Ligia Maura Costa

Repercutiu muito mal a descoberta de um terceirizado da Vinícola Aurora, da Cooperativa Garibaldi e da Salton utilizando trabalho análogo à escravidão na produção das uvas, aparentemente sem o conhecimento delas. Em Bento Gonçalves, cidade gaúcha com pouco mais de 100 mil habitantes, trabalhadores eram mantidos em cárcere privado, em condições desumanas e degradantes, sem acesso a água potável, banheiros ou descanso, sendo obrigados a trabalhar por mais de 15 horas diárias, sete dias na semana, sem direito a salário mínimo e nem mesmo a um contrato formal de trabalho, como previsto em lei.
Estamos diante de mais um capítulo na história das violações aos direitos humanos no Brasil? A Agenda 2030, adotada pela <a href="https://brasil.un.org/pt-br">ONU</a> em 2015, incentiva governos e empresas a adotarem medidas concretas para combater o trabalho escravo, em todas as suas formas. Como recuperar a legitimidade das vinícolas após um escândalo de violação aos direitos humanos fundamentais? Além das uvas, amargas com o suor do trabalho análogo à escravidão, e da contratação do mesmo terceirizado pelas três vinícolas, o que mais elas têm em comum?
O papel das empresas, hoje, é mais complexo do que no passado. É esperado um forte senso de responsabilidade social corporativa para responder às expectativas legítimas da sociedade. A responsabilidade social das vinícolas vai além da produção de bens e da geração de lucros aos acionistas, no modelo da cartilha de gestão do ex-CEO Jack Welch<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. Boas condições de trabalho e de remuneração são determinantes para a caracterização de uma “boa empresa para trabalhar”. A sigla ESG, em voga no mundo dos negócios, para a abreviação em inglês de ambiental, social e governança (ASG), parece que para as três vinícolas nada mais era do que uma “boa sopa de letrinhas para ter na parede”. O “S” do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/esg">ESG</a> representa os aspectos sociais, incluindo as condições de trabalho e os direitos humanos, bem como, a relação da empresa com os stakeholders e as comunidades em que exercem suas atividades.
Todas as três vinícolas têm códigos de conduta de responsabilidade social disponíveis na internet nos seus respectivos sites e condenam o trabalho forçado ou em condições análogas à escravidão. O Código de Ética e Conduta da Vinícola Aurora diz que “condições de trabalho desumanas e degradantes não são aceitas de forma alguma”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Não é outro o entendimento do Código de Cultura da Cooperativa Garibaldi: “A saúde, bem-estar e segurança devem ser sempre levados em consideração em todas as interações pessoais e decisões tomadas, não sendo tolerado, por nenhuma das partes interessadas da cooperativa, quaisquer práticas que explorem o trabalho forçado, compulsório, infantil ou que promovam o tráfico humano”.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>
Já a Família Salton ingressou em 2022 no Pacto Global da ONU Rede Brasil, que é uma iniciativa louvável das Nações Unidas para mobilizar a comunidade empresarial na adoção e promoção de melhores práticas de negócios. Por que as vinícolas não respeitaram os critérios de conduta ESG, previstos nos seus próprios códigos de conduta? O que as levou a esquecer esses critérios? Por que a contratação do mesmo terceirizado foi de encontro com as disposições dos respectivos códigos de conduta?
Será que a desconsideração dos aspectos sociais e de governança corporativa são riscos que devem ser aceitos em prol do aumento da lucratividade? Qual o padrão comum entre essas vinícolas que as levaram a produzir uvas tão amargas? A resposta é simples: falha na governança corporativa e desrespeito aos direitos humanos e sociais, as letras “G” e “S” de ESG.
Evidências parecem demonstrar que há uma grande lacuna entre o que as vinícolas reivindicam nos seus códigos de conduta de responsabilidade social e o comportamento real no dia a dia dos negócios. Depois do escândalo do fornecedor terceirizado que utilizava trabalho análogo à escravidão e que expôs a Vinícola Aurora, a Cooperativa Garibaldi e a Salton, qual é a legitimidade das declarações de seus códigos de conduta? Qual a credibilidade de suas declarações à sociedade? Qual a confiança que os consumidores devem ter nas publicidades dos seus produtos?
A Agenda 2030 traz um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>, que encorajam as empresas a estabelecer compromissos de erradicar o trabalho escravo e outras formas de trabalho forçado até 2030. Em particular, o ODS 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico – estabelece na meta 8.7 que as empresas devem: “Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas [...]”. Já o ODS 12 – Consumo e Produção Sustentáveis diz na meta 12.6 que é necessário “encorajar as empresas, especialmente as grandes e transnacionais, a adotar práticas sustentáveis e a integrar informações de sustentabilidade em seu ciclo de relatórios”. Fica claro que as empresas são responsáveis pelos seus fornecedores, para que sejam implementadas práticas sustentáveis em todos os aspectos ao longo da cadeia produtiva.
O respeito aos direitos humanos fundamentais faz parte essencial do desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo. A Família Salton, nos “Relacionamentos Prósperos”, relata que tem o compromisso de até 2030 de “ser proativo no desenvolvimento de nossos colaboradores e comunidades, engajar nossos fornecedores na agenda ESG e estimular o consumo responsável”.<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a> Contudo, ao invés de destacar nos códigos de conduta de responsabilidade social o que irão fazer até 2030, como no filme "De volta para o futuro", as vinícolas deveriam se concentrar no que estão fazendo hoje e focar na resposta concreta e imediata ao grave problema que enfrentam.
Para retomar a legitimidade em xeque no setor viticultor, pois a presença de trabalho análogo à escravidão na produção de uvas afeta todo o setor, as vinícolas devem adotar uma nova estrutura organizacional, modernos procedimentos de mapeamento de riscos, monitoramento e controle, revisão das normas desviantes, melhorias na governança corporativa, e, em caso comprovado de grave violação, remover imediatamente os culpados, sejam eles quem forem.
A integração dos conceitos ESG nos processos cotidianos de governança das vinícolas implicará em mudanças comportamentais nessas organizações. Além disso, elas devem cooperar com as autoridades para resolver a situação o mais rápido possível, além de pagar uma compensação justa aos trabalhadores e criar um fundo que garanta o recebimento dos salários atrasados, bem como todos os benefícios previstos em lei.
A aplicação do artigo 243 da Constituição Federal<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>, que prevê a expropriação de terras em casos de trabalho escravo em prol da reforma agrária, é uma medida de justiça, caso as vinícolas venham a ser reincidentes em violações aos direitos humanos. Ao longo de vários anos, a Fazenda Brasil Verde em Marabá e a Fazenda Santa Brígida em Uruará, ambas no Pará, foram alvos de diversas fiscalizações trabalhistas, ficando constatada a prática reincidente de trabalho análogo à escravidão. As duas fazendas foram expropriadas, como previsto na Constituição. Esperemos que isso não aconteça com as vinícolas e que tenham apreendido a lição; agora se não for o caso, que a lei, então, seja aplicada, pois a lei é para todos.
A sociedade tem a responsabilidade de exigir que as vinícolas valorizem a dignidade humana acima do lucro e que rejeitem toda e qualquer prática envolvendo trabalho forçado ou em condições análogas à escravidão.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> David Gelles. The man who broke capitalism: How jack welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America and how to undo his legacy. New York: Simon &amp; Schuster, 2022.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Código de Ética e Conduta da Vinícola Aurora: <a href="https://www.vinicolaaurora.com.br/codigo-de-etica.pdf">https://www.vinicolaaurora.com.br/codigo-de-etica.pdf</a>.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Código de Cultura da Vinícola Garibaldi: <a href="https://www.vinicolagaribaldi.com.br/pdf/codigo-de-cultura.pdf">https://www.vinicolagaribaldi.com.br/pdf/codigo-de-cultura.pdf</a>.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> ONU. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. <a href="https://brasil.un.org/pt-br/sdgs">https://brasil.un.org/pt-br/sdgs</a>.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Relacionamentos Prósperos <a href="https://www.salton.com.br/relacionamentos-prosperos">https://www.salton.com.br/relacionamentos-prosperos</a>
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Artigo 243 da Constituição Federal: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.” <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm</a>.

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JOTA

Respeito aos direitos humanos fundamentais é parte essencial do desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo

Por que as uvas das vinícolas ficaram amargas?

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