Luiz Eloy Terena

Rafael Modesto

Carolina Ribeiro Santana

O tema povos indígenas e acesso à Justiça constitui-se um capítulo avançado da concretização da proteção aos direitos fundamentais dos povos originários. Temos acompanhado o Judiciário sendo provocado a todo momento a se debruçar sobre a demarcação de terras indígenas e a proteção dos seus interesses, que receberam especial atenção do Constituinte, ao outorgar um regime próprio de proteção jurídica (arts. 231 e 232, CF/88).
Nesta semana, está pautado no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) o caso da comunidade indígena Guyra Roká, do povo Guarani e Kaiowá, de Mato Grosso do Sul. A demanda na origem cinge-se no reconhecimento do direito originário dos Kaiowá à sua terra tradicional. No entanto, o recurso que está sob análise apenas tangencia o tema, pois passados 32 anos desde a promulgação da Carta Magna, a comunidade pleiteia, ainda, o direito de ser ouvida nos autos.
O caso é paradigmático e grave, demandando, inclusive pronunciamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em setembro de 2019, a Comissão concedeu medida cautelar determinando que o Estado brasileiro adote medidas necessárias para proteger o direito à vida e integridade desses indígenas [1].
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
O processo retrata de forma inusitada a história de um povo que foi expulso de sua terra ancestral, impactada pelo colonialismo interno e pela frente de expansão agropastoril. Tudo isso aliado à [co]omissão estatal, que, por meio de seus agentes, deveria proteger o interesse indígena. Em vez de cumprirem seu dever legal, muitos desses agentes atuaram em estreita articulação com os fazendeiros da região para promover a retirada dos indígenas de suas terras e garantir o sucesso do empreendimento agro genocida.
Este caso reflete de modo paradigmático o fenômeno da judicialização das demarcações das terras indígenas no país. O art. 5⁰, inciso XXXV, da Constituição Federal, que prevê o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, é invocado pelos fazendeiros para questionar no judiciário o processo que deveria ser feito na via administrativa, conforme os preceitos do Decreto 1.775/96.
Todavia, parece-nos que este princípio só vale para os ruralistas, tendo em vista que à comunidade indígena não foi franqueado o direito de participar do processo em questão, o qual irá definir o destino de uma coletividade. (Permitam-nos uma pequena digressão: não deixa de ser curioso que o devido processo administrativo que, agora, é dado como insuficiente pelos representantes do agronegócio, tenha sido uma exigência deles próprios em 1996, quando exigiram do então Ministro da Justiça, a substituição do Decreto 22/1991 pelo Decreto 1775/96 tão somente para inserir a possibilidade de contestação administrativa. Tudo indica que seguirão insaciáveis até que sua tese seja vencedora).
O processo teve origem com ingresso, pelo fazendeiro Avelino Antonio Donatti, com um mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), buscando anular a portaria declaratória n. 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que declarou a TI Guyra Roká como de ocupação tradicional dos Kaiowá. Ao analisar o caso, o STJ extinguiu o processo, pois aplicou jurisprudência consolidada, a qual preceitua que o mandado de segurança não é via processual adequada para questionar demarcação de terra indígena.
Irresignado, o fazendeiro recorreu ao STF, por meio do RMS n. 29.087, ocasião em que o ministro-relator Ricardo Lewandowski seguiu o entendimento do STJ e rejeitou o recurso. Importante consignar que a jurisprudência do STF, que possui vetusto e majoritário entendimento, segundo o qual mandado de segurança não é via adequada para discutir demarcação de terras indígenas, haja vista que a complexidade da questão demanda dilação probatória, o que não se permite fazer por esta via.
Nesse sentido, vide, como exemplo, 30 (trinta) precedentes: Supremo Tribunal Federal. MS 28.555 (2017), MS 28.567 (2017), MS 33.821 (2016), RMS 29.193 (2015), MS 31.245 AgR (2015), RMS 27.255 (2015), MS 31.100 (2014), MS 25.483 (2007), MS 21.660 (2006), RMS 24.531 (2005), MS 24.015 (2005), RMS 22.913 (2004), MS 24.566 (2004), MS 21.891 (2004), RMS 24.532 (2004), MS 21.891 (2003), MS 21.892 (2003), MS 1.892 (2001), MS 21.649 (2000), MS 21.575 (1994), MS 20.751 (1988), MS 20.722 (1988), MS 20.723 (1988), MS 20.575 (1986), MS 20.556 (1986), MS 20.515 (1986), MS 20.453 (1984), MS 20.235 (1980), MS 20.234 (1980), MS 20.215 (1980)[2].
Contudo, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência e foi seguido pelo ministro Celso de Mello e pela ministra Cármen Lúcia. Com esse placar, a demarcação da terra foi anulada, aplicando-se a tese do marco temporal, sem nem ouvir a comunidade indígena. Daí que os Guarani e Kaiowá solicitaram ingresso no feito, mas foram barrados por decisão do ministro Gilmar Mendes, a qual aplicou o regime tutelar, que vigorava antes de 1988, afastando a possibilidade da participação indígena. À época, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos modificativos contra decisão da 2ª Turma do STF. Também, o Ministério Público Federal (MPF) apontou omissão e contradição no julgamento pela não participação da comunidade indígena.
Aquele processo transitou em julgado e agora está posto em julgamento a ação rescisória[3], protocolada pela comunidade indígena em 19 de abril de 2018. Em discussão, a comunidade pede a anulação da decisão da segunda turma do STF, tendo em vista que o processo transcorreu sem a sua participação, ou seja, sem a citação dos maiores interessados: os indígenas.
Nota-se: a decisão que anulou a demarcação da terra indígena violou frontalmente norma jurídica de proteção aos povos indígenas. Em primeiro plano, porque violou o princípio do acesso à Justiça, ao se utilizar de lei revogada para denegar direito. Até a Constituição de 1988, vigorou no Brasil o regime tutelar dos indígenas, que eram representados pela Funai.
Entretanto, esse paradigma tutelar e integracionista foi superado pela atual ordem jurídica, pois o artigo 232, da Constituição, reconheceu a legitimidade dos indígenas, suas comunidades e organizações, para estarem em juízo defendendo seus direitos e interesses. Outro aspecto processual diz respeito à obrigatoriedade de citação das comunidades indígenas para integrar os processos como litisconsórcio passivo necessário, nas demandas sobre terras indígenas (ver precedente ACO 1.100, relatoria do ministro Edson Fachin)[4].
<blockquote class="jota-article__eye">O acesso à Justiça deve ser interpretado à luz do contexto pluriétnico presente no Brasil, que possui mais de 305 povos, falantes de mais de 274 línguas indígenas (IBGE, 2010).</blockquote>
Os indígenas também fazem parte da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Cada qual com organização social e modo próprio de ver e entender o mundo.  Ruiz (2018) aponta que o acesso à Justiça pode ser visto sob três dimensões, a saber: (a) pela via dos meios alternativos de solução dos conflitos de interesses, (b) pela via jurisdicional (jurisdição estatal), no exercício da jurisdição de direito, e (c) pela via das Políticas Públicas.
No caso dos Kaiowá, nenhuma dessas dimensões foi observada. Ao tempo que se opera no Brasil um sistema jurídico positivado que coloca à margem o sistema de Justiça próprio das comunidades indígenas, este mesmo Leviatã é omisso em implementar a política pública promulgada no texto constitucional, qual seja: a conclusão da demarcação das terras indígenas e sua efetiva proteção.
Mesmo quando as comunidades tentam acessar o poder judiciário, elas são barradas.
<blockquote class="jota-article__eye">O processo de Guyra Roká reflete a realidade de muitas comunidades indígenas no Brasil que querem ver respeitado o seu direito de serem ouvidas, participarem das decisões que lhes afetam e dar a oportunidade ao Judiciário de conhecer a ótica indígena da demanda posta em mesa para julgamento.</blockquote>
No mérito, o processo de Guyra Roká versa sobre a aplicação do marco temporal: tese jurídica bastante controversa que pretende restringir o direito territorial dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam.  Mais uma vez, o Estado que foi omisso e conivente com as violações perpetradas contra os Kaiowá, agora se vale de uma retórica jurídica, que desconsidera o valor de Justiça aos povos para negar a ontologia indígena sobre a terra, mesmo no seio de um Estado que se diz pluriétnico.
Não é preciso vaticinar que o constituinte foi categórico ao preceituar que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas é originário e anterior a qualquer outro direito (art. 231, CF/88). “Essa a razão de a carta Magna havê-lo chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios” (Pet 3388 / RR – Rel.  Min. Carlos Ayres Britto, 2009) E mais, a Constituição afirma que são reconhecidos aos índios as terras que tradicionalmente ocupam.
O “reconhecer” para o Direito é diferente do outorgar, do conceder. O conceder obedece à lógica do doravante, o reconhecer, que foi a linguagem da Constituição, obedece à lógica temporal do desde sempre. Logo, não há que se falar em proteção somente a partir da data da promulgação da Constituição.
<hr />
O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
<hr />

WhatsApp Image 2021-03-31 at 11.26.43

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A demanda na origem cinge-se no reconhecimento do direito originário dos Kaiowá à sua terra tradicional

Os povos indígenas e o acesso à Justiça: o caso Guyra Roká na pauta do Supremo

Povos índigenas e o acesso à Justiça: a demanda na origem cinge-se no reconhecimento do direito originário dos Kaiowá à sua terra tradicional