Isolamento social

Pós-crise da Covid-19: consolidação da era das plataformas digitais e e-commerce?

Várias práticas têm buscado se adaptar ao uso das plataformas para permitir a continuidade das relações contratuais estabelecidas

Crédito: Pixabay

As situações decorrentes do enfrentamento do Covid-19 se apresentam, em linhas gerais, como eventos imprevisíveis para a ordem jurídica, e, portanto, inalcançáveis à disciplina que os contratos celebrados no dia a dia costumam estabelecer para o trato volitivo dos contratantes (art. 393 do Código Civil).[1]

Diversos cenários fáticos determinarão ajustes contratuais, visto que o isolamento social e as medidas de enfrentamento da crise caracterizam situações típicas de caso fortuito ou de força maior, a reclamarem revisão contratual dos ajustes de tratos sucessivos ou de execução diferida por haver impossibilidade de execução específica das obrigações, tal como foram originariamente pactuadas, não havendo que se cogitar na assunção ordinária desse risco pelas partes.[2]

Nesse cenário, deve o direito dos contratos se valer de diálogo proveitoso com a economia. A incorporação do referencial explicativo da incompletude dos contratos[3], por exemplo, pode se mostrar útil para o enfrentamento de situações indesejadas trazidas pela crise, já que estamos diante de um fato extraordinário, a exigir, portanto, esforço cooperativo dos contratantes a fim de buscar o restabelecimento das equivalências contidas no ajuste inicial de vontade.

Esse comportamento evitaria a resolução geral dos contratos, o que certamente agravaria o impacto da crise para os mercados em geral. Seria mais sensato conceber, portanto, que num mundo repleto de incertezas, alguns fatos deverão ter seus riscos distribuídos ex post, com flexibilidade suficiente para permitir ajustes a posteriori.

Ainda nessa frutífera aproximação entre os campos do direito e da economia, muitas menções têm sido feitas a Keynes para amparar medidas interventivas no mercado no âmbito do direito econômico em contraposição às formulações ortodoxas do mainstream neoclássico. Não podemos nos esquecer, contudo, das contribuições de Schumpeter, particularmente de suas considerações sobre a dinâmica de funcionamento dos mercados.

Quando a passagem do tempo tornar a realidade em que vivemos mais apreensível, deveremos levar em consideração a dimensão dos efeitos da “destruição criativa.” Empresas quebrarão, algumas práticas desaparecerão, outras surgirão, fusões, aquisições e novos arranjos empresariais deverão emergir. Como Schumpeter descrevera, “o capitalismo é, por natureza, uma forma ou método de transformação econômica e não só não é, como não pode ser estacionário.”[4]

Nesse difícil cenário para formulação de prognósticos, ousaria arriscar que um segmento, em particular, deve ganhar ainda mais força e ampliar seu espraiamento: as plataformas digitais e o consequente e-commerce.

Admitindo toda a dificuldade em fazer prognósticos, especialmente diante de uma crise que ainda não traz contornos minimamente nítidos sobre seus impactos, arriscaria a dizer que as plataformas digitais ganharão ainda mais espaço no nosso tecido social e possivelmente se consolidarão como paradigma de negócio do Séc. XXI.

Conforme Evans[5] bem as descreve, as plataformas digitais permitem a reunião de diferentes tipos de agentes num determinado ambiente, facilitando a celebração das trocas, com a percepção de incremento de bem-estar por todos os envolvidos na transação. O incremento de utilidades advém de externalidades positivas propiciadas pelo meio virtual, especialmente pela redução dos custos de transação através da coordenação da interação dos distintos lados.

Se, enquanto escrevo este texto, o isolamento impõe todas as dificuldades transacionais aos mercados e sensível redução de bem-estar coletivo, devemos admitir que seria ainda mais dificultoso enfrentar esse período sem a utilização dessas plataformas.

Numa brevíssima descrição do quadrante que hoje enfrentamos, vemos que as plataformas de vídeo, como as educacionais do Google (“Google meet”), Zoom e outras tantas – têm permitido a continuidade de aulas, apresentações de bancas de mestrado e doutorado mundo afora, realização de reuniões remotas no meio empresarial e governamental e diversos afazeres da vida comum.

Os marketplaces e as plataformas de delivery – Ifood, Amazon, Uber eats e outros tantos – têm viabilizado a continuidade de parcela relevante do comércio e possibilitado a entrega de bens e alimentos num momento em que o distanciamento físico entre as pessoas se impõe como estratégia de contenção dos efeitos da contaminação da pandemia do coronavírus.

Do mesmo modo, as plataformas de entretenimento, streaming e as redes sociais têm permitido às pessoas manterem contato, e, desse modo, se apresentam como meios alternativos para a continuidade de diversos ofícios, além de se apresentarem como mecanismos suavizadores de sentimentos ruins que o isolamento suscita.

Ao refutar os prognósticos autodestrutivos que Marx atribuiu ao capitalismo, Schumpeter deu contornos a uma das palavras que mais se ouve neste período: resiliência. Para Schumpeter, a resiliência é a característica fundamental do sistema capitalista e, tomada num contexto de adaptação e inovação de práticas, o autor destacara que a dinâmica competitiva que realmente caracteriza o capitalismo se dá por meio dela, já que “produtos e métodos novos não concorrem com os produtos e métodos antigos em termos de igualdade, mas como uma vantagem decisiva que pode significar a morte destes. É assim que se dá o progresso na sociedade capitalista.”[6]

Várias práticas no nosso meio têm buscado se adaptar ao uso das plataformas digitais para permitir a continuidade das relações contratuais estabelecidas. Mesmo após o término da crise, poderemos vivenciar a consolidação de boas práticas surgidas nesse período e testemunharmos, quem sabe, uma nova dinâmica para diversas prestações de serviços e bens.

Mas nem tudo são flores. Cogita-se no adiamento da vigência de nossa lei de proteção de dados. Nossos dados pessoais constituem o principal ativo das plataformas digitais. E como bem destacara Yuval Noah, em artigo recentemente publicado no Financial Times, “hoje, pela primeira vez na história da humanidade, a tecnologia possibilita monitorar todo mundo o tempo inteiro”[7] e não sabemos ao certo como nossos dados serão utilizados no enfrentamento da crise atual e num futuro próximo. O adiamento da vigência da Lei nº 13.709/2018 torna esse cenário ainda mais nebuloso.

O Professor Hobsbawm gostava de dividir suas obras em eras. Se ainda estivesse entre nós, e os prognósticos aqui lançados se confirmassem, possivelmente batizaria o Século XXI como o da “Era das Plataformas Digitais” ou algo do gênero. Esperemos, portanto, o teste do tempo para termos a constatação empírica de como os mercados se organizarão e a refutação ou confirmação dos exercícios de futurologia ora compartilhados.

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[1] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

[2] A gravidade e o impacto global da crise provocada pela pandemia do Coronavírus podem ser sintetizadas nas palavras do Secretário-Geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, Sr. Angel Gurría: “The coronavirus pandemic is causing large-scale loss of life and severe human suffering. It is a public health crisis without precedente in living memory, which is testing our collective capacity to respond.” In OCDE. “Tackling the coronavirus (COVID-19): contributing to a global effort”. Disponível em: www.oecd.org/coronavirus/ Acesso em 10.04.2020.

[3] Revisão de literatura sobre o tema pode ser encontrada em CAMINHA, Uinie; LIMA, Juliana Cardoso. Contrato incompleto: uma perspectiva entre Direito e Economia para contratos de longo termo. Revista Direito GV 10 (1). Jan-Jun 2014, pp. 155-200.

[4] SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Trad: Luiz Antônio de Oliveira Araújo. São Paulo: Unesp, 2017, p. 119. Obra originariamente publicada em 1943, sob o título Capitalism, socialism and democracy.

[5] EVANS, David S. Multisided platforms, dynamic competition and the assessment of market power for internet-based firms. University of Chicago Law School, 2016.

[6] SCHUMPETER, Joseph. Op. cit., p. 55.

[7] HARARI, Yuval Noah: the world after coronavirus. Financial Times, 20 de março de 2020. Disponível em  https://www.ft.com/stream/e165f998-8465-31d4-9d19-f9064f8c3f69 Acesso em 10 de abril de 2020.