Caio Albuquerque

A modelagem das contratações públicas brasileiras há tempos é objeto de críticas em termos de eficiência. Apesar de a sistemática funcionar, nem sempre (quase nunca, para alguns) ela funciona de forma satisfatória. Seleções adversas, riscos morais, elevados custos de transação e diversos outros problemas permeiam os contratos firmados por entes públicos. Tudo parece ter raiz numa relativa dificuldade – apesar dos esforços doutrinários recentes – de superar a matriz ideológica que presume haver um eterno conflito entre o público e o privado
A <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.133-de-1-de-abril-de-2021-311876884">Lei 14.133/2021</a> até pretende melhorar essa questão, trazendo mais formas de negociação e de solução consensual de conflitos, além de um viés mais consequencialista no que tange às nulidades. No entanto, estabelecer uma fundação sólida, que condense uma nova forma de pensar acerca dos contratos administrativos, é necessária. Mudar as leis sem que seja mudada a mentalidade de quem as aplicará é o mesmo que dar um automóvel a alguém que andou a vida inteira a cavalo.
É por isso que seria útil um Manifesto Ágil das Contratações Públicas. Ou melhor: um Manifesto das Contratações Públicas Ágeis. A metodologia ágil não é novidade no âmbito da gestão de projetos. Seria, contudo, uma novidade interessante – e possivelmente muito bem-vinda – traduzir seus valores para que fossem aplicados às contratações públicas. Veremos a seguir como isso seria viável. O Manifesto Ágil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> original surgiu de uma reunião de desenvolvedores de software realizada em 2001. A ideia era expressar valores e princípios que pudessem ser seguidos para uma gestão mais eficaz de projetos de desenvolvimento de software. Esses valores acabaram influenciando diversas metodologias ágeis, como o scrum, o kanban e o lean. Os valores definidos pelo Manifesto Ágil são os seguintes:
<ul>
<li>INDIVÍDUOS E INTERAÇÕES mais que processos e ferramentas.</li>
<li>SOFTWARE EM FUNCIONAMENTO mais que documentação abrangente.</li>
<li>COLABORAÇÃO COM O CLIENTE mais que negociação de contratos.</li>
<li>RESPONDER A MUDANÇAS mais que seguir um plano.</li>
</ul>
Percebe-se que ágil, basicamente, é uma forma de pensar. É pensar em processos e organizações de forma mais eficiente e centrada nas pessoas e na colaboração entre elas. Eliminam-se práticas que não geram resultados, permitindo-se uma maior adaptabilidade do projeto às mudanças. Com isso, pretende-se a realização de entregas de produtos e serviços com rapidez e com maior frequência.
Quando aplicada em uma organização, a metodologia ágil tende a aumentar a transparência e a dar autonomia para as pessoas. Há maior integração entre as áreas e a facilitação de estruturas mais flexíveis e colaborativas de organização, o que pode ser bastante benéfico na busca por resultados efetivos. Apesar de o movimento ter iniciado com o desenvolvimento de software, hoje ele é aplicado a uma ampla gama de setores, tendo gerado resultados notáveis, inclusive ao setor público<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Já até mesmo cursos disponibilizados pela Enap acerca do tema<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Então, por que não usar o Manifesto Ágil para rever o framework das contratações públicas? Adaptando os valores aos contratos, poderíamos expressar os seguintes em um Manifesto das Contratações Públicas Ágeis.
<ul>
<li>INDIVÍDUOS E INTERAÇÕES mais que processos e ferramentas.</li>
<li>CONTRATAÇÕES COM ENTREGAS EFICAZES mais que documentação abrangente.</li>
<li>COLABORAÇÃO COM O CONTRATADO mais que negociação de conflitos.</li>
<li>RESPONDER A MUDANÇAS mais que seguir um plano.</li>
</ul>
Com isso, já teríamos um paradigma completamente diferente para a formulação, a interpretação e a aplicação das normas da Lei 14.133/2021. O foco em indivíduos e interações busca desburocratizar. É entender que as estruturas podem ser mais flexíveis e menos hierarquizadas para que haja ganhos de eficiência. A administração, conhecidamente burocrática e focada em processos, acaba deixando de lado possibilidades de solucionar problemas reais pelo simples enfoque nos procedimentos.
Também nas contratações focamos – muitas vezes, claro, com razão – na documentação abrangente. A ideia de ter contratações com entregas eficazes mais que documentação abrangente é, na verdade, focar apenas no que é necessário. Deve-se decidir de forma adequada quando e quanto documentar, de modo que o excesso de documentação não atrapalhe a eficácia do projeto. A colaboração com o contratado é um passo além da negociação de conflitos.
Como dito, a Lei 14.133/2021 trouxe mecanismos louváveis de resolução consensual de conflitos, mas o ideal mesmo é criar um ambiente de colaboração para que os conflitos sequer existam. Isso demandaria uma superação real da visão de que o público e o privado são como inimigos, cada um querendo cuidar de seus próprios interesses (quando, na verdade, ambos querem o mesmo: concluir adequadamente o contrato).
Já a capacidade de responder a mudanças envolve compreender que a execução da maioria dos contratos está sujeita a intercorrências. Não adianta querer acreditar no mito da completude contratual. Contratos são incompletos e não é viável que haja planos excessivamente rígidos, especialmente quando há uma prolongação deles no tempo.
O grande desafio para a Administração Pública na implantação de um framework ágil é a cultura. Tanto a cultura legislativa quanto a cultura organizacional são focadas no controle e nas limitações. Parte-se sempre do pressuposto de que haverá desvio de recursos, o que torna necessária a criação de mecanismos que impeçam que isso ocorra. Essa cultura somente pode ser mudada se for cultivada uma nova visão ao longo do tempo. É por isso que defendemos um Manifesto das Contratações Públicas Ágeis, de adoção generalizada, que permita uma mudança real de paradigma.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_%C3%81gil">https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_%C3%81gil</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Cf. <a href="https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/4310#:~:text=A%20pesquisa%20aponta%20que%20o,todos%20os%20envolvidos%20no%20processo">https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/4310#:~:text=A%20pesquisa%20aponta%20que%20o,todos%20os%20envolvidos%20no%20processo</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. <a href="https://www.publicspendforum.net/blogs/emilio-franco/2017/08/19/agile-procurement-public-sector/">https://www.publicspendforum.net/blogs/emilio-franco/2017/08/19/agile-procurement-public-sector/</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.escolavirtual.gov.br/curso/317">https://www.escolavirtual.gov.br/curso/317</a>

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JOTA

Modelagem brasileira há tempos é objeto de críticas em termos de eficiência

Por um manifesto ágil das contratações públicas

A modelagem das contratações públicas brasileiras há tempos é objeto de críticas em termos de eficiência