reforma tributária

Por um novo Carnaval tributário

Simples, transparente, justo, cooperativo e verde

13/02/2024|05:30
Carnaval
Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

Sexta-feira, começo de fevereiro de 2024. Centro do Rio de Janeiro já em preparativos para receber a mais profana e carioca das festas. Como os tempos dessa doce promiscuidade haviam passado, a preparação que levara o Tributarista Calejado às escuras vielas que se escondem entre a Avenida Marechal Câmara e a Cinelândia era bem menos colorida.

Após a última aula do cursinho “express” de um mês sobre “Reforma Tributária do consumo”, sua cabeça ainda processava os ensinamentos derradeiros do professor que parecia, ele próprio, ainda absorver as profundas mudanças trazidas à Constituição pela Emenda 132/23. Razoável, afinal eram as primeiras realmente estruturais em quase 50 anos (ou seja, desde a edição do Código, em 1966).

Verdade fosse dita, durante os 30 dias em que optara, à moda antiga, por aulas presenciais, a troca de ideias com os colegas havia conduzido o Tributarista (menos) Frustrado a mais conclusões positivas que negativas quanto aos impactos que a EC 132/23 geraria no complexo Sistema Tributário Nacional. E isso lhe trazia esperança, sentimento que há muito decidira nunca mais o enganaria.

Ilusória ou não, por certo era sensação justificável. Se as promessas teóricas se concretizarem, os novos tributos – CBS e IBS, a Contribuição e o Imposto sobre Bens e Serviços, respectivamente – teriam e/ou garantiriam (i) legislação única em todo o território nacional, (ii) base de incidência ampla, (iii) creditamento pleno, (iv) desoneração de exportações, (v) cálculo por fora, (vi) redução significativa de incentivos fiscais, (vii) tributação no destino, dentre outros. Premissas normativas muito diferentes das que levaram à sociedade a conviver, por décadas, com a complexidade, a irracionalidade e a obscuridade dos moribundos ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins. Logo, era o que era: esperança (a maldita) revigorada.

Durante aquele mês de imersão tributária, até houve outras questões que lhe voltavam à mente de tempos em tempos. O tal do Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” (art. 153, VIII, da CF/88), era uma frequente, com sua preocupante abrangência subjetiva. Mais uma, a “morte mais ou menos” do Highlander IPI, que, no apagar das luzes, segue vivo e em 2027 terá “suas alíquotas reduzidas a zero, exceto em relação aos produtos que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus” (art, 126, III, ‘a’ do ADCT). Outra, a variedade de exceções às alíquotas padrão de IBS/CBS, em evidente demonstração de que ter amizade na Corte permanece sendo arte e talento nacionais em franco desenvolvimento desde 1808.

Porém, naquele começo de fevereiro, durante a caminhada ao metrô, o que pulsava os neurônios do Tributarista Escolado era a intensa última aula. Nela, o mestre Aprendiz declamara quase como filósofo da Grécia Antiga os cinco novos princípios (art. 145, § 3º da CF/88) que formariam as bases do (novo?) Sistema Tributário que se pretendia construir: simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação e defesa do meio ambiente.

Peripatético de si mesmo, refletia passo a passo sobre o significado de cada um desses cinco novos compromissos constitucionais. Ainda que entre ruas já fantasiadas e coloridas pela ilusão, queria crer que essas promessas iriam além de passageiras mentiras, escondidas por detrás de plumas e paetês políticos. Até porque, tinha na realidade e na sua própria trajetória motivos para acreditar que entre os confetes e as serpentinas retóricos haveria sim, dessa vez, consequências práticas na vida dos cidadãos, tão acostumados com os limites das efêmeras alegrias do samba e do futebol.

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Simplicidade. Talvez nenhum dos cinco novos princípios fosse tão tangível. Ali, em direção à estação Cinelândia, na reta da Avenida Presidente Wilson, quase esquina com a Rua México, ainda estavam frescas na lembrança do Tributarista Andarilho as conquistas de dois anos antes.

Parte ativa no processo de debates que levara à edição da Lei Complementar nº 192/22, vivera (e vivia) as consequências práticas de ajustes normativos que tornaram o modelo de tributação de combustíveis mais simples e racional. Com a edição dessa LC, a cobrança de ICMS de diesel, biodiesel, gasolina, álcool anidro e GLP passara a ser feita pelo regime de tributação dito “monofásico”. Ou seja, apenas um fato gerador e um contribuinte, com alíquotas específicas e uniformes em todo o território nacional. Com isso, dera-se fim às cargas distintas por Estado – e aos irracionais complementos e restituições –, assim como à farra dos sonegadores contumazes, parasitas da complexidade.

Com a EC 132/23, tal modelo será mantido para o IBS (art. 156-A, § 6º, I), assegurando a manutenção dessas conquistas e “personificando” os ganhos que sistema mais simples pode trazer à sociedade (otimização do trabalho fiscal; dinamização do fluxo de caixa privado, com potencial de reinvestimento na economia; concorrência leal; etc.). E mais: seus fundamentos serão estendidos aos demais produtos, ainda que submetidos ao ordinário regime de débitos e créditos – não cumulatividade plena (neutralidade) –, com base ampla e devolução imediata de créditos. Ilusão de Carnaval? Talvez. Mas aqui, o passado recente dava suporte ao Tributarista Destaque para subir no carro alegórico e vestir a fantasia da tal (desgraçada) Esperança.

Transparência. Já na Rua México, manteve os passos e o pensamento na LC 192/22, lembrando-se de como era obscuro o regime de tributação dos combustíveis antes de suas alterações. Da mesma maneira, recordou-se de como, a partir da uniformização de carga, todo e qualquer contribuinte passara a saber exatamente quanto pagava de imposto quando abastecia seus veículos. Na realidade de IBS/CBS, sobretudo com legislação única em todo o território nacional, base de incidência ampla e cálculo por fora, a tendência é que esse valor seja, enfim, replicado para todo o Sistema.

Assim, com clareza e tangibilidade reais de o que pagam, quanto pagam, como pagam, para quem pagam, todos terão melhores condições de indagar – se assim desejarem – por que pagam, bem como de construir uma sociedade verdadeiramente cidadã, na qual devemos, podemos e queremos contribuir para a formação do bem comum. Máscaras e fantasias ficarão restritas às exceções festivas como dos dias de folia que se aproximavam, mas cairiam dos rostos de pessoas e empresas que se escondiam no dia a dia da obscuridade dos cálculos por dentro, dos incentivos fiscais direcionados, das guerras fiscais. Aos olhos de todos, a transparência tributária forjará nossa cidadania.

Justiça Tributária. Na descida das escadarias do metrô, o intenso fluxo do “vem” de pessoas chegando para ocupar as centrais ruas cariocas naquele pré-folia, levou o “vai” quase isolado do Tributarista Transparente às paredes de higiene questionável. Atento para nelas não encostar, mas desatento ao caminhar, quase tropeçou em senhora que, sentada nos degraus, descansava as costas enquanto apoiava criança contra o peito e caixa de balas sobre as pernas. Envergonhado pela distração meio indiferente, comprou-lhe penitente pacote de seus produtos e desejou-lhe protocolar boa noite.

Não fosse o frescor na mente das palavras do mestre Aprendiz, provável que essa corriqueira situação carioca e brasileira tivesse passado despercebida, como todas as anteriores. Porém, o olhar de desalento da mulher e o sentimento de culpa pelo bom berço do Tributarista Flagelado não lhe permitiam mesmo luxo desta vez.

O tributo não é fim em si mesmo, mas é ferramenta fundamental na construção de sociedade mais rica e menos desigual”, afirmara há pouco o mestre-filósofo, indo além: “Com sistema tributário mais simples e transparente, torna-se factível que cada um de nós o pague no limite de sua capacidade e que cobre para que os recursos sejam mais bem devolvidos em serviços públicos. Especialmente para quem mais precisa".

Sim, tributo simples e transparente é meio de alcance da melhor Justiça econômica e social possível, em especial nas grandes questões do século 21. Inclusive, para trazer amanhã dignidade à Senhora do degrau ou esperança à Criança do colo, hoje mera fotografia preto e branca perdida no filme colorido da festa pagã dos que sobem e descem suas vidas sem os ver.

Cooperação. Já na plataforma, o Tributarista (que queria ser) Justo, ainda pensava na escadaria, quando viu do outro lado da plataforma o Fiscal que anos atrás, quando estagiário, o expulsara de um dos Palacetes fazendários (tudo porque se recusara a deixar o recinto antes de receber certidão de regularidade que o chefe lhe havia garantido ser de direito de “cliente importantíssimo”). Episódio superado, mas não esquecido, quantas e quantas vezes nos anos seguintes não desenvolvera suas teses, escrevera suas peças ou despachara seus memoriais com a imagem do Fiscal malvadão ainda na mente, antagonista-vilão que lhe assombrava o subconsciente, ajudando a aumentar, de grão em grão, o contencioso nacional.

Mesmo mergulhado no mundo (literalmente) de fantasias do Carnaval, não se iludiria com mudanças drásticas na sua postura após apenas um mês de reflexões na turma do Aprendiz. Todavia, estava certo de que boa parte das lições sobre construção de maior confiança entre Fisco e contribuintes poderia, sim, influenciar sua forma de pensar e de orientar seus clientes. Instrumentos como transações, mediações, cadastros positivos, entre outros, tinham potencial para serem degraus mais dignos dos que os do metrô que há pouco descera, rumo à cooperação efetiva entre todos os membros sociais.

Por certo, escrever o que for na Constituição não é garantia de atingimento do fim em si. De toda sorte, se removidas as antigas máscaras da desconfiança e absorvidos os esculachos de outrora, medidas fiscais cooperativas teriam, sim, tudo para aprimorar e dinamizar não só a sociedade, como também o trabalho do Tributarista Solidário e de seus colegas.

Defesa do meio ambiente. O metrô chegara e, no contrafluxo do agito, o carro vazio conduzia o Tributarista Reflexivo e mais alguns trabalhadores no sentido Botafogo. As lições simples, transparentes, justas e cooperativas do mestre Aprendiz ainda latejavam forte em sua memória, mesmo em meio a pontuais e resistentes cânticos da “galera 40+” de “Explode coração, na maior felicidade” ou “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, isolados entre outros mais modernos e, digamos, “explícitos” (e que ouvira 200 vezes, mas, mesmo assim, não fazia a menor ideia quem os “compunha”).

Embora (preconceituosamente) convicto da involução musical nacional, igualmente estava da evolução dos princípios tributários nesses mais de 30 anos de Constituição. Estava vivo e trabalhara para ver o dia em que, além daqueles quatro novos, a “defesa do meio ambiente” passara também a ser propósito a ser perseguido tão avidamente quanto segurança jurídica, razoabilidade e liberdade econômica.

Justamente por conta dessa ponderação diversa como a contemporaneidade, a bem-vinda defesa ambiental deveria ser feita sob o equilíbrio de todos os básicos valores constitucionais. Fossem os novos; fossem os antigos.

Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que seria preciso trabalhar para o alcance de meios ainda mais limpos de produção de energia, fundamental permitir que os agentes produtivos os desenvolvessem gradualmente. E, para isso, tributos não poderiam tornar-se confiscatórios, punitivos ou discriminatórios a qualquer atividade relevante no presente para a sociedade, em especial sob pretensas bandeiras verdes.

Dessa maneira realista e idealista, o Sistema Tributário estará cumprindo seu papel de defender, sim, o meio ambiente, mas também a economia e cada um de seus integrantes, que necessitam hoje (e por vários “amanhãs”) da energia que move indústrias, abastece trens e caminhões ou transporta bens e pessoas. Aliás, inclusive aquelas ali no metrô, ao lado do Tributarista Presente e Futuro.

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Já na estação Botafogo, dessa vez era a subida do Tributarista a solitária. Entretanto, mesmo em meio às cores, aos cantos, às pinturas dos muitos que seguiam em sentido oposto, não se sentia sozinho. Pelo contrário: estava ainda bem acompanhado das já saudosas palavras de última-aula do mestre Aprendiz. Palavras essas de simplicidade, transparência, justiça, cooperação e defesa verde que há muito já lhe haviam dado as mãos. Mas talvez tenha nelas arrogantemente tropeçado, ante a excessiva concentração na cerrada e estreita visão de quem optara por anos observar apenas tipicidades, confiscos, não cumulatividades e paredes sujas. Tal como quase fizera com a Senhora e a Criança minutos antes.

Fosse o que fosse, seguiria adiante, como quem almeja a luz do Cristo Redentor, já acesa e firme no alto da Rua São Clemente. Nesse “Novo Carnaval Tributário”, a festa seria dos princípios e, sobretudo, das ações que os tornariam realidade, muito além do bem-intencionado papel constitucional. Máscaras e fantasias, como concluíra o mestre Aprendiz no fim da aula, que ficassem restritas às ruas embriagadas e entorpecidas pelas ilusões optativas da semana de sonho, mas que não avançassem pelas opções ilusórias da vida real.logo-jota

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