Fabrício Sarmanho de Albuquerque

O Congresso aprovou o <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-1559-2015">PL 2110/2019</a> para definir que “praça”, para efeito da norma antielisiva do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/valor-tributavel-minimo">Valor Tributável Mínimo</a> (VTM), equivale a município. A norma foi vetada em outubro de 2021, mas o veto foi derrubado em julho de 2022, o que resultou na edição da <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.395-de-8-de-julho-de-2022-413971329">Lei 14.395/2022</a>.
<h3>Existência de entendimento pacífico sobre o tema</h3>
Há anos o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a> pacificou o entendimento de que a praça é o âmbito de abrangência das vendas do industrial para seu atacadista, sem vinculação com elementos geográficos, necessariamente (CSRF – no Acórdão 9303-008.546, Conselheiro Rodrigo da Costa Pôssas, em 14 de maio de 2019).
O posicionamento foi adotado pela CSRF, mesmo após a vigência da nova sistemática de desempate no Carf - art. 19-E da Lei 10.522/2002 (Acórdão n. 9303-011.686, conselheiro Valcir Gassen, em 16 de agosto de 2021).
Por isso não podemos falar que a Lei 14.395/2022 é interpretativa, já que não pairava dúvida sobre o conceito de praça na jurisprudência. A questão já era pacificada no Carf e não havia nenhuma necessidade de se sanar dúvida.
A hermenêutica deve sempre buscar extrair a vontade da lei (ratio legis) e não a intenção do legislador. Por isso, há que se verificar a situação da jurisprudência à data da votação e aprovação da lei, em 2021. Esse é o marco temporal.
O preâmbulo da norma é muito claro ao demonstrar que ele veio introduzir um conceito, e não sanar uma dúvida interpretativa. Diz a norma:
<a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2014.395-2022?OpenDocument">LEI 14.395, DE 8 DE JULHO DE 2022</a>
<table width="100%">
<tbody>
<tr>
<td width="51%"></td>
<td width="49%">Altera a Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964, para conceituar o termo “praça” para os fins que especifica.</td>
</tr>
</tbody>
</table>
A redação do art. 1º da norma também vai nesse sentido, estabelecendo que a nova lei altera a Lei 4.502/1964, “para conceituar o termo “praça” para os efeitos de determinação do valor mínimo tributável nela previsto” (grifo nosso).
Veja-se que em nenhum momento a norma se proclama interpretativa. Ela vem para conceituar, ou seja, inserir um conceito novo.
O presidente da República, em seu veto, tentou alertar o Congresso Nacional para o fato de o conceito estar há muito pacificado no Carf e para o risco de se buscar uma forçada e criativa tese de que a norma poderia ser interpretativa. Diz a Mensagem 498/2021: (grifo nosso)
<blockquote class="jota-article__citation">“(...) a proposição legislativa contraria o interesse público por gerar insegurança jurídica, haja vista que a definição do termo ‘praça’ como sendo o Município onde estivesse situado o estabelecimento do remetente, para fins de determinação do valor mínimo tributável do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, estaria em descompasso com o entendimento aplicado pela 3ª Turma da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf na análise de recursos administrativos, que definiu, em decisão proferida no ano de 2019, que o conceito de ‘praça’ não se limita, necessariamente, ao de um Município, com a possibilidade de abranger também regiões metropolitanas.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">(omissis)</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Por fim, a medida ensejaria o risco potencial de novos litígios em relação a casos já julgados na esfera administrativa, sob o argumento de que a nova lei teria caráter interpretativo com aplicação a fatos pretéritos, conforme o disposto no inciso I do caput do art. 106 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional".</blockquote>
A despeito do alerta feito pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional insistiu, com a derrubada do veto, em introduzir o novo conceito, o que deve ser acatado pelo Poder Executivo, à luz da Separação dos Poderes, mas dentro dos limites da segurança jurídica.
O art. 3º da Lei 14.395/2022 determinou o início da sua vigência para 8 de julho de 2022. Então, somente para fatos geradores posteriores a norma deve ser aplicada.
<h3>A ausência de previsão expressa na norma</h3>
Nosso ordenamento permite a existência de leis retroativas, desde que assim disponham de forma expressa.
O art. 106 do Código Tributário Nacional assim dispõe: (grifo nosso)
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;</blockquote>
Como se sabe, a hermenêutica se baseia em preceito básico, segundo o qual a lei não utiliza palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda). Não teria o legislador inserido a palavra “expressamente” por mera verborragia. Se há a necessidade de determinação expressa para se retroagir a norma, o legislador precisa dizer que aquela lei é interpretativa, algo que a Lei 14.395/2022 não fez.
Quando o Congresso Nacional quer que a lei seja retroativa, o faz de forma expressa, como o fez na edição da Lei Complementar 118/2005, art. 3º: (grifo nosso)
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 3º Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida Lei.</blockquote>
Mas, ad argumentandum tantum, imaginemos uma situação hipotética na qual a Lei 14.395/2022, que tratou de praça, tivesse tido uma redação totalmente diversa, que a autoproclamasse interpretativa, com o intuito de obter alguma retroação, como se fez na LC 118/2005. Ainda assim, a norma não produziria esse efeito.
A questão das leis supostamente interpretativas está pacificada na jurisprudência há muitos anos, quando o STF entendeu que uma lei que seja editada para modificar uma jurisprudência já assentada, ainda que se autoproclame interpretativa, tem um caráter inovador, o que impede a sua aplicação retroativa. Trata-se do julgamento do RE 566.621/RS, rel. ministra Ellen Gracie, julgado em 4/8/2011, que analisou a constitucionalidade da LC 118/2005, que buscava alterar a jurisprudência do STJ e afastar a famosa tese do 5+5.
Se até mesmo quando a LC 118/2005 tentou expressamente ser interpretativa o STF não deixou, por verificar que ela tentava modificar a jurisprudência, imagine no caso da Lei 14.395/2022, em que sequer há tal previsão!
<h3>Legislative overruling</h3>
A Lei 14.395/2022 consiste em uma tentativa de o Congresso Nacional praticar o legislative overruling, buscando alterar uma jurisprudência consolidada.
No caso do VTM essa mudança de entendimento é altamente questionável. Essa técnica é salutar dentro da teoria dos diálogos constitucionais entre os Poderes, que prega a inexistência de uma hierarquia hermenêutica. Mas ela não deveria ser utilizada no superação de entendimentos do Carf, órgão administrativo de altíssima especialização.
Os contribuintes, quando defendem o modelo brasileiro de contencioso administrativo, único do mundo com sua configuração paritária, sempre destacam que o Carf é muito importante para definição de conceitos técnicos na seara tributária, dada a sua composição. Não se deveria então, em uma questão tão complexa e específica, como o conceito de praça, matéria que até mesmo alguns tributaristas desconhecem em profundidade, transferir a seara da discussão para o Congresso Nacional, por mais qualificado que seja o corpo de parlamentares.
O próprio STF, ao analisar situação de Direito Econômico, realizou um self restraint e reconheceu que não cabe ao Judiciário substituir o órgão regulatório federal, dotado de mais expertise no assunto. Trata-se do julgamento do RE 1.083.955, rel. ministro Luiz Fux, julgado em 25/5/2019, no qual o STF se negou a apreciar decisão do Cade.
Devemos refletir o seguinte: a banalização do overruling abre margem para um caminho inverso mas simétrico ao que ocorreu no VTM, de edição de normas legislativas primárias, como medidas provisórias, com o único intuito de reverter jurisprudências pacificadas na CSRF do Carf. E cabe aqui uma reflexão. Caso o Poder Executivo viesse a editar uma medida provisória inovadora, que buscasse reverter um entendimento no qual a PGFN tivesse sido vencida na CSRF, caberia uma aplicação retroativa dessa norma?
A resposta é certamente negativa, pois, como bem ensina o STF no precedente do RE 566.621/RS, a segurança jurídica é um bem com o qual não se negocia.

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JOTA

Lei 14.395/22 consiste em tentativa de o Congresso praticar o legislative overruling

Praça e IPI: podemos retroagir o novo conceito?

Lei 14.395/22 consiste em tentativa de o Congresso praticar o legislative overruling para alterar jurisprudência sobre o conceito de praça