Daniel Abraham Loria

Andrea Oliveira

Os grupos empresariais brasileiros são tipicamente organizados em várias pessoas jurídicas, sob uma única controladora. Para fins contábeis, é obrigatória a preparação de demonstrações financeiras consolidadas, como é da tradição dos padrões contábeis internacionais (IFRS), aplicados no Brasil. Contudo, na apuração dos tributos, diferentemente de outros países, aqui não se permite a apuração consolidada. Cada pessoa jurídica, mesmo que sob uma única controladora, apura e reconhece seu lucro tributável individualmente.
Não é incomum que, dentro do grupo, uma pessoa jurídica apure lucro (recolhendo IRPJ e CSLL) e outra seja deficitária (acumulando prejuízos fiscais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>). As razões são variadas, podendo decorrer do desempenho comercial melhor ou pior de diferentes linhas de negócios, ou de eventos não recorrentes. Arriscamos dizer que a causa é, sobretudo, sistêmica: o administrador foca nos resultados do grupo como um todo e não se preocupa (nem deveria) com os resultados individuais de cada pessoa jurídica que o compõe.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Nesse contexto, deve-se avaliar constantemente se as estruturas societárias empresariais estão adequadas. Quando necessário, pode ser implementada uma reorganização societária intragrupo, a qual pode assumir variadas formas, dentre as quais a incorporação de uma pessoa jurídica por outra. A incorporadora sucede a incorporada em todos os seus direitos e obrigações, inclusive dívidas de natureza tributária (art. 1.116 do Código Civil, art. 227 da Lei das S.A. e art. 132 do Código Tributário Nacional).
Especificamente, o saldo de prejuízos fiscais (um “ativo fiscal”) é vinculado ao CNPJ da pessoa jurídica que o produziu. A pessoa jurídica pode compensar seus próprios prejuízos fiscais acumulados de períodos anteriores, até o limite de 30% do lucro líquido ajustado, sem limite temporal (art. 580, RIR/18). Após muitos anos de discussão, em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela constitucionalidade da referida trava, interpretando a compensação de prejuízos fiscais como “benefício fiscal”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> – quando, em nossa opinião, o prejuízo nada mais é do que um componente da renda tributável, ainda que dividido em períodos de apuração, sendo direito do contribuinte compensá-lo.
No caso de incorporação de sociedade, o saldo de prejuízos fiscais da incorporada é “perdido”, sendo vedada a compensação pela incorporadora (art. 585, RIR/18). No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em linha similar à do STF, decidiu que a “trava de 30%” permanece aplicável na incorporação, limitando a compensação dos prejuízos da empresa incorporada a 30% do lucro tributável do seu último período de existência<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> – o que é ainda mais drástico do que aplicar a trava no dia a dia da empresa.
Também é proibida a compensação de prejuízo fiscal quando, entre a data de apuração do prejuízo fiscal e a data da sua compensação, há, cumulativamente, modificação do “controle acionário” e do “ramo de atividade” (art. 584, RIR/18).
Tais vedações à compensação de prejuízo fiscal têm como fundamento legal o Decreto-lei nº 2.341/87 (arts. 33 e 32, respectivamente). Na época, como se extrai da Exposição de Motivos, a intenção do legislador foi coibir aquisições de pessoas jurídicas que tinham como único ativo o saldo de prejuízos fiscais e que depois incorporavam a adquirente, em prática que passou a ser chamada de “incorporação às avessas” (sociedade deficitária incorporando a lucrativa).
A jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) em torno da “modificação de controle” segue o disposto na legislação societária, no sentido de considerar os níveis direto e indireto. Já a “modificação do ramo de atividade” deveria ser relevante apenas se ocorresse junto com tal “modificação de controle” – logo, não precisaria ser examinada em reorganizações intragrupo, em que o controle permanece inalterado.
Ocorre que, nos últimos anos, ao examinar reorganizações societárias, em especial aquelas envolvendo incorporação de sociedade, o CARF começou a ampliar suas análises. O tribunal passou a observar se a sociedade sobrevivente à reestruturação é, de fato, a sociedade que juridicamente figura como incorporadora, ou, em sentido contrário, se a sociedade formalmente extinta na incorporação é que deveria ser tratada como a sobrevivente. Neste último caso, como a sociedade deficitária teria sido, na essência, extinta, estaria vedada a compensação de prejuízos fiscais a partir da data da reorganização.
O CARF já examinou alegações de “simulação relativa” e de que teria havido “incorporação às avessas”, por motivação fiscal, sem propósito negocial. Para decidir, passou a avaliar elementos fáticos variados, como a relevância das atividades da incorporada em comparação com as da incorporadora e eventuais alterações de denominação social, endereço da sede e administração, dentre outras características. Inclusive, a “modificação do ramo de atividade” passou a ser considerada como um indício de que a incorporadora era, na essência, a incorporada – o que, a nosso ver, extrapola o alcance de tal dispositivo legal.
O assunto chegou a ser julgado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, favoravelmente ao contribuinte, em 2006, quando a suposta ausência de “propósito negocial” de reorganizações ainda não eram suscitadas pelo fisco. A decisão foi assertiva no sentido de que a incorporação de sociedade deficitária por lucrativa era permitida (Acórdão CSRF/01-05.413, de 20.03.2006).
<blockquote class="jota-article__eye">Atualmente, a análise pelas Câmaras Baixas do CARF leva em consideração as circunstâncias fáticas de cada caso concreto, não havendo, após a referida decisão da Câmara Superior, uniformidade no entendimento.</blockquote>
No Judiciário, há decisão antiga do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4), com desfecho desfavorável ao contribuinte, em que a incorporada estava inativa e tinha um patrimônio líquido muito maior do que o da incorporadora, além de a incorporadora assumir várias características da incorporada. Foi interposto recurso especial ao STJ, o qual não foi admitido, por requerer exame de prova. Mesmo assim, a decisão do STJ é interessante por dizer, indiretamente, ao se referir à decisão do TRF 4, que a legislação não proíbe a incorporação de empresa lucrativa por outra deficitária<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em nossa opinião, se a intenção do legislador foi de evitar aquisições de empresas inoperantes que só mantinham prejuízos fiscais, esta não é a realidade de empresas sob controle comum que buscam se reorganizar e visam à eficiência em suas operações, inclusive sob o aspecto fiscal. É permitido aos grupos empresariais se reorganizarem, de tempos em tempos, da maneira que considerarem mais adequada, inclusive mediante incorporação de sociedade lucrativa por deficitária. Outros meios de reorganização são igualmente legítimos, como revisitar a estrutura de capital de cada pessoa jurídica, alterar a forma como é gerido determinada linha de negócio, acrescentar atividades a uma pessoa jurídica, deixar de exercer atividades por outra, dentre outras várias possibilidades.
Todas essas formas de reorganização são lícitas e não são maculadas, per se, com qualquer vício, ainda que sua motivação seja eminentemente fiscal. Pelo contrário, são formas encontradas, na arcaica sistemática de tributação em bases individuais no Brasil, para que o resultado individual de cada pessoa jurídica sob controle comum guarde coerência com o resultado do grupo como um todo. Busca-se eliminar distorções contábeis e fiscais, em que empresas sob controle comum estejam em posições fiscais distintas, uma incorrendo prejuízo e outra apurando lucro.
Neste período pandêmico, em que o Brasil passa por uma crise sem precedentes, o ativo “prejuízo fiscal” passa a ter ainda mais valor. Mudanças na legislação para permitir mais flexibilidade na utilização de prejuízo fiscal seriam bem-vindas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Mesmo que não estejamos prontos para implantar uma sistemática de tributação em bases consolidadas, que seria o ideal, deveríamos ao menos permitir às empresas que utilizem seus prejuízos fiscais, a que têm direito, com mais segurança.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os “prejuízos fiscais” são apurados nos períodos em que o lucro real é negativo (art. 579 do Regulamento do Imposto de Renda – RIR/18, aprovado pelo Decreto nº 9.580/18, com fundamento no art. 64, §1º, do Decreto-lei nº 1.598/77). Para fins deste artigo, ao tratarmos de “prejuízo fiscal”, estamos, também, tratando das bases de cálculo negativas de CSLL.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RE 591.340 (Tema 117), Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário do STF, julgado em 27.06.2019, publicado em 03.02.2020 (placar de 6x3).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> REsp 1.805.925, Rel. Min. Napoleão Nunes, 1ª Turma do STJ, julgado em 23.06.2020, publicado em 05.08.2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TRF 4, Apelação nº 2004.71.10.003965-9/RS, julgada em 22.08.2006. STJ, REsp 946.707, de 25.08.2009, com destaque para o seguinte trecho da ementa, “O Tribunal de Origem, por seu turno, não afasta a possibilidade, em tese, de uma empresa deficitária incorporar entidade financeiramente sólida. Apenas, ao apreciar as peculiaridades do caso concreto, entendeu que isso não ocorreu”.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> No Congresso Nacional, há projetos de lei que buscam alterar a “trava de 30%”. Um exemplo é o Projeto de Lei (PL) 1.040/2020 (Senado), de 27.03.2020, que pretende eliminar, de modo progressivo, no prazo de 5 anos, a “trava de 30%” e não aplicar tal trava para os casos de extinção da pessoa jurídica. No contexto da pandemia, há o PL 2.128/2020, apresentado em 23.04.2020 à Câmara dos Deputados, que pretendia excluir a trava de 30%, excepcionalmente, em 2020. Outros PLs com o mesmo tema foram apensados a este e, desde 16.04.2021, estão sob análise da Comissão de Finanças e Tributação.

prejuízo fiscal

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JOTA

Não é incomum que, dentro do grupo, uma pessoa jurídica apure lucro e outra seja deficitária

Prejuízo fiscal em reorganizações societárias intragrupo

Prejuízo fiscal: não é incomum que, dentro do grupo, uma pessoa jurídica apure lucro e outra seja deficitária