Rafael Alves

O que se entende por “prevenção de disputas”? O que se pretende transmitir com esta expressão? Comecemos explicando o que ela não é. Prevenção de disputas não se confunde com mediação, conciliação, “dispute board” ou “dispute system design”, embora tenha princípios, conceitos e técnicas em comum com todos esses métodos.
A melhor definição da prevenção de disputas é aquela que a situa dentro de uma linha contínua com duas extremidades: (i) na primeira delas, estão as interações humanas em diferentes cenários, desde a relação entre executivos dentro de um órgão colegiado de uma companhia que precisa tomar decisões e providências práticas, no qual muitas vezes se busca o consenso (uma diretoria ou um conselho de administração, por exemplo) até as interações humanas envolvidas na negociação e redação de um contrato; (ii) na outra extremidade, está a resolução de disputas por meio de métodos impositivos como o processo judicial e a arbitragem (chamados de “heterocompositivos”, porque a decisão é imposta às partes por um terceiro neutro, cuja decisão é definitiva, final e vinculante, estando apta a se tornar coisa julgada; no caso do direito brasileiro, decisão de um árbitro ou juiz).
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Entre essas duas extremidades está a disputa, a eclosão de um conflito. Nesta ilustração, a prevenção de disputas está situada entre o início das interações humanas em uma das extremidades e a eclosão da disputa no meio do caminho: é o conjunto de princípios, conceitos e técnicas aplicados em interações humanas antes do surgimento de uma disputa justamente com o objetivo de prevenir que a disputa ocorra.
Assim, a prevenção de disputas objetiva tratar adequadamente os dissensos e os impasses para que eles não evoluam ou escalem para uma disputa. Impasses e dissensos são inevitáveis em quaisquer interações humanas.
Na verdade, em boa medida, eles são necessários e saudáveis. Por exemplo, um colegiado diverso, com multiplicidade de perspectivas e visões de mundo heterogêneas tende a ser mais propenso a dissensos e, portanto, tende a produzir decisões mais qualificadas. Dissensos são bem-vindos e devem ser celebrados como oportunidades, como momentos propícios ao surgimento de novas ideias, de soluções mais criativas para os problemas que se apresentam cotidianamente. Tudo isso representa o lado positivo dos dissensos.
O seu lado negativo é que ele também possui um enorme potencial destruidor e desagregador. Destruidor de relações humanas, destruidor de valor. Dissensos podem evoluir rapidamente para irritações, agressões, atos de desrespeito, atos de violência, rompimentos. É muito tênue a linha que separa a espiral negativa do dissenso (escalando-o rapidamente para a disputa) do fluxo positivo que o transforma em soluções criativas e eficazes. Tudo depende de como o dissenso é tratado. O conteúdo importa muito, mas também a forma. Palavras importam, gestos importam, expressões verbais e não verbais importam. Em última análise, os relacionamentos importam muito, assim como os diálogos que os nutrem. Nada disso pode ser negligenciado nas interações humanas e, muito menos, no contexto da prevenção de disputas.
Os princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas existem justamente para canalizar todo o potencial do dissenso para o lado positivo. Mas não é só. A prevenção de disputas também pode atuar quando ainda não há qualquer dissenso, apenas a necessidade de aprimorar a comunicação ou mesmo para fortalecer o relacionamento e as interações humanas, tornando-as mais efetivas.
A prevenção de disputas trabalha com técnicas de escuta ativa, comunicação empática, construção de confiança, abertura dos diálogos, nutrição de relacionamentos. Essa é a sua base. Essa base também é comum a tantos outros métodos e procedimentos, como a mediação, a conciliação, o “dispute board” e o “dispute system design”, mencionados acima.
Nem por isso esses métodos se confundem com as técnicas que utilizam. Nenhum método tem a prerrogativa de tentar se apropriar, por exemplo, das técnicas de escuta ativa, que são tão caras a tantos procedimentos e métodos, em tantas dimensões das interações humanas.
Essa separação mais precisa dos conceitos também permite associações e combinações condizentes com a complexidade da realidade prática, ao mesmo tempo que não criam “amarras” desnecessárias, nem rótulos rígidos ou “caixinhas” estanques, que engessam o pensamento. No campo da prevenção e da resolução de disputas, flexibilidade, criatividade e liberdade de pensamento são fundamentais.
<h3>Contexto histórico e atual</h3>
Colocados os conceitos de forma clara, pode-se dizer que, de certa forma, a prevenção de disputas já existe há muito tempo, é técnica milenar. Na verdade, acompanha a humanidade desde os primórdios, ainda que não se tivesse produzido conhecimento rigoroso e científico a esse respeito senão muito recentemente.
Hoje em dia, a maioria dos líderes, executivos, administradores, gestores, advogados e outros profissionais já utilizam técnicas de prevenção de disputas em seu dia a dia, em todas as indústrias e setores econômicos, ainda que muitos não tenham consciência disso, ou mesmo clareza dos conceitos e princípios que eles mesmos já estão aplicando na prática.
A despeito dessa difusão no uso de princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas ao redor do mundo, nos mais diversos setores, curiosamente, há uma enorme lacuna na literatura e na produção científica e bibliográfica a respeito do tema. São escassos os estudos, as teses, as dissertações e os livros específicos sobre esta temática. Alguns dos princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas podem ser encontrados de forma esparsa e difusa em obras a respeito de negociação, mediação, conciliação, "dispute boards" e "dispute system design"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em outras palavras, o conhecimento científico existe, começou a ser produzido de forma rigorosa apenas mais recentemente, nas últimas décadas, mas, de forma geral, os trabalhos ainda não poucos e escassos e, de todo modo, não estão sistematizados em torno de uma vertente específica, dedicada exclusivamente à perspectiva preventiva. Pode-se dizer, portanto, que o conhecimento científico nesta área ainda não é condizente com a difusão que esses princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas já possuem na realidade prática, não é condizente com a relevância da sua aplicação cotidiana. Daí a necessidade de se aprimorar essa organização e sistematização.
<h3>Chegou a hora de se organizar o conhecimento</h3>
Quais são as vantagens e benefícios de se organizar o conhecimento sobre princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas em pesquisas, estudos e publicações específicas dessa temática?
Primeiro, a própria sistematização do conhecimento, que, por si só, possui diversos benefícios, como, por exemplo, a facilitação do acesso a esse mesmo conhecimento, sua difusão e expansão, formação de novas gerações de estudiosos, incremento dos debates científicos a respeito do tema etc.
Segundo, o mapeamento adequado de princípios, conceitos e técnicas aplicáveis em prevenção de disputas, que possam ser reproduzidos em outros contextos ou mesmo em outros casos.
Terceiro, o compartilhamento de experiências bem-sucedidas e também daquelas malsucedidas. Experimentar e errar são atitudes fundamentais para a inovação em qualquer área do conhecimento humano e, em especial, neste campo de prevenção e resolução de disputas.
Quarto, a própria evolução dos princípios, conceitos e técnicas e a busca pelo seu aprimoramento constante, com ajustes, adequações, atualizações. Esses são apenas alguns dos benefícios — dentre muitos outros — que podem ser obtidos a partir da sistematização do conhecimento em torno da prevenção de disputas.
<h3>Novas iniciativas e aplicações práticas</h3>
Nesse contexto, no início de 2021, o CPR International Institute for Conflict Prevention &amp; Resolution <a href="https://www.cpradr.org/resource-center/adr-pledges/dispute-prevention-pledge-for-business-relationships">lançou um compromisso público</a> (“pledge”) de prevenção de disputas empresariais que pode ser assinado por qualquer empresa ou entidade, em qualquer lugar do mundo.
Com a adesão, a empresa ou entidade signatária endossa o compromisso público do CPR e passa a colaborar com a difusão e a conscientização em torno da prevenção de disputas. Além disso, o CPR também <a href="https://www.cpradr.org/resource-center/dispute-prevention">lançou uma plataforma</a>, em domínio público, com diversos materiais e recursos sobre prevenção de disputas. Além de contribuir enormemente para aquele ideal de organização do conhecimento exposto acima, essa recente iniciativa do CPR também possui o benefício de dar maior concretude e clareza em relação às aplicações práticas nesta temática de prevenção de disputas.
A partir dos materiais disponibilizados pelo CPR, é possível identificar diversos momentos em que os princípios, conceitos e técnicas podem ser colocados em prática: desde a negociação e a redação de contratos, até o estabelecimento de mecanismos internos nas próprias empresas e em seus órgãos colegiados para se criar uma cultura efetiva de prevenção de disputas e políticas condizentes com tal cultura (incluindo as políticas de remuneração dos executivos), passando por iniciativas conjuntas envolvendo parceiros, clientes e fornecedores que tenham relações duradouras e continuadas, e também a contratação de terceiros neutros ou mesmo comitês de neutros que possam auxiliar os contratantes no fortalecimento dos seus relacionamentos e na (re)construção da confiança para que possam seguir adiante em suas parcerias comerciais.
São muitas e variadas as possíveis aplicações práticas dos princípios, conceitos e técnicas de prevenção de disputas. A experiência comprova que, muitas vezes, a simples criação de ambientes e momentos propícios para que executivos possam se encontrar para discutir o andamento da execução de determinado contrato estratégico, monitorar a “saúde” de seu relacionamento empresarial e cogitar problemas que possam ocorrer no futuro e como evitá-los já pode trazer resultados extremamente efetivos. Empresas que ainda não possuem uma cultura de prevenção de disputas, recomenda-se começar aos poucos, com um “projeto piloto”, focado nos contratos mais estratégicos, e ir expandindo gradualmente.
<h3>Vantagens e utilidade prática</h3>
Como se percebe, são diversas as vantagens associadas à adoção de boas práticas de prevenção de disputas. Dentre elas, cabe ressaltar, em primeiro lugar, a enorme redução de custos e a mitigação do desperdício de tempo e recursos em geral. É muito mais barato, mais fácil, mais rápido e menos traumático prevenir disputas do que ter que resolvê-las posteriormente por algum método impositivo (heterocompositivo), como o processo judicial ou a arbitragem.
Um processo contencioso padrão tende a consumir muitos recursos, tempo e energia das empresas e de seus colaboradores. Ademais, métodos impositivos também tendem a perturbar as relações empresariais duradouras. Técnicas de prevenção de disputas, ao contrário, ajudam a nutrir os relacionamentos, construir ou ampliar a confiança entre os contratantes, além de ajudar a preservar a reputação e a imagem das empresas.
Para que todas essas vantagens possam ser, de fato, obtidas, é fundamental que as lideranças das empresas estejam alinhadas com esta visão de buscar a prevenção de disputas. Políticas e diretrizes internas das empresas precisam, igualmente, convergir na mesma direção de criar incentivos para a prevenção de disputas.
É preciso também sair da mentalidade de curtíssimo prazo e buscar métricas de médio e longo prazo. Os investimentos que são feitos hoje em prevenção de disputas podem levar anos para apresentar resultados, mas o seu efeito é real e tende a ser duradouro. Precisamos de empresas mais vocacionadas ao médio e longo prazo. A utilidade prática da prevenção de disputas dificilmente é percebida no curtíssimo prazo. Empresas focadas em resultados de curtíssimo prazo sempre terão dificuldades ou maior resistência para adotar práticas de prevenção de disputas.
<h3>Conclusão</h3>
Via de regra, empresas não vivem de disputas. Os seus propósitos costumam envolver outros aspectos, fora do ambiente contencioso. Nesse contexto, disputas são obstáculos no caminho de empresas que estão em busca de seus propósitos e, por isso, devem ser adequadamente equacionadas.
Muito se discute, hoje em dia, sobre a importância de se aprimorar as regras de governança corporativa e os mecanismos de conformidade (compliance), especialmente dentro de três dimensões: corporativa, social e ambiental — o que levou ao surgimento e difusão da sigla em inglês <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/compliance-na-pratica/esg-e-compliance-09122021">ESG (“Environmental, Social and Governance”)</a>. Mas de nada adianta o discurso ESG e a promoção de determinada empresa como supostamente “humanizada” se, na prática, essa mesma empresa continua reproduzindo velhos padrões e paradigmas obsoletos na gestão de suas disputas, destruindo valor ao invés de criá-lo, pressionando indevidamente fornecedores e parceiros comerciais, minando a sua confiança etc.
O mundo precisa de pessoas e empresas mais dispostas a, de fato, colocar em prática técnicas preventivas. É preciso romper com o velho paradigma de que departamentos jurídicos de empresas devem ser apenas reativos, agindo somente quando (e na medida em que) surge determinado problema. Advogados vivem “apagando incêndios”. Talvez tenha chegado a hora de eles e elas também colaborarem para evitar que o incêndio surja antes de tudo, para que a empresa possa então se concentrar naquilo que ela sabe fazer melhor: perseguir o seu propósito, cumprir a sua missão. Ao longo do tempo, os recursos econômicos caminham em direção à sua alocação mais eficiente. Esse é o seu caminho natural.
A prevenção é o caminho natural da gestão de disputas, representando a alocação mais eficiente dos recursos de uma empresa nesse campo. Nem todas as disputas são evitáveis, mas talvez uma boa parte delas seja. Isso não será apenas o futuro, já pode se tornar o presente.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ver, por exemplo, Diego Faleck. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 146-148.

disputa

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JOTA

É preciso romper com o paradigma de que departamentos jurídicos de empresas devem ser apenas reativos

Prevenção de disputas: conceitos, histórico e aplicação prática

Prevenção de disputas ajuda a romper com o velho paradigma de que departamentos jurídicos de empresas devem ser apenas reativos