Gustavo Cardoso Silva

<blockquote>“Assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra ordena-nos agora toquem para dançar”, Paul Celan, “Fuga”</blockquote>
Quando o regime fascista tombou na Itália, o representante da Literatura Alemã no exílio, Thomas Mann, então residindo nos Estados Unidos da América, profere um dos seus famosos discursos direcionados à Alemanha, até então diademada pelos ornamentos do regime nazista. Nele, Mann conclama seu povo: “Tomem consciência do que aconteceu! O fascismo foi destruído em sua terra natal. Acabou-se o domínio da careta queixuda, acabaram-se os excessos heroicos à Marinetti, as fanfarronices à d’Annunzio e todo o embuste do retrocesso que se porta como se fosse jovem e cheio de futuro.”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> 
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Era chegada, então, a hora de se romper com o jugo de Benito Mussolini: o bombardeio de Roma e a invasão da Sicília construíam um novo arco e, sobre as intempéries que marcharam até a sua queda, o romance “Todos os nossos ontens” (Tutti i nostri ieri), de Natalia Ginzburg (1916-1991), desvela-nos os afetos e memórias de duas famílias que, no transcorrer da narrativa, envolvem-se junto ao plano da resistência antifascista instaurado, sofrendo, por isso, as consequências da perseguição e incerteza diante futuro.
A escritora do romance, Natalia Ginzburg — não à toa, é proeminentemente reconhecida pela sua obra: guardiã de uma chave-poética que ressoa sobre as atividades do cotidiano, a autora detém uma literatura que parte de miudezas em direção a afetos universais. Neste sentido, torna-se plenamente possível encontrar em seu projeto literário a exploração da memória coletiva de suas personagens. Ao ler sua obra, podemos nos perguntar: o que os dramas ínsitos de uma guerra podem nos ensinar quando nos propomos a refletir sobre problemas de justiça, democracia e liberdade?
Sob pequenos flashes biográficos, mencionamos concisamente que a escritora, de ascendência judaica, teve importante papel no desenrolar das frentes combativas na Itália: junto ao marido, em 1943, diante da queda de Roma perante o regime fascista, foi responsável pela edição do periódico clandestino L’Italia Libera, onde se estabelecia fina sintonia com os ideais socialistas e antifascistas — a autora, neste contexto, esteve entre a nata da intelectualidade italiana, oscilando entre nomes como Norberto Bobbio e Cesare Pavese.
Em 1944, seu marido Leone Ginzburg é morto após ser capturado e torturado pelo regime. Em seguida, Ginzburg foge com os filhos para Florença e, após a Guerra, já em 1983, é eleita para a Câmara dos Deputados na Itália. Suas principais defesas foram, como é de se depreender, causas humanitárias. Além disso, teve importante contribuição com suas reflexões acerca do abalizado caso italiano que envolvia questões jurídicas em torno da adoção de uma criança filipina — o Caso Serena Cruz.
Sendo assim, iniludivelmente, revela-se a nós uma escritora de cunho crítico que se enlaça, fortemente, nas lutas antifascistas e pró-democráticas que se desenharam no decorrer do século XX. Parece-nos, então, na leitura que realizamos, que é justamente este caminho que se faz a partir de “Todos os Nossos Ontens”.
A obra, cuja narrativa se centra em torno de duas famílias, é dividida em duas partes e se desenrola no norte da Itália — em uma cidade cujo nome nunca é mencionado. Neste romance, acompanhamos a vida de Anna, Ippolito, Concettina e Giustino, irmãos que vivem junto ao pai — um antifascista fervoroso que tenta escrever um longo livro de memórias — e à Maria — uma governanta sabichona que trabalha, há muito anos, com a família.
Na segunda parte do enredo, tocamos mais claramente os aspectos da II Guerra Mundial e da campanha racial que invadia a Europa e lançava os judeus a um lugar de mera escumalha na comunidade. Saindo do norte italiano economicamente mais abastado, adentramos o sul socialmente mais abalado: com uma gama de camponeses ao léu, Cenzo Rena — personagem de relevância política, mas também de um paternalismo notável — atua como uma espécie de “guardião dos desvalidos”. É ele que, sobremaneira, concede alguma dignidade, por meio de favores e doações, àquela pequena comunidade camponesa que vive sob a égide da dominação nazifascista.
As cenas de perseguição racial ganham maior tonalidade ao final do romance quando Franz — um judeu que se escondia na casa de Cenzo Rena — é flagrado por um soldado alemão que, após tentar matá-lo, acaba sendo morto. A regra, entretanto, era clara: para cada soldado alemão morto, dez camponeses fuzilados. E era isto que estava prestes a acontecer até o momento em que Cenzo Rena toma a responsabilidade para si e é levado, junto com Franz, até aos soldados alemães:
Entraram uns fascistas na sala com Franz preso pelo braço e um deles gritava que o encontrara na porta da prefeitura falando alemão com o sentinela e queria subir, e gritava que o reconhecera, era um internado judeu alemão, gritava o nome e o sobrenome de Franz. E de novo Cenzo Rena disse que era um primo seu de Salerno e viera atrás dele porque estava sempre atrás dele, por todos os cantos, porque enlouquecera com a guerra. O chefe do comando batia a caneta sobre a mesa bem devagar e olhava fixamente para Cenzo Rena, esfregando o queixo e moldando a boca como se fosse assobiar (GINZBURG, 2020b, p. 303-304).
Cenzo Rena e Franz, após serem interrogados, acabam sendo fuzilados em praça pública, assim como tantos outros que caíram nesta malha de execução. A demonstração de perseguição a judeus, contudo, não se restringe apenas a esta obra de Natalia Ginzburg. Em “Léxico Familiar” (Lessico famigliare), seu livro de maior cunho autobiográfico e memorialístico, temos retratadas cenas da vida privada da autora, que foge, junto a sua família, da campanha racial instalada na Itália. Ao rememorar os judeus alemães que invadiam Turim, fugidos da Alemanha, Ginzburg diz:
Eram os sem-pátria. Talvez, dentro em pouco, nós também estaríamos entre os sem-pátria, obrigados a andar de um lugar para outro, de uma delegacia para outra, sem trabalho e sem raízes, sem família e sem casas (2018, p.146).
A mãe de Natália Ginzburg, por sua vez, otimista no começo de ascensão fascista na Itália, dizia ao sair de manhã: “— Vou ver se o fascismo continua de pé. Vou ver se derrubaram Mussolini.” (GINZBURG, 2018, p. 104). Após desencadearem a campanha racial, embaralhava as cartas e dizia: “— Vamos ver se o fascismo dura muito tempo.” (GINZBURG, 2018, p. 155). Já desiludida com o crescente avanço da blitzkrieg, dizia quando lhe falavam dos netos: “— Mas do que adianta irem bem, se daqui a pouco o Hitler vem e mata todo mundo?” (GINZBURG, 2018, p. 155).
<blockquote class="jota-article__eye">Memória e ficção, como se constata nestes excertos, unem-se para fazer ecoar os gritos de um núcleo familiar que representa, de modo profundo, a derrocada de toda uma coletividade que vivenciou o horror bem antes dos bombardeios alemães:</blockquote>
O perigo, a necessidade de se esconder, a consciência de ter que deixar de improviso o calor da cama e das casas, para muitos de nós começou há muitos anos. Surgiu nas distrações juvenis, nos perseguiu nos bancos da escola e nos ensinou a ver inimigos por toda a parte. (GINZBURG, 2020a, p. 63)
Gravitando em torno dos questionamentos jurídicos que defluem dos temas ginzburguianos, perguntamo-nos, a partir da leitura aqui estabelecida: se romances realmente importam em algo para o leitor além de mero deleito estético e intelectual. Existe, afinal, algum compromisso ético quando participamos de alguma narrativa? Após nos estabelecermos nos seios da família judia de Natalia Ginzburg — os Levi —, o que podemos erguer ou derrubar dentro de nossas próprias constituições de mundo? É verdade que podemos refinar nossa empatia e estabelecermos virtudes mais generosas para agir diante da dor dos outros?
Certa vez Toni Morisson, em uma palestra na Universidade de Harvard, disse que ninguém nasce racista, tampouco sexista, pois não há disposição fetal para nenhum destes preconceitos. Segundo ela (2020, p. 27): “aprende-se a Outremização não por meio do discurso ou da instrução, mas pelo exemplo.” Em Mikhail Bakhtin podemos delinear este processo pela seguinte fórmula: testemunho, identifico-me e então embarco na imaginação que me torna um agente responsável diante do outro. Assim, Kimberly A. Nance narra a responsabilidade da literatura em Bakhtin como um lugar onde:
“[...] a testemunha deve embarcar em uma passagem imaginativa começando com a identificação com o sofredor, mas concluindo com uma avaliação da própria inclinação e capacidade da testemunha para ajudar. Para Bakhtin, é somente por meio dessa viagem de ida e volta que uma testemunha se torna "responsável" por suas próprias ações em face da injustiça.” (2006, p. 62, tradução nossa).
Este projeto tem, cada vez mais, encontrado lugar no Direito: com Martha Nussbaum, Robin West e Lynn Hunt, teóricos de Direitos Humanos têm discutido formas de sistematizar uma proposta humanizadora à atividade jurídica. A fórmula é complexa, mas de modo simples, gira em torno da configuração de Mikhail Bakhtin apresentada acima.
Como defendemos, o caráter compromissado que o jurista pode estabelecer com a literatura não é a de mero “deleite” ou “conforto estético”. Sendo esta a linha para que apontamos, reportarmo-nos à literatura como provável instrumento de aprimoramento de virtudes — e entendemos, com isso, a adoção de uma racionalização proveniente do contato com o “Outro”, um ser desconhecido ao leitor (neste caso, ao jurista) que pouco ou nada interessa lhe interessa.
Deste contato, surge a responsabilidade, que nunca deve ser mitigada ou anulada, pois corre o risco de se camuflar e nos lançar aos profundos recônditos da escuridão aética. Se em Natalia Ginzburg (2020a, p. 62) as cicatrizes permanecem cravadas: “Não sararemos nunca mais desta guerra”, em Imre Kertész (2002, p. 65) elas também não se apagam, pois “a morte é um mestre da Alemanha, seu olho é azul, ele pode vir a qualquer momento, ele lhe encontra, onde quer que você esteja ele lhe encontra.”
Neste sentido, conforme o testemunho destes autores, percebe-se que, destituída a humanidade de um indivíduo, como ocorrido diante das campanhas de perseguição racial, decorre a anulação do próprio mundo enquanto habitação. Tal discurso de destituição da humanidade, contudo, não se encontra instituído apenas em arena política, ele também se reproduz em certos momentos na cena jurídica.
Explorando jurisprudencialmente estes contornos, voltemos ao emblemático julgamento do Habeas Corpus (HC 82.424-2) pelo Supremo Tribunal Federal (STF), onde a Corte manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger imposta a ele pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime de racismo. Por maioria de sete a três, o recurso foi derrotado em arena constitucional. O ministro Marco Aurélio<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, voto vencido, expôs que apenas:
“estaria configurado o crime de racismo se o paciente, em vez de publicar um livro no qual expostas suas idéias acerca da relação entre os judeus e os alemães na Segunda Guerra Mundial, como na espécie, distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre com dizeres do tipo ‘morte aos judeus’ ou ‘vamos expulsar estes judeus do País’.”
A perspectiva apresentada no trecho destacado do voto, contudo, soa um tanto equivocada, pois parece coadunar com o que diz a obra de Ellwanger<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> sobre o holocausto e o antissemitismo:
“Com estudos feitos por cidadãos de países que lutaram contra a Alemanha, tanto o número de 6 milhões de judeus mortos, como as respectivas histórias de câmaras de gás, não passam de uma grosseira mentira, cuja maior vítima é justamente a Alemanha, que já pagou indenizações beirando a casa dos cem bilhões de marcos [...]” (CASTAN, 1987, p. 136)
No contexto que se desenhou, o que propomos com a intersecção entre Direito e Literatura é uma introspecção mais profunda — pode soar romântico e utópico, mas sendo o jurista alguém que manobra a contingência da vida humana, perguntamo-nos: e se tomada de decisão fosse outra a partir de um contato com textos literários que demonstrassem a perseguição ao povo judeu? E se profissionais do direito pudessem ter tido contatos com os poemas de Paul Celan, onde judeus foram lançados aos cães em campos de concentração (que factualmente existiram) ou com a prosa de Natalia Ginzburg, que viu a família e amigos morrerem nos porões da perseguição nazifascista?
Se a pergunta paira no ar e promove reflexão, queremos com ela expor não mero pedantismo sentimental a juristas, mas, sim, demonstrar o testemunho como faceta viva da narratividade da vida humana. Se em a “Odisseia” de Homero aprendemos com Ulisses as virtudes de um bom herói, nos romances de Natalia Ginzburg podemos cultivar virtudes mais além, como justiça e empatia. Nestes tempos, em que a façanha se tornou verdade, não se pode querer fingir que nada acontece. Como ressoa em Natalia Ginzburg, “fechar os olhos, tapar os ouvidos, enfiar a cabeça embaixo do travesseiro”, isto não é mais permitido.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=WAU2xWiR5DQ&list=PLfhZjWODW9JVuLFe6U_ulxCduBHTeECHC&index=1
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTAN, S. E. Holocausto: Judeu ou alemão. Porto Alegre: Revisão Editora Ltda, 1987.
GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. Trad. Maurício Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2020a.
_________. Todos os nossos ontens. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2020b.
__________. Léxico Familiar. Trad. Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: Seis ensaios sobre racismo e literatura. Trad. Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
NANCY, Kimberly A. Can Literature Promote Justice? Trauma Narrative and Social Action in Latin American Testimonio. Nashville: Vanderbilt University Press, 2006.
KERTÉSZ, Imre. Kadish para uma criança não nascida. Trad. Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Trecho do discurso de Thomas Mann proferido em 29 de agosto de 1943 pela British Broadcasting Corporation — BBC.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=61291">http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=61291</a>. Acesso em 26 de março de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Pseudônimo de Castan.

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JOTA

Existe, afinal, algum compromisso ético quando participamos de alguma narrativa?

Memória, Direito e Fascismo: a potência da narrativa nos romances de Natalia Ginzburg

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