Tatiana Cardoso Squeff

Augusto Carrijo

No dia 15 de maio de 2021, em meio à escalada de violência entre Israel e Palestina, os israelenses realizaram um ataque ao prédio de 11 andares que abrigava duas agências midiáticas: Al Jazeera e Associated Press em Gaza. Muito embora o <a href="https://www.reuters.com/world/middle-east/gaza-tower-housing-ap-al-jazeera-collapses-after-missile-strike-witness-2021-05-15/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ataque</a> tenha sido avisado com uma hora de antecedência, permitindo que os repórteres e demais civis que estavam no local fossem evacuados e que nenhuma morte de jornalistas tenha sido contabilizada, faz-se necessário discutir sobre a sua (i)legalidade e potenciais desdobramentos.
O argumento utilizado pelas forças israelenses é que no mesmo edifício haviam “ativos militares pertencentes aos escritórios de inteligência do Hamas”. Apesar disso, tanto a <a href="https://www.aljazeera.com/news/2021/5/15/building-housing-al-jazeeera-office-in-gaza-hit-by-israeli-strike" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Al Jazeera</a> como a <a href="https://www.aljazeera.com/news/2021/5/15/building-housing-al-jazeeera-office-in-gaza-hit-by-israeli-strike">Associated Press</a> se manifestaram no sentido de este ter sido um ato de cerceamento de informações sobre o que ocorre no país, especialmente quando tropas israelenses <a href="https://www.theguardian.com/world/2021/may/14/israel-ground-troops-attack-gaza-strip-conflict" target="_blank" rel="noopener noreferrer">no dia anterior</a>, para além de bombardeiros, já realizavam incursões a pé na Palestina.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Outrossim, à luz do direito internacional humanitário, faz-se importante ponderar sobre esse ato, especialmente considerando acontecimentos recentes na história, como o <a href="https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft24049901.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">bombardeiro</a> à Serb Radio and Television Station (RTS, na sigla em inglês), em 1999 durante a ofensiva militar das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Belgrado, na Sérvia.
Para que estações midiáticas sejam consideradas um alvo legítimo de ataque durante uma ofensiva militar, essa conduta deve estar de acordo com o que prescreve o jus in belo, pontualmente, nas regras contidas no Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1977 (API, na sigla em inglês). Em seu <a href="https://www.icrc.org/en/doc/assets/files/other/icrc_002_0321.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 52</a>, que legisla sobre a proteção geral a objetos civis, determina-se que estes não podem ser alvo de ataques ou de represálias, de modo que apenas objetivos militares é que poderiam ser alvejados durante ofensivas militares.
Assim, considera-se que um ataque militar a uma estação midiática é legítimo quando ele preenche os requisitos estabelecidos no <a href="https://www.icrc.org/en/doc/assets/files/other/icrc_002_0321.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 52(2)</a> do API, quais sejam: que o objeto, que por sua natureza, localização, finalidade ou utilização contribua eficazmente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização, ofereça nas circunstâncias do caso presente uma vantagem militar definida.
Quem, de fato, deve realizar a ponderação e verificar se os elementos foram preenchidos são as forças ofensivas, no presente caso, Israel. Não é necessário que ela apresente essas motivações antes de realizar o bombardeio. Todavia, caso sejam as mesmas consideradas abusivas, poderão os militares envolvidos em tal ofensiva ser responsabilizados perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). Isso porque esse ato constitui um crime de guerra nos termos do <a href="https://www.icc-cpi.int/resource-library/documents/rs-eng.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 8(2)(b)(ii)</a> do Estatuto de Roma.
Importa salientar que a Palestina <a href="https://asp.icc-cpi.int/en_menus/asp/states%20parties/pages/states%20parties%20_%20chronological%20list.aspx" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ratificou</a> o Estatuto de Roma que cria tal tribunal em 2 de janeiro de 2015, de modo que os acontecimentos realizados em seu território poderão ser passíveis de investigação pela Procuradoria do TPI à luz do <a href="https://www.icc-cpi.int/resource-library/documents/rs-eng.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 12(2)(a)</a> que concede jurisdição para o Tribunal sob atos ocorridos no território de Estados que ratificaram o Estatuto.
Para que isso ocorra, pode a Procuradora do TPI, propio motu, iniciar um procedimento de investigação. Da mesma forma, qualquer Estado-Membro, organização internacional, organização não governamental, sociedade civil e afins pode prestar informações sobre a situação à Procuradoria, a qual, consoante os <a href="https://www.icc-cpi.int/resource-library/documents/rs-eng.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">arts. 15(1) e 15(2)</a> verificará se a situação é minimamente plausível. Em caso positivo, ela poderá solicitar ao Juízo de Instrução a abertura de inquérito. Este autorizando, nos termos do <a href="https://www.icc-cpi.int/resource-library/documents/rs-eng.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 15(4)</a>, a Procuradoria do TPI poderá apurar o caso, na tentativa de verificar as circunstâncias, a autoria e o actus dolus do suposto perpetrador.
Os elementos para o que o crime se configure estão presentes no documento “<a href="https://www.icc-cpi.int/nr/rdonlyres/336923d8-a6ad-40ec-ad7b-45bf9de73d56/0/elementsofcrimeseng.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Elements of Crime</a>” do TPI, onde são estabelecidos os requisitos tanto objetivos, quanto subjetivos, para que a ação em análise pela Procuradoria se equivalha a um Crime de Guerra. São estes, os elementos específicos do crime: 1 – O perpetrador direcionou um ataque; 2 – O objeto do ataque eram objetos civis, ou seja, objetos que não são objetivos militares; 3 – O perpetrador tinha a intenção de que esses objetos civis fossem o objeto do ataque; e os elementos contextuais dos crimes de guerra: 4 – A conduta aconteceu em um contexto e estava associada a um conflito armado internacional; e 5 – O perpetrador estava ciente das circunstancias factuais que estabeleciam a existência de um conflito armado.
<blockquote class="jota-article__eye">Se estiverem, portanto, presentes tais elementos, a Procuradoria oferecerá ao final do prazo uma denúncia ao Tribunal. Ocorre que mesmo estando todos esses elementos presentes, é possível que uma denúncia não seja oferecida. Isso porque o caso mais semelhante a este, qual seja, o do bombardeio à RTS em Belgrado, não se converteu em denúncia.</blockquote>
Após <a href="https://www.icty.org/en/press/final-report-prosecutor-committee-established-review-natobombing-campaign-against-federal" target="_blank" rel="noopener noreferrer">relatório</a> produzido a pedido do Procurador do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (<a href="https://www.icty.org/en/about" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ICTY</a>, na sigla em inglês), entendeu-se que os ataques perpetrados a RTS não constituíram em ilegalidades, de modo que nenhum militar da OTAN foi julgado pelo citado Tribunal por tais atos, mesmo que a <a href="http://ejil.org/pdfs/12/3/1531.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">doutrina</a> e a <a href="https://www.amnesty.org/download/Documents/140000/eur700182000en.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">sociedade civil</a> tenham entendido que houve em tal situação o cometimento de um ato ilícito (pontualmente, um Crime de Guerra).
Para estes, restou claro que naquela situação o alvo não poderia ter sido considerado legítimo à luz do supra citado art. 52(2) do API. O relatório foi inconcluso ao não comprovar que um ataque à estação midiática, naquele caso, contribuiria para a ação militar que estava sendo levada a cabo naquele momento pela OTAN no país, apresentando uma vantagem militar pontual.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Logo, não poderia ter sido considerado legítimo o ataque. Este teria sido considerado correto apenas se estivesse restado claro que a RTS integrava o sistema conhecido como “C3” da Sérvia, referindo-se às estruturas que compunham a rede de comando, controle e comunicação das lideranças estatais – no caso, <a href="https://www.britannica.com/biography/Slobodan-Milosevic" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Slobodan Milošević</a> – em relação aos seus subordinados, o que não foi o caso.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Isso pois, sob certas condições, as instalações que fazer parte desta cadeia contribuiriam eficazmente para a ação militar, nos termos do supra citado artigo 52(2) do API.
Ademais, avulta-se que o bombardeio da RTS não teria respeitado o princípio da proporcionalidade do Direito Internacional Humanitário, codificado no <a href="https://www.icrc.org/en/doc/assets/files/other/icrc_002_0321.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 51(5)(b)</a> do API. Isso porque o ataque à RTS ocorreu à noite e vitimou 15 civis.
Assim, no presente caso da Al Jazeera e da Associated Press, mesmo que não tenha sido confirmada nenhuma morte e o ataque tenha sido noticiado, permitindo que os civis abandonassem o local, demonstrando, com isso, o cumprimento do princípio da proporcionalidade, nota-se que a legitimidade do alvo escolhido ainda pode ensejar alguns debates em Direito Internacional. Afinal, para que ataque seja legítimo é preciso que (1) se comprove que o alvo contribui eficazmente para a ação militar inimiga, e que (2) sua destruição oferece uma vantagem militar definida às tropas israelenses; ao contrário, estar-se-ia cometendo um Crime de Guerra.
Por um lado, Roni Kaplan, porta-voz das Forças de Defesa de Israel, <a href="https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/ataque-a-predio-foi-necessario-porque-hamas-usa-midia-como-escudo-diz-porta-voz-de-israel.shtml">afirmou</a> que o ataque foi necessário porque o Hamas usa a imprensa e civis como escudos e, no prédio atacado, supostamente haveria uma instalação do grupo islâmico. Por outro, perante o Direito Internacional Humanitário, meras suposições não são suficientes para que um objeto se transforme em um objetivo militar legítimo, sendo necessário que as lideranças militares de Israel tenham provas dessas ligações para que, se os fatos forem objeto de investigação perante o TPI, estas sejam oportunamente apresentadas.
Apesar disso, note-se também a proximidade dos perpetradores das ofensivas em ambos os casos: OTAN (à RTS) e Israel (à Al Jazeera e à Associated Press) – ambos sujeitos de direito internacional vinculados/situados no Norte Global, aos os quais geralmente não são imputadas responsabilidades estatais/individuais, de modo que é bastante factível dizer que o presente caso, de Gaza, não resultará em uma denúncia mesmo se provas forem obtidas corroborando a ocorrência de um Crime de Guerra. Afinal, como <a href="https://academic.oup.com/chinesejil/article-abstract/2/1/77/358083?redirectedFrom=PDF" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Anguie e Chimni</a> alertaram quando dos bombardeiros da OTAN, “(international) justice is selective”.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vale ressaltar ainda, as implicações da vantagem militar na análise do Princípio da Proporcionalidade. O relatório do ICTY se utilizou de uma interpretação da norma que compara as perdas civis com a vantagem “geral” que ataque gerou na guerra, considerando assim, o bombardeio proporcional. No entanto, há quem afirme que a análise deveria levar em consideração os efeitos militares do ataque em um espaço de tempo mais direto e concreto. Sobre isso, cf. LAURSEN, Andreas. NATO, the War over Kosovo, and the ICTY Investigation. American University International Law Review, v. 17, n. 4, p. 765-814, 2002. p. 792-795.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Há quem afirme que ataques a estações midiáticos seriam legítimos quando estas fossem utilizadas para disseminar propaganda que incitasse o cometimento de crimes internacionais. Neste caso, assim como ocorreu nos julgamentos de Fritzsche e Streicher em Nuremberg, e nos julgamentos dos réus relacionados à <a href="https://www.theguardian.com/world/2000/jun/02/ewenmacaskill.ianblack" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Radio Television Libre de Mille Collines</a> e ao <a href="https://www.theguardian.com/world/2003/dec/04/andrewmeldrum" target="_blank" rel="noopener noreferrer">jornal extremista Kangura</a> em Ruanda, seria necessário demonstrar o mens rea dos perpetradores. Veja nesse sentido: FENRICK, William. Targeting and Proportionality during the NATO Bombing Campaign against Yugoslavia. European Journal of International Law, v. 12, n. 3, p. 489-502, 2001, p. 496; SALTER, Michael; MCGUIRE, Kim; EASTWOOD, Maggi. The Accidental Birth of Hate Crime in Transnational Criminal Law: 'Discrepancies' in the Prosecution for "Incitement to Genocide" during the Nuremberg Process involving the cases of Julius Streicher, Hans Fritzsche and Carl Schmitt. Lancashire: Lancashire Law School, 2013. P. 41-44; GORDON, Gregory. A War of Media, Words, Newspapers and Radio Stations: The ICTR Media Trial Verdict and a New Chapter in the International Law of Hate Speech. Virginia Journal of International Law, v. 45, n. 1, p. 139-198, 2004 p. 144.

ataque_gaza

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

No dia 15 de maio de 2021, houve um ataque ao prédio de 11 andares que abrigava as duas agências midiáticas

Possíveis desdobramentos do ataque à Al Jazeera e à Associated Press em Gaza

No dia 15 de maio de 2021, realizaram um ataque ao prédio de 11 andares que abrigava duas agências midiáticas