Dalmo Palmeira

Virgínia de Ângelis

Nesta segunda-feira, 4 de abril, encerra-se o prazo para que o presidente da República finalize e encaminhe ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/congresso-nacional">Congresso Nacional</a> a sua prestação de contas quanto à aplicação dos recursos públicos federais no exercício de 2021.
É o primeiro de uma série de prazos estabelecidos pela Constituição Federal e outros normativos para um processo-chave em uma democracia, que deveria culminar no julgamento das contas pelo Legislativo.
Contudo, a história recente do Brasil mostra que há poucas chances de que o processo referente às contas de 2021 seja finalizado. De 34 contas apresentadas ao Congresso desde a promulgação da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição de 1988</a> até 2021 (em 1992 foram apresentadas duas prestações de contas), apenas 12 tiveram um veredito final.
Isso quer dizer que, desde a redemocratização, o julgamento das contas do chefe do Executivo deixou de ocorrer em aproximadamente dois terços das ocasiões previstas, sendo a última delas há quase 20 anos, quando foram julgadas as contas de 2001.
A prática de acumular contas presidenciais sem apreciação não reflete a intenção do constituinte original, que estabeleceu prazos e diretrizes bem definidas para que o processo de prestação de contas ocorra anualmente.
Ao chefe do Executivo, foi estabelecido o prazo de 60 dias a contar da abertura da sessão legislativa para que apresente as contas anualmente; se não cumprir, a Câmara dos Deputados deve tomar as contas, compulsoriamente. Por seu turno, ao Congresso Nacional foi atribuída a competência de “julgar anualmente” as contas presidenciais.
Abrir mão desse poder-dever possui relevantes implicações, cuja compreensão passa pelo entendimento da dimensão desse momento. Com ele ocorre o efetivo encerramento do ciclo orçamentário, quando representantes legitimamente eleitos atestam o correto e bom uso dos recursos públicos. A anualidade da prestação de contas segue, portanto, a anualidade orçamentária.
Se, como afirmou Carlos Ayres Britto, “a lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico, logo abaixo da Constituição” (ADI 4048/DF), a prestação das contas relativas a essa lei pode ser considerada um dos ápices do regime democrático.
Nessa esteira, o primeiro efeito decorrente do não julgamento das contas presidenciais é que o Congresso Nacional tem, reiteradamente, renunciado a uma das suas atribuições mais relevantes. A função fiscalizadora dos representantes eleitos pela sociedade sobre os gastos realizados pelo maior mandatário do país ao longo de um ano é uma das razões de existir do Poder Legislativo.
Trata-se de um importante mecanismo que assegura o bom funcionamento do sistema de freios e contrapesos, por meio do qual o Legislativo verifica e atesta que os gastos autorizados na lei orçamentária anual foram aplicados corretamente, cumprindo as regras que delimitam a sua aplicação e atendendo ao que foi pactuado para o exercício.
Para além disso, a apreciação das contas possibilita à sociedade saber se seus recursos, transferidos ao Estado na forma de pagamento de impostos, foram utilizados pela Administração Pública dentro da legalidade, de forma impessoal, respeitando princípios morais, de forma transparente e eficiente.
O julgamento das contas presidenciais pelo Congresso Nacional é, portanto, etapa essencial da accountability governamental, que fortalece o controle social e municia a sociedade com informações essenciais para o pleno exercício da cidadania. Tamanha é a relevância desse momento para a sociedade, que a Lei de Responsabilidade Fiscal determina que seja dada ampla divulgação do resultado do julgamento (art. 56, § 3°).
Mais ainda, a conclusão dessa etapa constitui valiosa fonte de aprendizado que deve retroalimentar o ciclo orçamentário. Informações e entendimentos que resultem da deliberação legislativa sinalizam o que deve e o que não deve ser feito nas gestões seguintes, propiciando o aperfeiçoamento contínuo de todo o processo orçamentário.
É verdade que a certificação das contas pelo Tribunal de Contas da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">TCU</a>), etapa anterior ao julgamento pelo Congresso, já fornece insumos relevantes para esse aperfeiçoamento. As análises e conclusões que resultam no parecer prévio emitido pela Corte de Contas fornecem evidências qualificadas sobre o que precisa ser aprimorado, corrigido ou modificado na gestão dos recursos públicos federais.
De toda sorte, em que pese a elevada qualidade técnica da manifestação do TCU, ela possui natureza essencialmente opinativa em relação às contas do presidente da República. Nesse sentido, seus efeitos apenas se completarão com o julgamento pelo Congresso Nacional.
A ausência desse julgamento também impacta os próprios agentes públicos com contas pendentes, que ficam indefinidamente sujeitos a um risco político. A insegurança de não ver concluídas suas obrigações perante o Estado toma contornos mais graves se houver possibilidade de rejeição das contas. Esses casos podem suscitar o afastamento do processo eleitoral por oito anos, por força da Lei da Inelegibilidade (LC 64/1990, art. 1°, inciso I, alínea “g” e § 4°-A).
De outra banda, a morosidade mantém candidatos potencialmente inelegíveis participando dos processos eleitorais que ocorram ao longo do período de espera do julgamento definitivo de suas contas pelo Congresso Nacional.
A natureza essencialmente política do julgamento das contas presidenciais não raro é levantada como argumento para explicar a inação do Legislativo. No entanto, a simples falta de vontade política não pode servir de justificativa para que um Poder não cumpra com atribuição cuidadosamente resguardada pela Constituição Federal e legislação correlata.
A demora do julgamento diminui a qualidade do próprio julgamento. Quanto mais distante no tempo, menor será a acurácia dos julgadores, quer pela distância no tempo em relação aos fatos julgados, quer pela maior dificuldade em proceder diligências que possam esclarecer pontos dúbios do objeto julgado, quer pela intempestividade para correção de rumos de práticas que venham a ser julgadas reprováveis, quer ainda pela impossibilidade de garantir a ampla defesa aos agentes julgados, tendo em vista a dificuldade de acesso a documentos relacionados a despesas ocorridas décadas antes.
O que poderia ser feito, então? Uma possibilidade seria alteração constitucional que previsse o sobrestamento da pauta do Congresso Nacional, enquanto houver contas presidenciais pendentes de julgamento, como já ocorre em outras matérias. Previsão semelhante já existe na LRF em relação aos Tribunais de Contas, vedando-lhes o início de recesso enquanto houver contas pendentes de apreciação sob sua responsabilidade (art. 57, § 2º).
Outra possibilidade seria algum dos titulares das contas inconclusas acionar o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>), para que seja cumprido o preceito constitucional de julgamento anual de suas contas.
Enquanto o Congresso Nacional deixar dormitar dezenas de contas presidenciais em seus escaninhos, tanto a sociedade quanto os ex-mandatários titulares dessas contas estarão vivendo sob a ameaça de que, “de repente”, se descubram estes como inelegíveis e aquela, fraudada no uso de seus tributos.
À semelhança da espada que pendia sobre a cabeça de Dâmocles, personagem da Grécia Antiga, paira sobre as nossas cabeças a dúvida quanto à conformidade e aos resultados da gestão pública nas últimas décadas. No entanto, diferentemente de Dâmocles, vivemos em um Estado democrático de Direito, que tem a efetiva prestação de contas dos recursos públicos como um de seus preceitos fundamentais.
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Este texto reflete apenas as opiniões pessoais dos autores, não os entendimentos dos órgãos aos quais os autores se vinculam.

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