas como todas as medidas investigativas produzidas sem a ciência dos investigados e em relação às quais a Constituição determina a prévia autorização judicial para sua realização, dada a imperiosa necessidade de flexibilização judicial de garantias fundamentais da pessoa, como, por exemplo, buscas e apreensões domiciliares, interceptações telefônicas, etc., devem sempre ser diretamente promovidas pelo Ministério Público. Este, avaliando se os requisitos estão preenchidos, se há necessidade da prova para a apuração dos fatos e se é conveniente a sua produção em determinado momento da investigação ou da instrução processual, apresentará à Justiça os requerimentos devidamente fundamentados, independentemente de se tratar de investigação própria ou conduzida pela polícia.
Aqui, participo que à legislação processual penal deve ser dada interpretação conforme à Constituição, notadamente sob a ótica do sistema acusatório. Logo, sempre que a lei falar que determinada medida cautelar penal pode ser formulada por representação da autoridade policial, deve-se entender que tal representação precisa ser dirigida ao Ministério Público.”
Não há, nessa interpretação, nenhum demérito à atividade do juiz nem da polícia. Admitir que o Poder Judiciário determine medidas constritivas sem a manifestação ou, pior, contra a manifestação do titular da ação penal é despir o juiz de sua toga e vesti-lo com a toga do promotor de Justiça. Não é o melhor desenho, caso se pretenda caminhar para um sistema mais próximo de um sistema acusatório ideal.
O debate proposto não pode ser confundido com “corporativismo”, tentação tão corriqueira quando estão em jogo as atribuições das carreiras jurídicas no Brasil. Muito diversamente, essa interpretação pressupõe um claro delineamento dos papéis a serem desempenhados pelos sujeitos no processo penal, com todos os ônus a isso inerentes (correicionais, administrativos penais e cíveis) relacionados a eventuais abusos. A consequência última dessa interpretação é a limitação do poder do Estado em face do cidadão. Não menos importante, essa conformação também exige dos membros do MP que realmente assumam a responsabilidade por tais medidas. Afinal, ao menos nas ações penais públicas, é ele o destinatário de todo o trabalho produzido na investigação e somente a ele caberá a importante decisão sobre acusar ou não acusar alguém. Uma decisão técnica e desapaixonada sobre o tema torna-se ainda mais urgente em tempos nos quais são rotineiras arguições de parcialidade lançadas, justa ou injustamente, contra membros do Poder Judiciário das mais variadas instâncias.
Um processo penal garantidor dos direitos fundamentais de réus e investigados, assim como dos direitos fundamentais de vítimas e de toda a sociedade, demanda que cada sujeito processual desempenhe com rigor a função que lhe é própria, sem carências nem excessos. É o que impõe nossa Constituição – se é que entendemos que a Carta de 1988 realmente consagra um modelo processual penal fundado no princípio acusatório.
<hr />
<div id="teste3-99b6e4ed7825b47581be" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm();</script> 
<script type="text/javascript">
setTimeout(function(){
 const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n")
 const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg")
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 check.addEventListener("click", function() {
 if (check.checked){
 btn.disabled = false;
 btn.style.opacity = 1;
 } else {
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 }
 });
}, 3000);
</script>
<hr />
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> &lt;http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6183829&gt;
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> &lt; https://www.jota.info/stf/do-supremo/ricardo-salles-e-alvo-de-operacao-da-pf-contra-exportacao-ilegal-de-madeira-19052021&gt;
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> &lt; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/sem-precedentes/como-a-operacao-policial-contra-salles-autorizada-pelo-supremo-acertou-na-pgr-21052021&gt;
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Na redação ainda vigente, conforme decisão liminar do STF nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6298, 6299, 6300 e 6305 (que suspendeu a eficácia de alguns dispositivos da chamada “Lei Anticrime” (Lei 13.964/2019): “Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SARAIVA, Wellington Cabral. Legitimidade exclusiva do Ministério Público para o processo penal cautelar. In Garantismo Penal Integral. CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo. São Paulo: Atlas, 4. Ed. 2017, p. 168-169.
<a href="applewebdata://9A574756-7D56-4795-8BFF-FB8810CCCDA8#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> RAYOL, Rafael Ribeiro. Princípio acusatório e alguns reflexos de sua aplicação. In Desafios Contemporâneos do Sistema Acusatório. AMORIM Junior, Silvio; ARAS, Vladimir de Barros; FRISCHEISEN, Luiza Cristina; TINÔCO, Lívia Nascimento; e da SILVA, Rordrigo Antônio Tenório Corrêa (Orgs.). Brasília: Editora ANPR, 2018, p. 103-104. Disponível em: &lt;http://anpr.org.br/images/assets/uploads/files/publicacoes/q%20-%20s/Sistema_Acusatorio.pdf&gt;.

48795098011_b3e7f534a3_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Admitir que o Judiciário determine medidas constritivas sem manifestação do titular da ação penal é despir o juiz de sua toga e vesti-lo com a do promotor

Princípio acusatório, cautelares processuais penais e a ADPF 847

Admitir que o Judiciário determine medidas constritivas sem manifestação do titular da ação penal é despir o juiz de sua toga e vesti-lo com a do promotor