Phelippe Toledo Pires de Oliveira

Eduardo Cruz Silva

Observa-se nos últimos anos a busca das administrações tributárias de vários países por mecanismos de prevenção e resolução adequada de conflitos em matéria tributária, de maneira a estabelecer uma melhoria na relação com os contribuintes. Essa é, também, uma preocupação de alguns organismos internacionais como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OCDE">OCDE</a>) e a Organização das Nações Unidas (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ONU">ONU</a>).
A ONU, que vem gradualmente ganhando protagonismo em matéria tributária, com diversas iniciativas com vistas à proteção dos interesses dos países em desenvolvimento,  recentemente publicou um manual intitulado United Nations Handbook on the Avoidance and Resolution of Tax Disputes, explicitando os mecanismos que podem ser utilizados pelos países para prevenir e solucionar adequadamente os conflitos em matéria tributária<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
Reconhecendo que os conflitos entre contribuintes e administrações tributárias são, por vezes, inevitáveis, o manual explora algumas medidas para minimizá-los. Elaborado a partir dos trabalhos realizados por um subcomitê, o manual foca nas formas de se evitar e resolver os conflitos tributários no âmbito da legislação doméstica e no nível internacional, sobretudo em matéria de imposto de renda e em virtude dos tratados para evitar a dupla tributação.
Particularmente no âmbito da legislação doméstica, isto é, deixando de lado as controvérsias decorrentes dos tratados para evitar a dupla tributação, o manual enumera uma série de medidas capazes de prevenir adequadamente os conflitos tributários. Inicia por destacar a importância de legislações claras e sua correta interpretação pelas autoridades tributárias para garantir uma maior segurança jurídica.
O manual estimula a submissão de minutas normativas à consulta pública antes de sua efetiva adoção. A consulta pública permite que os interessados apresentem comentários para eventual aperfeiçoamento da proposta antes de sua edição. Também incentiva a adoção, pelas administrações tributárias, de mecanismo de resposta à consulta formulada pelos contribuintes, sistemática conhecida em alguns países como ruling.
Uma outra prática recomendada pelo manual para evitar disputas, especialmente em matéria de preços de transferência - regras aplicáveis para combater a manipulação artificial de lucros nas transações entre partes relacionadas situadas em diferentes países - são os acordos prévios de preços de transferência. Esses acordos são comumente conhecidos pelo acrônimo APA, em razão de sua nomenclatura em inglês (advance pricing arrangements).
O manual destaca, ainda, a crescente utilização dos programas de conformidade cooperativa. Esses programas baseiam-se em uma relação de confiança e cooperação entre a administração tributária e os contribuintes. Estimula-se a maior transparência em troca de segurança jurídica: os contribuintes fornecem informações além daquelas que são obrigados a apresentar; em troca, a administração apresenta seu entendimento prévio sobre a operação.
Outra iniciativa aventada no manual é o emprego de auditorias conjuntas em que as autoridades tributárias de dois ou mais países se juntam para formar uma só equipe que irá conduzir a fiscalização de determinado contribuinte. Essa conjugação de forças auxilia na obtenção de informações e resolução rápida de eventuais questões, contribuindo, assim, para a efetiva prevenção de conflitos entre administrações tributárias e contribuintes.
Por fim, outro mecanismo para prevenir e, também, para resolver conflitos tributários trazido pelo manual é a mediação. Nesse aspecto, o documento destaca dois tipos de mediação: a mediação durante o procedimento de auditoria e  a mediação realizada após a fiscalização. Esta, por sua vez,  poderá ser administrativa, quando a própria autoridade tributária fizer o papel de facilitadora, ou independente, quando essa função recair sobre um corpo independente .
No sistema tributário brasileiro, ainda prevalecem os mecanismos coercitivos de cobrança, dando-se pouca relevância aos programas de conformidade, de premiação de contribuintes regulares e aos meios alternativos de solução de conflitos tributários<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>. Mas esse quadro está mudando. A administração tributária brasileira, nas diversas esferas, parece estar atenta às iniciativas para se evitar e resolver adequadamente conflitos tributários.
Não raras vezes, normativos contendo matérias polêmicas são submetidos à consulta pública antes de sua publicação. Esse foi o caso, por exemplo, de normativos da Receita Federal do Brasil tratando do procedimento amigável, dos relatórios país a país (CbC) e Operador Econômico Autorizado (OEA). Essa prática também foi utilizada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pgfn">PGFN</a>) em relação às minutas de portaria do novo modelo de cobrança e de transação.
Mas as iniciativas do país não se limitam à submissão de minutas normativas à consulta pública. Há, também, de há muito no sistema tributário brasileiro, a previsão da consulta fiscal, que se assemelha ao ruling. Prevista no art. 161, §2º, do CTN, a consulta fiscal serve para aclarar dúvidas em relação à interpretação da lei tributária, estando regulamentada, em nível federal, pelos artigos 48 a 50 da Lei 9.430/96 3 46 a 53 do Decreto 70.235/72.
Recentemente, a <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155647">MP 1152/2022</a>, que trouxe o novo marco das regras de preços de transferência, ampliou o escopo da consulta fiscal. A medida provisória, que ainda depende de aprovação pelo Congresso Nacional,  permite uma consulta específica a respeito da metodologia de preços de transferência a ser utilizada pelos contribuintes. Trata-se de uma espécie de acordo prévio de preços de transferência, recomendado pela ONU.
Outra iniciativa importante estimulada pelo manual da ONU que, pouco a pouco, vem sendo implementada no país consiste na implementação de programas de conformidade cooperativa. O OEA, por exemplo, pode ser considerado o embrião desses programas. Baseado nas diretrizes da Organização Mundial de Aduanas, esse regime permite à administração aduaneira uma melhor gestão de riscos a partir das informações prestadas pelos operadores portuários<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
Mais recentemente, surgiram outras iniciativas no país com características semelhantes aos programas de conformidade cooperativa. Há alguns anos, o estado de São Paulo implementou o programa Nos Conformes. O programa é baseado em sistema de classificação dos contribuintes (A+ a E), de acordo com o cumprimento das suas obrigações tributárias relativas ao ICMS. Outros estados seguiram no mesmo caminho.
A administração tributária federal também tem buscado adotar iniciativas de conformidade cooperativa. Interessante, a esse respeito, que o manual da ONU traz como exemplo dessas medidas o programa Pró-Conformidade, projeto que intentava implementar um programa do gênero no Brasil, mas que foi abandonado. Não obstante, serviu como precursor do projeto piloto do Confia, programa atualmente em desenvolvimento pela Receita Federal<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>.
Por outro lado, não se tem notícia da utilização de auditorias conjuntas para fiscalização, podendo-se pensar em sua expansão. De igual forma, mesmo tendo sido estimulada pela Recomendação CNJ 120/2021, a mediação tributária é ainda pouco utilizada<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>. Porto Alegre foi uma das primeiras cidades a implementá-la<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>. O PLP 124/2022 e o PL 2485/2022, em discussão no Congresso, se aprovados, ajudariam a ampliar a utilização da mediação tributária.
Enfim, os exemplos acima indicam que o país está cada vez mais alinhado às diretrizes da ONU para prevenção e solução de conflitos tributários. Mas não se iludam. Ainda há muito a melhorar. Inúmeros normativos não são submetidos à consulta pública; a consulta fiscal ainda é subtilizada; os programas de conformidade cooperativa estão em fase inicial, sendo difícil a sua avaliação; as auditorias conjuntas e a mediação podem - e devem - ser expandidas. O aprimoramento dessas medidas permitirá que o alinhamento seja ainda maior.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1"></a>[1] UN Handbook on Avoidance and Resolution of Tax Disputes. Disponível em: <a href="https://www.un.org/development/desa/financing/document/un-handbook-avoidance-and-resolution-tax-disputes">https://www.un.org/development/desa/financing/document/un-handbook-avoidance-and-resolution-tax-disputes</a>.
<a href="#_ednref2" name="_edn2"></a>[2] Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. – Brasília: CNJ, 2022, p. 287. Disponível em: <a href="https://www.cnj.jus.br/publicacoes-justica-pesquisa/">https://www.cnj.jus.br/publicacoes-justica-pesquisa/</a>.
<a href="#_ednref3" name="_edn3"></a>[3] Para informações mais detalhadas, ver o sítio da Organização Mundial das Aduanas. Disponível em: http://www.wcoomd.org/en/topics/facilitation/instrument-and-tools/frameworks-of-standards/safe_package.aspx
<a href="#_ednref4" name="_edn4"></a>[4] Sobre o estágio atual do Confia, conferir: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-polemica-medida-provisoria-1-160-2023-e-os-programas-de-conformidade-cooperativa-07022023">A polêmica Medida Provisória 1.160/2023 e os programas de conformidade cooperativa - JOTA</a>.
<a href="#_ednref5" name="_edn5"></a>[5] Acerca da mediação tributária, conferir: <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/contencioso-tributario/mediacao-tributaria-tem-pouco-destaque-no-brasil-e-e-trocada-por-transacao-31082021">Mediação tributária tem pouco destaque no Brasil e é trocada por transação (jota.info)</a>.
<a href="#_ednref6" name="_edn6"></a>[6] Sobre a mediação tributária em Porto Alegre, conferir: <a href="https://prefeitura.poa.br/smf/noticias/porto-alegre-e-primeira-capital-brasileira-ter-mediacao-na-area-tributaria">Porto Alegre é a primeira capital brasileira a ter mediação na área tributária | Prefeitura de Porto Alegre</a>. A esse propósito, conferir também: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/porto-alegre-sera-primeira-capital-a-ter-mediacao-na-area-tributaria-24022022">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/porto-alegre-sera-primeira-capital-a-ter-mediacao-na-area-tributaria-24022022</a>

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JOTA

Está o Brasil no caminho das diretrizes da ONU?

Prevenção e solução de conflitos tributários

O Brasil está cada vez mais alinhado às diretrizes da ONU para prevenção e solução de conflitos tributários, mas ainda há muito a melhorar