Paulo Casagrande

Clarissa Oliveira

Arthur Felipe Azevedo Barretto

<p align="justify">No atual cenário de enforcement integrado, autoridades administrativas e criminais atuam em conjunto na apuração de condutas delitivas praticadas por empresas e indivíduos. Dimensão extremamente relevante desse quadro é a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em investigações de cartéis, muitas das quais se dão em paralelo e de forma coordenada com órgãos de persecução criminal. É ilustrativo de tal desenvolvimento o fato de que, das três diligências de busca e apreensão realizadas pelo CADE neste ano de 2018, todas se referiam a supostos cartéis em licitações e foram executadas em conjunto com órgãos do Ministério Público, tanto Federal quanto Estaduais.<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a></p>
<p align="justify">O relacionamento entre as esferas administrativa e criminal não se dá apenas no âmbito da cooperação interinstitucional, mas também em um aspecto bastante importante da eficácia de normas sancionatórias: o tema da prescrição da pretensão punitiva. Isso pois, desde a edição da Lei 9.873, de 1999, prevê-se que, na esfera federal, “quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal” (art. 1º, §2º). Dispositivo idêntico consta do art. 46, § 4º, da atual Lei de Defesa da Concorrência (LDC - Lei 12.529), aprovada em 2011.</p>
<ul class="jota-article__internal-links">
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</ul>
<p align="justify">Trata-se de hipótese de exceção à regra geral de prazo prescricional de 5 anos, prevista no caput dos respectivos artigos,<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> cuja aplicação tem causado discussões importantes no âmbito do Tribunal Administrativo do CADE. Na sessão do último dia 4 de julho, o tema foi objeto de debate quando do julgamento de dois processos administrativos.<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a></p>
<p align="justify">No primeiro caso, em que foi julgado processo envolvendo alegado cartel no mercado de embalagens flexíveis,<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> o conselheiro relator João Paulo Resende já havia emitido voto seguindo a atual jurisprudência do CADE, ao definir que o prazo prescricional aplicável para o início da investigação administrativa da prática de cartel é de 12 (doze) anos, quando se considera que (i) a conduta de cartel é tipificada como crime pelo art. 4º da Lei 8.137, de 1990, com pena máxima de 5 (cinco) anos de reclusão; e (ii) nos termos do art. 109, inciso III do Código Penal, esse é o prazo de prescrição in abstrato aplicável.</p>
<p align="justify">Em voto vista, o conselheiro Maurício Oscar Bandeira Maia consignou, dentre outros aspectos, que o CADE não é autoridade competente para enquadrar o fato objeto de investigação administrativa como crime, sendo imprescindível o ajuizamento da respectiva ação penal paralela sobre os mesmos fatos para aplicação da exceção do §4° do art. 46 da LDC. Destacou também que, ainda que houvesse ação criminal sobre os mesmos fatos objetos de apuração administrativa, o prazo prescricional penal deveria atingir tão somente os sujeitos abrangidos pela denúncia do Ministério Público. Tal posicionamento, todavia, restou vencido, tendo em vista que a maioria do Tribunal decidiu por manter o posicionamento constante em precedentes anteriores de que o prazo prescricional aplicável é de 12 anos, independentemente de haver, ou não, apuração criminal paralela.</p>
<p align="justify">Discussão análoga se deu quando da apreciação de processo no âmbito do qual se investigou suposto cartel no mercado de distribuição de serviços de transporte de passageiros de táxi por meio de central telefônica na cidade de Curitiba e Região Metropolitana.<a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a> Neste caso, a conselheira relatora Paula Farani Azevedo também suscitou a questão da prescrição quinquenal como prejudicial de mérito, adotando posicionamento semelhante ao do voto vista do conselheiro Bandeira Maia no processo anterior. Ademais, consignou não ser possível haver crime em tese em relação a pessoas jurídicas, uma vez que não há previsão expressa na legislação que impute responsabilidade penal a elas este delito (exceto para crimes ambientais). O conselheiro Bandeira Maia acompanhou o voto da relatora, mas o conselheiro Paulo Burnier abriu divergência, defendendo o posicionamento atualmente vigente de que o prazo prescricional aplicável a casos de cartel é de 12 anos, independentemente de haver ou não persecução criminal simultânea ou de se referir a pessoas físicas ou jurídicas. Nisso, foi seguido pelo restante dos conselheiros presentes, e o Plenário, por maioria, rejeitou a prejudicial de mérito referente à prescrição quinquenal para o caso concreto.</p>
<p align="justify">Essa discussão extremamente relevante em curso no Tribunal Administrativo da autoridade concorrencial brasileira merece, a nosso ver, a consideração de mais um fator: as peculiaridades de apurações de supostos conluios em licitações.</p>
<p align="justify">A questão vem sendo tratada em algumas decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na esfera criminal, e pode ser relevante para a avaliação do CADE quanto ao prazo prescricional aplicável em investigações administrativas de carteis.</p>
<p align="justify">Neste ponto, convém destacar que as condutas usualmente qualificadas pelo CADE como ‘cartel’ podem, em tese, ser enquadradas em dois tipos penais. O primeiro é o já referido artigo 4º da Lei nº 8.137/90, o qual visa a proteger todo e qualquer mercado de condutas anticompetitivas. Predomina nesse caso o entendimento de se tratar de crime permanente, ou seja, sua consumação se alonga no tempo. Como visto, considerando que a pena máxima em abstrato é de 5 anos de reclusão, o prazo prescricional é de 12 (doze) anos, contados a partir da cessação das condutas anticompetitivas.</p>
<p align="justify">Por sua vez, o artigo 90 da Lei nº 8.666, de 1993, tipifica o crime de “fraude à licitação”, pelo qual se busca impedir ofensas nas ocasiões em que o consumidor é a Administração Pública, protegendo a competição em um cenário mais restrito. Nos dizeres de José Paulo Baltazar, sua consumação se dá “independentemente da efetiva adjudicação ou obtenção da vantagem econômica, sendo o crime formal, como resulta claro da leitura do tipo, ao afirmar a tipicidade da conduta praticada ‘com intuito de obter’ a vantagem”.<a href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> A pena máxima prevista para o crime é de 04 (quatro) anos de detenção; logo, a prescrição da pretensão punitiva opera em 8 (oito) anos, nos termos do artigo 109, IV, do Código Penal.</p>
<p align="justify">Nesse contexto, uma alegada conduta consistente em acordo entre licitantes distintos para eliminar a competição entre si e determinar o resultado de um processo licitatório público pode, em princípio, se assemelhar aos dois tipos penais em questão. Em tal hipótese, diante do conflito aparente de normas, apenas uma deve ser aplicada, sob pena de punir duas vezes o cidadão pelo mesmo fato, caracterizando bis in idem.</p>
<p align="justify">O STJ enfrentou o tema recentemente em importante decisão nos autos do Recurso Especial nº 1.623.985/SP,<a href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a> na qual foram abordados os distintos aspectos necessários para a configuração do crime de ‘cartel’, de um lado, e o de ‘fraude à licitação’, de outro. No caso concreto, em apertada síntese, indivíduos foram denunciados pela suposta prática dos crimes de formação de cartel e fraude à licitação em concurso formal, pois teriam celebrado acordo anticompetitivo em determinado procedimento licitatório da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô-SP) no segundo semestre de 2004.</p>
<p align="justify">Contudo, o juiz de primeiro grau entendeu que o crime de cartel teria sido absorvido, com base no princípio da especialidade, pelo delito de fraude à licitação. Assim, o magistrado recebeu a denúncia apenas com relação a este tipo penal e, na sequência, considerando a sua natureza formal, reconheceu a ocorrência de prescrição, uma vez que teriam transcorrido mais de 08 (oito) anos entre a data dos fatos e o recebimento da denúncia.</p>
<p align="justify">O Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que reformou a decisão proferida em primeira instância e determinou que a denúncia oferecida contra os indivíduos fosse recebida em sua integralidade. Aquela corte concluiu que as empresas envolvidas teriam formado um cartel, o qual, após constituído, serviu de meio para fraudar licitação pública, acatando, portanto, a possibilidade da imputação dos dois crimes em concurso formal ou material.</p>
<p align="justify">Ao julgar o Recurso Especial, o STJ destacou que, para a configuração do crime de cartel, exige-se a demonstração de que os acordos, ajustes ou alianças entre concorrentes tenham como finalidade o “domínio de mercado”, que estaria consubstanciado por uma “posição de força econômica de que goza uma empresa, que lhe permite impedir a manutenção de uma concorrência efetiva no mercado relevante”. Como no caso concreto as condutas anticompetitivas estariam relacionadas a um único procedimento licitatório, não haveria como vislumbrar que os acordos teriam sido celebrados com o intuito de dominar todo o mercado relevante em questão. Consequentemente, o delito previsto no artigo 4º da Lei nº 8.137/90 não seria aplicável. Em outras palavras, como os ajustes teriam ocorrido com o objetivo de fraudar um procedimento licitatório específico, os fatos se subsumiriam apenas ao crime de “fraude à licitação”, previsto no artigo 90 da Lei nº 8.666/93.</p>
<p align="justify">Ademais, considerando a sua natureza formal, o STJ entendeu que a consumação ocorreu a partir dos meros arranjos colusivos prévios ao procedimento licitatório. Tendo isso em conta, reconheceu a ocorrência da prescrição pelo decurso do prazo de 8 (oito) anos, restabelecendo a decisão de primeiro grau em sua integralidade.</p>
<p align="justify">Destaque-se que esse entendimento segue na mesma linha do julgado exarado pelo próprio STJ no Recurso Especial nº 1.683.839/SP em 20/12/2017, em situação semelhante também envolvendo suposto conluio em procedimento licitatório do Metrô-SP.<a href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a></p>
<p align="justify">Os entendimentos constantes em tais decisões bastante recentes proferidas pelo STJ são relevantes para futuros casos na esfera criminal e deveriam, a nosso ver, também ser levados em consideração pelo Tribunal Administrativo do CADE em casos envolvendo apurações administrativas de conluios em procedimentos licitatórios. Como se pode notar da descrição das deliberações ocorridas na última sessão de julgamento do órgão antitruste, tratou-se da aplicação de certos aspectos da apuração criminal para fins de cálculo da prescrição administrativa, mas os casos em questão não envolviam conluio em licitação.</p>
<p align="justify">Nada obstante, e a guisa de conclusão, acreditamos que tais desenvolvimentos recentes ressaltam ao menos dois fatores relevantes a serem levados em conta no salutar debate em curso sobre a aplicação da prescrição criminal na seara administrativa. Em primeiro lugar, ainda que se mantenha a atual posição majoritária do CADE pela desnecessidade de investigação criminal paralela para a aplicação da prescrição prevista pela lei penal, não podem ser desconsideradas as peculiaridades da tipificação criminal específica de conluios em licitações – inclusive quanto ao seu prazo prescricional menor, de 8 (oito) anos.</p>
<p align="justify">Em segundo lugar, as autoridades criminais levam em consideração diversos aspectos quando do cálculo da prescrição criminal em abstrato a uma determinada conduta – tais como caracterização como crime formal, possível absorção de um tipo em outro e prazo pela metade a idosos. Esses fatores não são necessariamente levados em consideração pelo CADE quando de sua avaliação sobre o prazo prescricional aplicável, o que pode tornar incoerente o regime jurídico a que se sujeita o administrado, gerando forte incerteza jurídica. Trata-se de aspectos relevantes que, a nosso ver, corroboram o posicionamento externado por alguns conselheiros do Tribunal Administrativo do CADE pela necessidade de existência de denúncia criminal paralela para emprego do prazo prescricional da lei penal em casos de apurações administrativas de cartel.</p>
<p align="justify">---------------------------------------------------</p>
<div id="sdfootnote1">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Conforme notícias divulgadas no sítio eletrônico da autoridade antitruste: “Cade e MP/PR realizam operação conjunta para investigar cartéis em licitações para coleta de lixo” (disponível em <a href="http://www.cade.gov.br/noticias/cade-e-mp-pr-realizam-operacao-conjunta-para-investigar-cartel-em-licitacoes-para-coleta-de-lixo-no-parana">http://www.cade.gov.br/noticias/cade-e-mp-pr-realizam-operacao-conjunta-para-investigar-cartel-em-licitacoes-para-coleta-de-lixo-no-parana</a>); “Cade realiza busca e apreensão em investigação de cartel no mercado de órteses, próteses e equipamentos hospitalares” (disponível em <a href="http://www.cade.gov.br/noticias/cade-realiza-busca-e-apreensao-em-investigacao-de-cartel-no-mercado-de-orteses-proteses-e-equipamentos-hospitalares">http://www.cade.gov.br/noticias/cade-realiza-busca-e-apreensao-em-investigacao-de-cartel-no-mercado-de-orteses-proteses-e-equipamentos-hospitalares</a>); e “Cade realiza busca e apreensão em investigação de cartel em licitações” (disponível em <a href="http://www.cade.gov.br/noticias/cade-realiza-busca-e-apreensao-em-investigacao-de-cartel-em-licitacoes">http://www.cade.gov.br/noticias/cade-realiza-busca-e-apreensao-em-investigacao-de-cartel-em-licitacoes</a>).</p>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Art. 46 da LDC: “Prescrevem em 5 (cinco) anos as ações punitivas da administração pública federal, direta e indireta, objetivando apurar infrações da ordem econômica, contados da data da prática do ilícito ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessada a prática do ilícito.”</p>
</div>
<div id="sdfootnote3">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> A ata de tal sessão está disponível em <a href="http://www.cade.gov.br/assuntos/sessoes/pautas-das-sessoes-ordinarias-1/126a-sessao-ordinaria">http://www.cade.gov.br/assuntos/sessoes/pautas-das-sessoes-ordinarias-1/126a-sessao-ordinaria</a>.</p>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Processo Administrativo n° 08012.004674/2006-50.</p>
</div>
<div id="sdfootnote5">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> Processo Administrativo n° 08700.001859/2010-31.</p>
</div>
<div id="sdfootnote6">
<p><a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> BALTAZAR, José Paulo. Crimes Federais. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 508.</p>
</div>
<div id="sdfootnote7">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a> REsp 1623985/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 17/05/2018, DJe 06/06/2018.</p>
</div>
<div id="sdfootnote8">
<p align="justify"><a href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a> REsp 1683839/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 12/12/2017, DJe 19/12/2017</p>
</div>


Cade

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JOTA

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Prescrição em investigações de cartel

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