Matheus Cherulli Alcantara Viana

No apagar das luzes do ano passado foi editada a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Mpv/mpv1152.htm">MP 1152/22</a>, que trata de alterar a mundialmente famosa metodologia brasileira de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/precos-de-transferencia">preços de transferência</a>. Diferente do que costuma ocorrer quando o Poder Executivo edita medidas provisórias em matéria tributária, o diploma, pendente de aprovação pelo Congresso Nacional, foi bastante <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/preco-de-transferencia-mp-traz-complexidade-mas-empresas-ganham-seguranca-juridica-30122022">celebrado por especialistas</a>, especialmente por conta da aproximação com os padrões da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cuja relevância reside no fato de as regras brasileiras sobre o assunto serem há muito apontadas como um dos principais entraves ao ingresso do Brasil na organização, que agrega as principais economias do mundo – com as relevantes exceções de China e Rússia. 
O potencial fim das margens predeterminadas no cálculo de preços de transferência sem dúvidas é um passo no sentido de uma maior harmonização com as práticas internacionais em matéria de imposto sobre a renda. Mas não é só. Ele também propicia o fim de um paradoxo geralmente negligenciado: a contradição entre as normas brasileiras de preços de transferência e as regras de valoração aduaneira, derivadas do acordo GATT/94. 
O Acordo sobre a Implementação do Artigo 7º do GATT parte de um princípio bastante simples, de que o valor aduaneiro – base de cálculo do imposto de importação – deve representar o valor da transação, que é o “preço pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país da importação”, devidamente ajustado na forma de seu Artigo 8º. E assim como ocorre na disciplina de preços de transferência em relação às transações entre “partes relacionadas”, existe preocupação no acordo com a possibilidade que as “partes vinculadas” venham a influenciar o preço pago ou a pagar pelas mercadorias de forma artificial, visando obter vantagem tributária indevida.  
No mais das vezes, estamos a lidar com operações “intragrupo”, envolvendo partes que possuam alguma relação societária, e que por tal motivo estariam dispostas a influenciar os preços de forma a obter uma redução de carga global na operação, ainda que disso decorra um eventual prejuízo financeiro a uma delas. Um exemplo clássico seria a operação entre duas subsidiárias de uma empresa multinacional. Ainda que uma delas não obtenha um bom resultado da transação, desde que no cômputo geral o conglomerado tenha obtido uma vantagem fiscal estaria presente o incentivo a influenciar o preço, desidratando a base de cálculo do imposto de importação.  
Por outro lado, a matéria de preços de transferência ao analisar as mesmas transações se preocupa com a possibilidade de que os preços praticados sejam fixados entre as partes de forma a alocar maior parcela – ou mesmo a totalidade – do lucro a ser obtido nas operações a uma das jurisdições envolvidas, normalmente aquela com menor carga tributária incidente sobre tais lucros. E, caso tal fato seja apurado, a disciplina ordinária da matéria comanda que uma parte da despesa deduzida no país de importação seja revertida na apuração como uma adição ao lucro tributável. 
Realmente não é trivial estabelecer qual seria a margem de lucro adequada a cada parte na operação. Questões como a função exercida por cada parte – imagine-se que uma delas é uma indústria e a outra um distribuidor – ou mesmo as diferenças no mercado doméstico em cada uma das jurisdições afastam a ideia de uma repartição salomônica dos lucros. Daí a solução brasileira ter sido a adoção de margens predeterminadas, que embora se distancie do padrão internacional, de fato confere praticidade ao tema: basta que se garanta a margem predeterminada no país importador e nenhum ajuste é devido. 
Acontece que a combinação das duas disciplinas gera um paradoxo.  
De um lado, motivadas pela legislação brasileira de preços de transferência, estabelece-se tendência das partes a reduzir os preços praticados na exportação para o país de importação, pois com isso será mais fácil, ao menos em teoria, alcançar a margem predeterminada e, portanto, afastar ajustes para cima na apuração do IRPJ e da CSLL devidas pela pessoa jurídica importadora.  
De outro, justamente por conta de tal prática, o valor aduaneiro será empurrado para baixo, influenciando o valor da transação de maneira artificial e determinando a inadequação da base de cálculo na importação de acordo com as regras de valoração aduaneira, redundando em <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stf-condiciona-desembaraco-aduaneiro-ao-pagamento-de-diferenca-de-tributo-15092020">cobrança suplementar </a>de todos os tributos devidos na importação de mercadorias e aplicação de multas, uma vez que o valor aduaneiro está presente também nas bases de cálculo de outros tributos devidos na importação, como o IPI e contribuições ao PIS e à Cofins (federais) e o ICMS (estadual). 
É a consagração tributária do ditado “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. 
Caso seja definitivamente incorporada à legislação brasileira, a disciplina de preços de transferência proposta na MP 1152/22 tende a resolver a questão. Ao adotar o princípio “arm’s lenght” de acordo com os padrões internacionais, a tendência é que o preço de transferência convirja na direção do valor da transação livre de influência da relação entre as partes, satisfazendo a ambos os regramentos simultaneamente. Ao menos em teoria.  
Naturalmente, cabe recomendar cautela dado que não se sabe, ainda, se a Medida Provisória 1152/22 será aprovada como proposta pelo Poder Executivo, nem se haverá alguma surpresa quando da inevitável edição de decreto regulamentador e outros atos normativos de competência da Receita Federal do Brasil. Parece, contudo, que a convergência do Brasil às práticas internacionais relativas a preços de transferência pode, por via reflexa, resolver problema de harmonização doméstica de grande importância para importadores brasileiros.

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JOTA

Convergência do Brasil às práticas internacionais pode resolver problema de harmonização doméstica para importadores

Preços de transferência e valoração aduaneira

Convergência do Brasil às práticas internacionais de preços de transferência pode resolver problema de harmonização doméstica