Fabrício Polido

Na última quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o julgamento da <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4984195" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.529</a>, que questiona o artigo 40, parágrafo único da Lei 9.279/96, a Lei brasileira de Propriedade Industrial (LPI). O julgamento havia sido retomado pela Corte, com o voto do ministro Toffoli, relator da ADI, e que já se manifestou pela inconstitucionalidade do dispositivo. No dia 6 de maio, o plenário prosseguirá com o restante do voto do ministro-relator e rodada de manifestações dos demais ministros.
A principal questão de repercussão constitucional e relevância social para a área da propriedade intelectual no Brasil diz respeito ao prazo total de vigência de patentes de invenção e modelos de utilidade, que segundo a LPI é de 20 e 15 anos respectivamente (Art.40, ‘caput’). O dispositivo questionado, um apêndice sempre mal interpretado e aplicado na prática da LPI brasileira, tem servido para fomentar disputas administrativas e judiciais sobre a extensão ou prorrogação do prazo de validade das patentes. Ele tem sido lido como se pudesse conferir uma espécie de “compensação temporal” para titulares pelo tempo dispendido entre o depósito do pedido da patente e a concessão definitiva do registro pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
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Por isso, a discussão trazida ao STF também acabou se direcionando ao chamado ‘backlog’ dos procedimentos de análise de patentes pelo INPI, a quem são atribuídas a responsabilidade pelo acúmulo dos pedidos e demora na concessão do registro.  A autarquia é condenada pelas chagas históricas de o Brasil operar como se fosse um grande cartório emissor de certidões registrais. Ela tem trabalhado nos últimos anos para redobrar os procedimentos de análise expedita em certas modalidades de pedidos de patentes (procedimentos simplificados), avançou em programas de aceleração de pedidos pendentes que se encontram em backlog e fortaleceu ativamente muitos projetos e redes de cooperação internacional e regional com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e escritórios de PI na América Latina e ao redor do globo.
O julgamento de mérito da ADI 5529, entretanto, não poderia desviar-se das principais questões normativas constitucionais e internacionais sobre o tema. Elas dizem respeito aos ciclos de inovação na indústria, concorrência e ampliação de mercados de tecnologias. É a oportunidade do Tribunal de examinar, do ponto de vista das políticas de patentes, os reflexos de uma decisão de inconstitucionalidade do dispositivo – o art.40, parágrafo único da LPI, na totalidade dos setores das tecnologias. Um contencioso constitucional desse porte não poderia servir para favorecer determinado conjunto de patentes de invenção, sobretudo as que já caíram e as que devem cair em domínio público, se respeitado o prazo de vigência de 20 anos. Não diferentemente, tanto a lei brasileira como as normas internacionais relevantes partem de uma racionalidade máxima: o tempo importa para o Direito. E o mesmo deve ser compreendido quanto ao significado do prazo de validade para as patentes de invenção, seus desdobramentos sobre os mercados, desenvolvimento de novas tecnologias e interesse público do sistema de patentes.
Uma decisão pela inconstitucionalidade poderá ser desfavorável a certas empresas titulares de patentes, como em áreas da indústria farmacêutica, química, óptica e telecomunicações, ou mesmo para instituições públicas brasileiras com patentes já concedidas e válidas e que seriam beneficiadas pela manutenção da vigência da regra questionada na LPI. A sistemática da Lei, que não pode ser interpretada “em tiras” (para lembrar a advertência do professor Eros Grau) - ou “memes” das redes sociais na atualidade- não autoriza mecanismos para extensão da proteção para além de 20 anos. Não sem que tais decisões deixem de ser escrutinadas a partir do ponto de vista de legalidade internacional, constitucional e em relação ao interesse público nas avenidas do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Igualmente, o dispositivo como tal não favorece a totalidade dos agentes econômicos por setor da indústria e tecnologias, particularmente aqueles que avançam no ciclo de inovação concorrendo com os titulares de patentes. Por isso, ele se encontra em manifesta divergência com a prática internacional e com a leitura da LPI em conformidade com a própria Constituição da República.
Eu destacaria uma série de argumentos que foram explicitados pela riqueza das posições e intervenção democrática de atores interessados como ‘amicus curiae’ do STF no bojo do processo constitucional. Primeiramente, existem regras internacionais, como as previstas no Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio (Decreto 1.355/94), que determinam aos seus signatários, dentre eles o Brasil, a obrigação de assegurar legalmente o prazo de 20 anos para validade de patentes (leiam-se “20 anos contados a partir da data de depósito do pedido”, nos termos do art.33 do TRIPS), sendo plenamente assegurados os direitos de exclusividade ao titular da patente nesse período, o que se aplica a todos setores da tecnologia e sem discriminação quanto ao local da invenção (art.27.1 do Acordo). Nesse sentido, deve o direito brasileiro ser interpretado e aplicado de forma consistente com o Acordo TRIPS, como mesmo estabelece um dos mais influentes comentários sobre o tema, o prestigiado ‘<a href="https://unctad.org/system/files/official-document/ictsd2005d1_en.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">UNCTAD-ICTSD Resource Book on TRIPS and Development’</a>.<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em segundo lugar, tanto a Constituição da República como o art.8º do TRIPS condicionam a proteção temporária dos direitos de propriedade intelectual ao interesse social e desenvolvimento tecnológico e econômico do país. A regra viabiliza, igualmente, as oportunidades de exploração de qualquer invenção patenteada que caia no domínio público com o término da validade da patente em 20 anos, como ocorre com atividades de fabricação de genéricos no campo farmacêutico, de insumos químicos para agricultura e processos alimentares. A preocupação da Constituição, muito antes do art.8º do TRIPS – um pleito do intenso envolvimento de países em desenvolvimento na Rodada Uruguai do GATT, que levou à criação da OMC e adoção do Acordo, foi a de pensar em um sistema da propriedade industrial voltado para a promoção da inovação tecnológica, transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico. Esse sistema deve antes assegurar que a obtenção, a manutenção, gerenciamento e exploração de patentes sejam feitas de modo favorável ao bem-estar social econômico e conducente com o equilíbrio entre direitos e obrigações.
A articulação entre o Art. 5º, inciso XXIX, da Constituição e o artigo 8º do TRIPS será uma das peças-chave para que o STF contribua para o debate constitucional da propriedade intelectual, a partir da influência construtiva do elemento temporal - e não meramente consequencial - da vigência das patentes no direito brasileiro. Aliás, o prazo de 20 anos, do ponto de vista econômico, tem sido observado como suficiente para estimular o ciclo inventivo na área da indústria, para a recuperação de investimentos feitos pela titular e dar continuidade ao processo de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&amp;I) em novos produtos e processos.
<blockquote class="jota-article__eye">A teoria econômica estima média variável de 15 a 17 anos como ótima para os reclamados ganhos patentários e tem buscado revisão das métricas predominantes por segmento de tecnologia, área da indústria e requisitos regulatórios<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.</blockquote>
Do ponto de vista legal, inclusive, o prazo de 20 anos para uma patente concedida à invenção – porque não existe expectativa de direito ou “coisa esperada” na propriedade intelectual - já assegura aos titulares o direito de se opor a qualquer terceiro ou concorrente que utilize a invenção sem autorização, ressalvadas as exceções e limitações que a Lei mesmo prevê (por exemplo uso experimental da patente, desenvolvimento de pesquisa em torno da patente, patentes dependentes etc.). Esse direito, inclusive, subsidia pedidos indenizatórios em caso de violação da patente, com o que o titular, autor da ação, reunirá as condições para postular em juízo as demandas relevantes.
Temporalmente considerado, portanto, o que mais importa é a data do deposito do pedido de uma patente, porque a partir dela, além da prioridade para depósitos subsequentes em países da OMPI e OMC, por via da aplicação de regras da Convenção de Paris de 1883 e do Protocolo de Cooperação em Matéria de Patentes de 1970, o PCT (vigentes para o Brasil), e uma vez concedida pelo Escritório de PI (no caso, o INPI), a patente conferirá ao titular os direitos para reclamar contra quem quer que copie, reproduza, comercialize ou importe a invenção protegida, e para obter as indenizações devidas em caso de violação.
Por outro lado, vale a pena reforçar, o Brasil não está obrigado internacionalmente a reestabelecer, restaurar ou reinstituir proteção patentária sobre uma invenção que tenha caído em domínio público. Nem sequer a LPI e a Constituição brasileira autorizariam, em virtude da limitação do tempo e do objeto patenteável, extremar qualquer solução descaradamente artificial, como a que é postulada pelos atores que defendem a constitucionalidade do Art.40, parágrafo único da Lei.  A regra expressamente prevista no Art. 70.3 do Acordo TRIPS/OMC (“Não haverá obrigação de restabelecer proteção da matéria, que, na data de aplicação deste Acordo para o Membro em questão, tenha caído no domínio público”) não foi explorada a contento nos debates da ADI 5.529 e oferece importante base para apoiar a decisão internacionalmente consistente e informada por parte da Corte constitucional brasileira.
Como o Brasil já é obrigado pelo Acordo TRIPS, em seu atual estágio de aplicação e sua observância pelo Estado brasileiro, tanto o INPI como legisladores ou tribunais não poderiam criar mecanismos e procedimentos aptos a restaurar proteção patentária onde subsista (e resista) o domínio público. Isso ocorre, por exemplo, com invenções que deixaram de ser protegidas por patente em virtude do lapso temporal de vigência, ou mesmo pela ausência de requisitos de patenteabilidade daquele produto ou processo que não constituem invenção, mesmo porque nesses casos a patente concedida seria suscetível de nulidade. Uma decisão majoritária do STF por eventual constitucionalidade do parágrafo único do art.40 da LPI não deixará de enfrentar os efeitos deletérios da prorrogação de validade de patentes sobre o domínio público, pois a data de entrada em domínio público é, sim, o principal evento esperado com o prazo decorrido dos 20 anos. A extensão de prazo patentário, ao revés, flerta com o indesejável efeito de alterar a rota concorrencial natural e desejada no campo das patentes. A solução pela manutenção do art.40, parágrafo único da LPI, portanto, seria efetivamente prejudicial ao interesse de novos inventores e concorrentes, impedidos de explorar tecnologias que deixaram de ser objeto/matéria protegida por patente e renovar o ciclo inventivo e inovador na indústria. A interpretação consistente da LPI brasileira com o arts.8º e 70.3 do TRIPS rechaça resultados legais e artificiais trazidos pela extensão do prazo de patentes, pois todo Membro da OMC, dentre eles o Brasil, terá ampla margem de discricionariedade para excluir da proteção patentária quaisquer produtos ou processos tecnológicos que tenham caído no domínio público e fazer valer o equilíbrio entre direitos e obrigações<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Importante que o leitor observe que muitos agentes econômicos atuantes nos segmentos de tecnologia da informação e internet, biotecnologia e energias limpas, por exemplo, exploram alternativas variadas no campo da propriedade intelectual, sem depender única e exclusivamente de patentes de invenção para ampliar as vantagens competitivas, ganhar valor de mercado e eficiências. Modelos de arranjos colaborativos em P&amp;D, inovação aberta, contratos de parceria, joint ventures, acordos de repartição de benefícios e arranjos de investimento constituem instrumentos potencializadores da adequada gestão e desenvolvimento de novas tecnologias. Em campos de patentes e proteção de software, igualmente, determinadas tecnologias são superadas em tempo radicalmente inferior a 20 anos, de modo que a movimentação do aparato estatal, para reconhecimento e outorga de registros, seria também questionável, do ponto de vista econômico, institucional e de políticas públicas. A prorrogação da vigência de patentes de invenção, com base em expedientes processuais centrados no Art.40, parágrafo único, da LPI, teria outra consequência absurda – que não poderia ser tampouco superada pela imputação de ‘responsabilidade’ a um órgão como o INPI brasileiro por atrasos gerados pelo ‘backlog’. Ela se encontra distanciada, por seus efeitos práticos, sociais e tecnológicos, da situação concreta da exploração da mesma invenção em outros países, já integrada ao domínio público há muito tempo. No Brasil, ao contrário, são patentes praticamente perenizadas pelo artificialismo de decisões judiciais e administrativas. Nesse quesito, o império do anacronismo não pode prevalecer sobre a realidade das formas e a vigência da própria Constituição no domínio da propriedade intelectual.
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<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> UNCTAD-ICTSD et al (ed). Resource book on TRIPS and development. Cambridge: Cambridge Univ Press, 2005, esp. p.356 ss. Disponível em: <a href="https://unctad.org/system/files/official-document/ictsd2005d1_en.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://unctad.org/system/files/official-document/ictsd2005d1_en.pdf</a>; Ver ainda os comentários do Prof. Daniel GERVAIS, The TRIPS Agreement: drafting history and analysis. 4ª.ed. Sweet &amp; Maxwell/Thomson Reuters, 2012.
<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Cf., dentre outros, LESTER, Simon; e ZHU, Huan. Rethinking the length of patent terms. American Univ Int'l L. Review, vol. 34, 2018, p.787 ss; ATHREYE, Suma; PISCITELLO, Lucia; SHADLEN, Kenneth C. Twenty-five years since TRIPS: Patent policy and international business. Journal of International Business Policy. n. 3, 2020, p. 315 ss.
<a href="applewebdata://BECB0ADD-EC6C-4AFB-85E8-3FAA23E22736#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Sobre isso ver POLIDO, Fabricio B.P. Direito Internacional da Propriedade Intelectual. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p.427 e ss.

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JOTA

Dispositivo diverge da prática internacional e da leitura da LPI em conformidade com a Constituição

Por que o STF deve declarar inconstitucional o parágrafo único do artigo 40 da LPI?

Dispositivo diverge da prática internacional e da leitura da LPI em conformidade com a Constituição