Mario Luis Grangeia

Ter sido jornalista e professor de Direito não preparou Luiz Carlos Cancellier (1958-2017) para o baque que o alçou ao noticiário nacional em outubro de 2017. Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) há menos de um ano e meio, foi o alvo mais graúdo da Operação Ouvidos Moucos, que investigava esquemas de corrupção num braço de educação a distância da UFSC.
A apuração levou à prisão preventiva e afastamento do reitor e outros professores e ficou mais célebre pelo desfecho de Cancellier, que saltou do 7º andar de um shopping em Florianópolis com um bilhete na jaqueta: “Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”.
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Nenhum suicídio é vão, sobretudo nesse contexto – Cancellier era suspeito de obstrução de justiça por avocar para a Reitoria a apuração da Corregedoria sobre fraudes na EAD. As investigações detectaram desvios bem abaixo dos R$ 80 milhões estimados no Dia D da operação (cifra, na verdade, dos repasses totais de 2006 até 2017). E quase todo o ato mirado pelos órgãos de controle antecedia o mandato de Cancellier, uma vítima icônica de pré-julgamento midiático, ou publicidade opressiva.
Daí ser tão fértil o debate reaberto pelo livro <a href="https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=28000590">"Recurso final: A investigação da Polícia Federal que levou ao suicídio de um reitor em Santa Catarina"</a>, publicado pela editora Objetiva e escrito pelo jornalista Paulo Markun, que presidiu a Fundação Padre Anchieta (TV Cultura).
Mesmo sabendo do fim da história, leitores terão muito para se surpreender com a narrativa. Sobram perguntas a partir da leitura: como pode um erro de igualar desvios ao orçamento total do projeto? Como a Corregedoria ficou na mão de alguém condenado por calúnia e difamação? Por que sujeitar o preso a nem receber seus remédios? Por que ignorar o direito à defesa prévia?
O livro avança da história de vida de Cancellier até o desconcerto de seu círculo íntimo com o suicídio. Ele foi assessor de um senador constituinte e ascendeu rápido na UFSC: formado em Direito em 1998, aos 40 anos, doutorou-se em 2003, tornou-se professor em 2005 e foi eleito reitor 11 anos depois. Entrevistados elogiaram sua abertura ao diálogo, algo em falta a quem investigou o caso, como se lê em cenas como a entrevista coletiva da Ouvidos Moucos. Estudar relações entre Direito e Literatura, um interesse de Cancellier, também teria sido útil a responsáveis pela operação – "Dom Casmurro", por exemplo, alerta para vieses de confirmação.
A reconstituição é avessa à espetacularização e muito esmerada, o que minimiza deslizes como a alusão reiterada ao reitor pelo apelido (Cau) e não diferir procurador de promotor. O relato interpela indiretamente questões caras a estudiosos do sistema de justiça no país, como a alta discricionaridade e autonomia de seus membros ou os atos e omissões de conselhos nacionais (CNJ e CNMP). A publicidade opressiva de processos criminais, mais estudada desde a tese da desembargadora Simone Schreiber, teve ápice ali – daí a nova lei de abuso de autoridade ser chamada de Lei Cancellier.
Não é preciso tomar um caso extremo como a Ouvidos Moucos para repensar a midiatização da Justiça penal (com prós e contras, como quase tudo na vida). Afinal, efeitos colaterais desse fenômeno são vistos em contextos mais comezinhos. Mas algo torna o caso da UFSC mais propício para avaliar pré-julgamentos midiáticos: com o bilhete na jaqueta, Cancellier propôs uma chave para examinarmos sua sina.
Houve erro de quem pediu/deferiu medidas cautelares mais graves, como o banimento da instituição? Se houve, também esse erro deve ser punido em justa medida, sob risco de moucos não terem sido os “ouvidos” da universidade – o nome da operação se referia a alertas da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre o projeto de EAD, que teriam sido preteridos. Ao apelar ao suicídio, Cancellier deve ser lembrado não só em campanhas de saúde mental como a Setembro Amarelo. Há mais a prevenir além do que o título de Markun chama de “recurso final”.

Luiz Carlos Cancellier UFSC

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JOTA

Livro 'Recurso final', do jornalista Paulo Markun, dá atenção merecida a caso de publicidade opressiva

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Livro 'Recurso final', de Paulo Markun, dá atenção merecida a caso de publicidade opressiva que sofreu o reitor Cancellier, da UFSC