Daniel Giotti de Paula
Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, ex-diretor do Centro de Altos Estudos Jurídicos da PGFN no Estado do Rio de Janeiro e procurador da Fazenda Nacional

Felipe Recondo e Luiz Weber, em O tribunal: como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária, revelam como o STF, a fim de conter os arroubos autocráticos do último governo, passou a funcionar mais como instituição do que isoladamente por seus 11 ministros, algo que fora de sua tradição pós-Constituição de 1988.
Isso já nos fica claro, na forma como a ministra Rosa Weber conduziu o tribunal após o resultado das eleições de 2022, quando o pronunciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro não reconhecera explicitamente sua derrota, nem continha “nenhuma referência ao presidente eleito” (p. 14).
Ciente da importância de contribuir para a normalidade da transição entre governos, o STF decidiu soltar uma nota, feita a muitas mãos “ministeriais”, com o seguinte teor: “O Supremo Tribunal Federal consigna a importância do pronunciamento do presidente da República em garantir o direito de ir e vir em relação aos bloqueios e, ao determinar o início da transição, reconhecer o resultado final das eleições” (pp. 15-16).
Palavras importam, sabemos no intrincado jogo político, ainda mais nestes tempos de presidentes autocráticos, democracias iliberais e governos incidentais, em que tentam minar as instituições por dentro, instaurando-se uma “legalidade inconstitucional”, de modo que a guarda da Constituição, a cargo do STF, nunca foi tão necessária, com o tribunal agindo proativamente nas relações com os demais Poderes da República.
Por isso, avulta a relevância de uma aparente simples nota do STF, pois, somente depois de publicada, a ministra Rosa Weber recebeu o presidente derrotado, em um ato cercado de simbolismo.
Bolsonaro, que elegera o STF como um de seus alvos preferidos, foi ao Supremo, admitindo sua derrota, como o livro demonstra. Mal sabia a presidente e os ministros do STF que os ataques ao tribunal não acabariam, pois viria o 8 de janeiro, uma intentona que, admitamos, considerávamos até possível ser tentada, mas não na proporção que se deu.
Em relação a esse triste episódio, importante verificar como os jornalistas apuraram que o tribunal fez chegar ao presidente Lula sua opinião contrária à instauração de uma GLO, quando uma máxima aplicada em Brasília às CPIs foi estendida para o caso: “sabe-se como começa, mas não como termina” (p. 29).
Dar poderes aos militares poderia incitar um golpe? Não sabemos e sequer ousamos testar a possibilidade.
Além das palavras, os atos, por óbvio, também importam.
Assim, a invasão do STF, na acertada visão dos autores do livro, “catalisou o processo de união do Supremo” (p. 33), um tribunal que por muito tempo se viu cindido, com ministros fazendo suas próprias agendas e muitas vezes protagonizando brigas virulentas durante as sessões do pleno transmitidas ao vivo.
Foi necessária uma dura travessia para se chegar à união, e o “fator Bolsonaro” foi o veículo da mudança.
É certo que, de início, alguns ministros duvidaram de até onde Bolsonaro poderia ir – o que tem sido normal em todas as democracias do mundo ao se lidar com esse tipo de figura política.
Pouco a pouco, os atabalhoados e graves atos deste durante seu mandato fizeram com que o ministro Toffoli, na época presidente do STF, tivesse que ir ao Alvorada e ao Planalto para conversar com ele, evitando arroubos e crises institucionais.
É curioso perceber como o poder político do presidente do STF vai muito além dos autos de qualquer processo. O diálogo institucional ocorre dentro do próprio processo político, não raramente.
Estava o ministro Toffoli seguindo conselhos de ex-presidentes da República, como o de FHC: “não deixe de continuar por perto, dialogar. Ele [Bolsonaro] pode se sentir acuado e reagir mal” (p. 48).
Canais de diálogo sempre são importantes, mas dependem de real aderência de ambos os lados, o que não se viu por parte do presidente da República de então.
Por isso, Recondo e Weber mostram a importância também da atuação do decano do tribunal à época, ministro Celso de Mello, contra o bolsonarismo, fazendo “enfrentamento pelo discurso” (p. 59), e como se deu a gênese do inquérito das fake news (p. 77), instrumento que se tornaria valioso “para se contrapor ao projeto de erosão institucional do país”.
Sobre o inquérito, os dois jornalistas descrevem como realmente a personalidade corajosa e assertiva do ministro Alexandre de Moraes foi vital para seu sucesso e, ainda, como esse inquérito, incialmente visto como tribunal de exceção até por partidos mais à esquerda no espectro político – isso foi apontado na ADPF 572, de autoria da Rede Sustentabilidade – paulatinamente passou a ter adesão dentro do campo progressista e democrático.
Digno de nota que a AGU, quando ocupada pelo ministro André Mendonça, defendeu sua constitucionalidade, pois na conjuntura de 2019 o objeto dele “era uma arma de defesa do tribunal contra a trama de narrativas falsas sobre seus ministros” (p. 83), sem qualquer designo de investigar o governo e seus apoiadores por notícias fraudulentas.
De certa forma, o governo Bolsonaro também subestimou a capacidade de Moraes para enfrentar a máquina de ódio instaurada.
Ao longo do livro, descortina-se a estratégia de atuação dos tribunais e ministros, como na razão para o ministro Fachin não ter acolhido a parcialidade de Sergio Moro no processo que levou à prisão do presidente Lula (p. 101), na convocação de uma audiência pública pela ministra Cármen Lúcia para discutir a alteração por decreto do Conselho Superior de Cinema e regras para distribuição de recursos (p. 112) e na mudança na jurisprudência do STF conferindo competência para se legislar concorrentemente para União, estados, municípios e o DF sobre proteção à saúde na ADI 6341 (p. 125), durante a pandemia, pois “o presidente da República não dispõe de poder para exercer política pública de caráter genocida” (p. 127), nas palavras do ministro Gilmar Mendes durante o mesmo julgamento.
Constata-se também como a gravidade institucional levou a que o ministro Lewandowski fosse considerado “o Ministro da Saúde do STF” (p. 130), enquanto o presidente Bolsonaro negava a ciência e enchia o WhatsApp dos ministros com decretos municipais e estaduais que estabeleciam limitações à circulação de pessoas.
Houve várias respostas diretas do ministro Gilmar Mendes às mensagens do presidente, lembrando-lhe o que é o SUS e que caberia ao Ministério da Saúde coordenar ações para combate à pandemia.
Na discussão levada ao STF sobre a abertura das igrejas, quando Bolsonaro teria dito ao ministro André Mendonça que “sua indicação [para o Supremo] depende dessa sustentação”, e cujo resultado, à exceção dos votos do ministro Nunes Marques e Dias Toffoli, foi pela impossibilidade, Gilmar Mendes o repreendeu e sentenciou: “... a Constituição Federal de 1988 não parece tutelar um direito fundamental à morte” (p. 146).
A participação de André Mendonça, do ponto de vista político, foi importante para sua chegada ao STF, pois, mesmo após Bolsonaro e sua família e políticos do governo preocupados em matéria criminal desistirem de apoiá-lo, teve apoio de lideranças evangélicas (p. 147).
Recorde-se que houve um período de cinco meses até a sabatina, após Mendonça ter sido indicado, e Recondo e Weber investigaram os bastidores que levaram à dificuldade de aprovação, num inédito distanciamento entre presidente e indicado para o Supremo.
Os bastidores sobre a escolha de Nunes Marques também são detalhados (p. 171), esmiuçando-se como depende de muitos fatores alguém ser indicado para o STF.
No caso de Nunes Marques, desembargador federal do TRF da 1ª Região, ele buscava uma vaga para o STJ, fazendo o périplo habitual para essa indicação, acabando, porém, indicado para o STF, graças a uma relação pessoal construída com o presidente Bolsonaro, nascida longe dos holofotes e dos olhares da elite política e jurídica de Brasília.
Algo que este livro e os outros dos autores indicam é que “há um grande pecado cometido por muitos daqueles que sonham ocupar uma cadeira no Supremo: definir suas ações tendo em vista a cadeira”(p. 182), porque cada presidente “tem critérios próprios e bem distintos” (p. 182).
Ainda sobre bastidores, menciona-se a atuação contundente de Alexandre de Moraes em defesa da segurança das urnas eletrônicas, inclusive citando um diálogo entre ele e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, quando o ministro Alexandre rebateu um a um os argumentos pueris apresentados (pp. 202-203).
Sobre a criação das urnas eletrônicas, que se deu durante o mandado do ex-ministro Carlos Velloso como presidente do TSE, recupera-se a história de como este foi influenciado a implementá-las pela memória de um caso de fraude eleitoral julgado por ele, ainda quando juiz federal, em Ituiutaba (MG).
Muitas histórias estão no livro, e no capítulo derradeiro, o de número 10 e intitulado “O STF vs Bolsonaro”, Recondo e Weber consolidam a percepção de como o tribunal conseguiu vencer a luta em prol da democracia, asseverando que:
“[O Supremo] escolheu o que julgar, quando julgar e como julgar. Decidiu não decidir de forma estratégia. Decidiu decidir como entendesse mais adequado. Reinterpretou determinados conceitos conforme suas estratégias processuais e institucionais, mudou seus próprios entendimentos conforme a circunstância de momento, decidiu casos com um olho no direito e outro na conjuntura política. No nome de quem estava processado”. (p. 238)
Invocando a fala do ministro Alexandre de Moraes, “a vida real é kumitê” (p. 83), palavra japonesa que significa combate, e não “kata”, a “coreografia de golpes em que o lutador enfrenta sombras, um inimigo imaginário”, como seriam para ele as teorias que idealizam o funcionamento das instituições.
Felipe Recondo e Luiz Weber, neste livro fundamental, fazem relato de Realpolitik, de como as coisas de fato ocorreram e ocorrem no jogo político, que afinal se tornou agonístico, funcionando institucionalmente bem o Supremo Tribunal Federal na contenção dos arroubos autoritários e antidemocráticos.
Talvez nos mostrem o STF de que atualmente precisamos, longe das especulações de qual seria o STF ideal para cada um de nós.