Flávio Luiz Yarshell

Viviane Siqueira Rodrigues

No momento em que este texto é escrito, não há consenso na comunidade jurídica a respeito da imediata e concreta viabilidade da implantação da arbitragem coletiva no Brasil.
Nesse contexto, em tempos relativamente recentes, o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) editou a <a href="https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/norma-complementar-02-2023/">Norma Complementar 2/23</a>, que positivou o assim denominado “Regulamento de Arbitragem Societária”. Embora a norma não seja explícita, não há exclusão do tratamento da arbitragem societária coletiva, uma vez que as causas que versam sobre responsabilidade (artigo 2º, “c” e “d”) podem atender aos requisitos do artigo 1º cumulativamente.
Dentre outras perguntas que poderiam ser formuladas, propõe-se aqui o enfrentamento da que se reputa fundamental: precisamos de regulamentação legal a respeito de uma arbitragem coletiva no Brasil? O objetivo, portanto, não é avaliar as regras processuais de referida norma do CAM-CCBC, mas, dando um passo atrás, reforçar colocações que já fizemos[1] no sentido da necessidade de debate legislativo prévio à regulamentação pelas instituições.
Sendo certo que há especialidade na tutela coletiva de direitos transindividuais, é nos aspectos estruturais do processo coletivo – muitos deles, nos dias de hoje, já dependentes de modernização – que se identificam desafios que nem o processo judicial foi capaz ainda de superar, mesmo depois de mais de 30 anos de vigência da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-da-acao-civil-publica">Lei da Ação Civil Pública</a> (1985), da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">Constituição Federal</a> (1988) e do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/codigo-de-defesa-ao-consumidor">Código de Defesa do Consumidor</a> (1990).
São diversas as deficiências do processo coletivo brasileiro, o qual, em sua convivência com o processo individual e dadas as características da litigância nacional, até hoje não foi capaz de se tornar o remédio natural e mais eficiente para a solução dos conflitos de massa. Tanto que o CPC de 2015 fortaleceu os mecanismos de julgamento aglutinado e obrigatório de casos repetitivos, deixando de lado ferramentas (optativas) que o processo coletivo fornecia.
Não se vê, portanto, na flexibilidade processual da arbitragem uma saída para o tratamento adequado dos litígios transindividuais. Das muitas soluções já pensadas para as pretensões transindividuais patrimoniais, nenhuma passou por um processo moldável caso a caso, como se faria com o recurso à flexibilidade, o que trairia a missão de tratamento uniforme e previsível de direitos com origem comum.
Por isso, a existência da arbitragem coletiva depende de debate legislativo apropriado, a fim de assegurar uniformidade, estabilidade, previsibilidade e, assim, segurança jurídica para esta possível modalidade de processo arbitral.
O tratamento coletivo dos direitos individuais homogêneos tem contornos de indisponibilidade e, ainda que o objeto da controvérsia possa ter um recorte versando sobre direitos que admitem transação, há normas estruturais do processo coletivo que não podem ser objeto de convenção e, portanto, dependem da observância de preceitos gerais e abstratos, previstos nas Leis 7.347/85, 7.913/89 e 8.078/90. É certo que a regulamentação nacional já está defasada frente às necessidades atuais, tanto que existem três projetos sobre o tema em andamento na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a>: <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2261966">PL 4441/20</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2263651">PL 4778/20</a> e <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2279806">PL 1641/21</a>.
Embora convirjam sobre alguns assuntos, os três textos possuem propostas distintas sobre aspectos importantes do processo coletivo, como por exemplo: o modo de adesão ao grupo do titular do direito individual, e respectiva eficácia da sentença coletiva, suspensão dos processos individuais pela ação coletiva, suspensão da prescrição das pretensões individuais em razão da propositura da ação coletiva e autocomposição.
À luz do CDC, o titular de direito individual homogêneo, que não tenha ajuizado demanda individual, poderá sempre aguardar inerte o desfecho da demanda coletiva porque, se assim fizer, conseguirá usufruir dos seus efeitos benéficos e nunca ficará adstrito aos seus efeitos negativos, ficando-lhe ressalvada a ação individual ainda que haja derrota na esfera coletiva. Apenas um dos projetos propõe um mecanismo de opt out – aquele que tende a ser mais eficiente do ponto de vista da vinculação da sentença aos membros do grupo, porque é mais inclusivo. E, assim, a qual solução a arbitragem coletiva deveria se filiar? Aquela mais eficiente ou à que tende a esvaziar a importância da tutela coletiva? A resposta parece ser óbvia.
Com relação à autocomposição, as soluções projetadas não esclarecem se o acordo firmado por um legitimado vincula o outro legitimado e se impede reabertura de discussão. Enquanto isso, a jurisprudência vacila[2]. E então, se nem o direito projetado apresenta um caminho seguro para a autocomposição, onde a arbitragem encontrará parâmetros para que uma composição tenha efetivamente eficácia extintiva do conflito? O direito atual e os projetos não dão solução segura.
Já a Lei 7.913/89 manteve-se estática ao longo de décadas, com exceção da alteração de 2021 que explicitou a legitimidade ativa da Comissão de Valores Imobiliários (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cvm">CVM</a>) (art. 1º). Tal norma especial, com seus singelos cinco artigos, sempre dependeu da regulamentação da ação civil pública, conforme acentua o art. 3º que remete à aplicação da Lei 7.347/85.
É certo que os projetos em curso e os debates no âmbito legislativo poderão  contribuir muito para o aperfeiçoamento do processo coletivo no Brasil que, mesmo depois de mais de 30 anos de existência, ainda tem desafios. E para a arbitragem ser mecanismo propício para a solução de conflitos versando sobre direitos e interesses individuais homogêneos, muitos dos aspectos acima tratados não poderão ser objeto de convenção das partes, em razão da mencionada indisponibilidade da tutela coletiva dos direitos transindividuais e da necessidade de previsibilidade sobre as regras aplicáveis.
Além disso, causam preocupação algumas propostas difundidas no sentido de que a liquidação individual da sentença arbitral coletiva não precisaria, ou sequer poderia, ser tratada em arbitragem. E que ela competiria ao Judiciário, assim como a execução individual. A ideia parece provocar uma quebra desnecessária de cognição, liquidação envolve a fixação do quantum debeatur, o que sem dúvida é matéria de mérito na relação controvertida, e não apenas de coerção visando o cumprimento de obrigação de pagar quantia. Seria mais profícuo admitir mecanismos facilitadores de cálculos e de impugnações, bem como pagamentos administrativos aos beneficiários da sentença, mas jamais segregar a atividade cognitiva condenatória da atividade de liquidação, o que não parece trazer qualquer vantagem ou prestígio à arbitragem coletiva.
Portanto, para a arbitragem coletiva significar uma fórmula avançada e mais eficiente do que o processo coletivo tradicional, com antídotos – todos previsíveis, e não dependentes de decisão ou consenso caso a caso – para os problemas que a jurisdição estatal não conseguiu eliminar até hoje, devem ser respeitadas as normas estruturais da tutela coletiva de direitos. Em sendo superada, portanto, a vontade legislativa para que o processo coletivo possa ser conduzido em sede arbitral, seguem <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2023/09/esboccca7o-de-lei-sobre-arbitragem-coletiva.pdf">sugestões de preceitos normativos</a> para uma arbitragem coletiva que, a depender de sua evolução, pode vir a se tornar um exemplo para o processo coletivo estatal.
<hr />
[1] Com maior profundidade, tratamos dos fundamentos e esboço de uma futura arbitragem coletiva no Brasil, em texto assim denominado que se encontra no prelo para publicação em obra coletiva.
[2] No sentido da possibilidade de vinculação do colegitimado: STJ, REsp 1656874/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 13/11/2018; TRF4, apelação cível 5009822-82.2015.4.04.7200, Rel. Des. Rogerio Favreto, Terceira Turma, j. 29/6/2021. Em sentido contrário: TRF4, apelação cível 5012007-25.2017.4.04.7200, Rel. Des. Rogerio Favreto, Terceira Turma, j. 7/10/2021.

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JOTA

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