José Eduardo Faria

Com base na Lei de Acesso à Informação, o jornal O Estado de S. Paulo mencionou, em <a href="https://www.estadao.com.br/politica/empresas-com-causas-de-r-158-bilhoes-patrocinam-eventos-para-magistrados/">reportagem</a> do último domingo (5), 30 processos envolvendo valores vultuosos e que são de interesses de bancos, confederações empresariais, associações nacionais e entidades privadas que teriam destinado cerca de R$ 158 bilhões para eventos, congressos e simpósios da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/magistratura">magistratura</a>. O patrocínio desses eventos por grandes empresas, corporações e associações que discutem judicialmente multas, indenizações e dívidas, sob a justificativa de que eles são “fóruns acadêmicos” destinados a juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores, pode ser uma forma imoral de cooptação e de jogos de influência. Não é, contudo, um fenômeno novo para os sociólogos do direito. 
Por mais que os jornais tenham divulgado que esses “fóruns acadêmicos” envolvam viagens ao exterior, shows com artistas renomados, jantares em cassino, baladas, passeios de lancha e pagamento de passagens aéreas e despesas de hospedagens, e que entidades de juízes tenham distribuído nota afirmando que não há conflitos éticos, pois “selecionam rigorosamente os patrocinadores”, esse problema é conhecido desde 1970, por ter sido objeto de um estudo clássico realizado pelo sociólogo americano do direito Marc Galanter. 
Pesquisador do Institute for Legal Studies da Wisconsin University-Madison, onde lecionou por muito tempo, e mais tarde professor da London School of Economics and Political Science (LSE), ele publicou a primeira versão do trabalho em 1974 na edição 95 da revista Law and Society. O título do estudo por si só já é ilustrativo: “Do the haves still come out ahead?”, em inglês, ou “Por que quem tem sai na frente”, em português.
Ou seja, por contarem com recursos para montar eficientes departamentos jurídicos próprios ou contratar escritórios renomados e por estarem envolvidas em centenas e até milhares de processos, empresas, confederações e associações demandantes e/ou acionadas têm, de saída, experiência suficiente para se posicionar estrategicamente em cada litígio. Trata-se de um fator que desequilibra o acesso à Justiça, quebra a imparcialidade e afronta a concepção de igualdade de armas no processo judicial, pois na parte adversa muitas vezes se encontram clientes ou consumidores individuais com escassa experiência no campo dos serviços jurídicos. 
Na modelagem metodológica da pesquisa, Galanter faz uma distinção entre as duas partes, classificando as primeiras como repeat players e as segundas como one shooters – ou seja, jogadores habituais e jogadores ocasionais. Em outras palavras, estes últimos carecem de algo mais do que o simples controle dos recursos econômicos. Isto é, ao contrário da outra parte, faltam a estes últimos expertise e habilidade para formular estratégias ou know-how tático que lhes permitam gerir seus interesses com o objetivo de assegurar vantagens até o julgamento definitivo, cuja decisão não pode ser questionada.
Exemplo dessa distorção: segundo a pesquisa, que abriu caminho para muitas outras, inclusive no Brasil, os juristas convidados para esses “fóruns acadêmicos” são, a um só tempo, docentes de importantes faculdades de direito, pareceristas e sócios de escritórios de advocacia a serviço de elites empresariais e políticas. Além disso, o convívio entre magistrados e não magistrados nos resorts ou hotéis de luxo durante os eventos da magistratura cria um clima de camaradagem que permite conversas informais que, em alguns casos, deixariam corados padres franciscanos e freiras carmelitas. 
Nesse sentido, quando sociólogos do direito estudam e discutem o acesso à Justiça seguindo a metodologia de Galanter, o primeiro problema epistemológico que apresentam é uma indagação: acesso a quê? A resposta a essa indagação implica o desafio de se encontrar um caminho para converter a justiça civil em uma justiça cívica, diz David Trubek, antigo diretor do Institute for Legal Studies da Wisconsin University e meu mentor no pós-doutorado que fiz na instituição há quase quatro décadas. Foi ele quem não só me apresentou a Galanter como também me deu um exemplar da pesquisa em meu segundo dia na cidade de Madison, no final do verão de 1984, com a obrigação de apresentar um relatório no final do dia seguinte. 
Pioneira, sofisticada e até hoje atual, essa pesquisa não se limitou a apresentar apenas explicações econômicas para apontar injustiças nas decisões dadas pelos tribunais nos processos em que uma das partes é repeat player e a outra é one shooter. Ela e as demais pesquisas que inspirou mostram, por exemplo, como os tais “fóruns acadêmicos” promovidos pela magistratura tornaram-se locais de relações de juízes com entidades corporativas e organizações governamentais, em detrimento dos interesses judiciais de pessoas físicas.
As pesquisas também mapeiam as necessidades jurídicas não atendidas pela Justiça. Recorrendo a metodologias inéditas, a pesquisa de Galanter e as que nela se inspiraram procuram identificar a natureza da demanda dos serviços judiciais, a natureza da oferta desses mesmos serviços e a natureza dos problemas jurídicos levados aos tribunais de diferentes países. E ainda apontam uma diversidade de litígios mal atendidos em todos os ramos da profissão jurídica, sejam os clientes ricos ou pobres, uma vez que o julgamento individualiza conflitos que se referem a grupos ou interesses públicos mais amplos. 
Um dos pontos mais altos da pesquisa de Galanter é a explicação de como os símbolos do sistema constitucional americano de liberdades individuais se converteram — por meio de decisões judiciais — num sistema de prerrogativas para organizações e corporações. No caso Citizens United versus Federal Election Commission, por exemplo, a Suprema Corte combinou a proposição de que corporações são pessoas, motivo pelo qual gozariam dos direitos da liberdade de expressão garantidos pela primeira emenda da Constituição americana, com o entendimento segundo o qual gastar dinheiro é uma forma de expressão. Com base nesse argumento, a decisão derrubou as limitações sobre os gastos das grandes corporações empresariais em anos eleitorais. 
Um segundo ponto importante revelador de como “quem tem sai na frente” está no fato de que os advogados dos jogadores eventuais são profissionais sem maiores relacionamentos sociais e corporativos, atuando exclusivamente nos tribunais. Por isso, não têm disposição nem preparo suficiente para construir alianças duradouras com clientes e para operar em tribunais distintos e em todas suas instâncias. Portanto, só estão preocupados com os honorários e é pouco “provável que sirvam de agentes da transformação distributiva”, afirma Galanter. Um terceiro ponto está no fato de que as corporações seriam quase imunes a punições criminais. 
Como diz Galanter, “elas não podem ser presas e as multas são normalmente mínimas com relação às vantagens corporativas, já que são designadas tendo em vista pessoas físicas”. Paradoxalmente, contudo, as mesmas corporações costumam utilizar, com sucesso, o sistema de justiça criminal para punir ofensas contra elas próprias oriundas de jogadores ocasionais. “Corporações gozam de relativa imunidade à condenação moral da busca obcecada por vantagem, o que seria considerado vergonhoso, senão hediondo, se tentado por uma pessoa física (por exemplo, a mudança de endereço ou de estatuto para se garantir vantagens tributárias ou a realocação de recursos para evitar encargos)”, diz ele.   
Ao analisar medidas para tornar a litigância mais justa, preservar os interesses daqueles “que não têm” e reduzir as vantagens desfrutadas pelos “jogadores habituais”, graças ao seu poder econômico e a suas “vantagens culturais”, Galanter pesquisou as regras sobre custas processuais e a reformulação dos critérios de pagamento de indenizações e da adoção de novas formas de pagamento de honorários apresentadas na época em que realizou sua pesquisa. Medidas como essas são importantes para assegurar tratamento igualitário às partes, sejam elas jogadores regulares ou jogadores ocasionais, não há dúvida.
Contudo, serão elas eficientes, impedindo os “que têm” de sair na frente? Ao olhar do outro lado do telescópio, refletindo sobre o cotidiano da vida judicial e não sobre as regras que a disciplinam em termos institucionais, sociólogos do direito — na linha inspiradora de Galanter — detectaram que, por mais rigorosas que sejam, nada garante que não acabem sendo corroídas pouco a pouco na vida cotidiana forense pelos relacionamentos pessoais, pela lealdade difusa, pelos interesses estamentais comuns da elite dos operadores jurídicos e pelos jogos de poder das corporações de operadores jurídicos que defendem suas “causas”. Uma prova foi a <a href="https://www.estadao.com.br/politica/viagens-patrocinadas-de-juizes-cnj-flexibilizou-controle-sobre-eventos/">notícia</a> publicada nesta segunda-feira (6) também por O Estado de S. Paulo, informando que uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o órgão criado pela Emenda Constitucional 45 para fiscalizar e controlar a magistratura, desobriga juízes de informar sobre suas idas a eventos.

justiça

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JOTA

'Fóruns acadêmicos' patrocinados para a magistratura não são novidade para os sociólogos do direito

Por que &#8216;quem tem&#8217; sai na frente?

Por que 'quem tem' sai na frente?

Pesquisas inspiradas por Galanter mostram como 'fóruns acadêmicos' tornaram-se locais de relações de juízes com entidades corporativas