Giovanna Ribeiro

Paula Flanzer

Após quase um ano desde o início da pandemia no país, com mais de 210 mil mortes e quase 9 milhões de infectados pelo vírus da Covid-19 à época, o Brasil começou sua campanha de vacinação no dia 17 de janeiro de 2021, aplicando a primeira dose na profissional de saúde negra Mônica Calazans. A enfermeira da linha de frente recebeu a Coronavac, distribuída mediante parceria entre a companhia chinesa Sinovac e o Instituto Butantan, no Estado de São Paulo.
Passada a euforia inicial proporcionada por tamanha conquista, nossos olhos, com mais sobriedade, se voltam para o fato de que, mais de quatro meses depois da abertura da campanha, apenas 18% dos brasileiros estão imunizados com, pelo menos, a primeira de duas doses. As estatísticas são ainda mais problemáticas quando vistas com um olhar crítico: apesar de a primeira vacinada ter sido uma mulher negra, hoje, <a href="https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/brancos-sao-quase-o-dobro-dos-negros-entre-os-vacinados-contra-covid-no-brasil.shtml?origin=folha">brancos constituem quase o dobro dos negros entre os </a><a href="https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/brancos-sao-quase-o-dobro-dos-negros-entre-os-vacinados-contra-covid-no-brasil.shtml?origin=folha">imunizados</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Tendo em vista que, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, mais da metade dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos, a assimetria racial entre os que já tomaram pelo menos a primeira dose é, por si só, perturbadora. Não se pode ignorar que o projeto de imunização inclui populações negras dentro de grupos prioritários, uma vez que comunidades tradicionais quilombolas estão entre os primeiros que deveriam receber a vacina contra a Covid-19.
Entretanto, essa medida não foi suficiente para igualar a proporção dos protegidos contra o vírus. Assim, é necessário que nos afastemos da situação para entender que essa discrepância de dados representa apenas a face escancarada de um problema de proporções muito maiores, fundado em nossas estruturas sociais: a baixa imunização de pessoas negras é apenas mais um um exemplo prático da discriminação indireta, conceito desenvolvido por Wallace Corbo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Notemos o perfil dos dois principais grupos vacinados até o momento no país: profissionais de saúde e idosos. Não restam dúvidas de que os protagonistas na luta contra o vírus e os mais velhos, comprovadamente mais vulneráveis, devem ser priorizados. Todavia, o conflito está no desequilíbrio racial tanto no meio sanitário quanto entre as pessoas de idades mais avançadas.
No que tange ao primeiro grupo, em um país como o Brasil, onde a miséria tem cor, a desigualdade no <a href="https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/menos-de-10-dos-alunos-das-20-melhores-escolas-do-brasil-sao-negros-mostra-pesquisa-da-uerj-25022515">acesso à educação</a> - do ensino fundamental ao superior - resulta em uma disparidade também no perfil dos profissionais de saúde. Segundo dados de 2013 da Fiocruz, menos de 40% dos enfermeiros do país se autodeclaram pretos ou pardos, ao passo que, segundo a Laeser, menos de 18% dos médicos assim se declaram.
Políticas afirmativas, como as cotas para acesso às universidades, representam um avanço significativo no combate ao problema. Contudo, ações como essa só apresentarão resultados expressivos a longo prazo, fazendo com que ainda haja um extenso caminho a ser percorrido para que seja ajustada a gritante desproporção no colorismo daqueles que conseguem se graduar em cursos da área de saúde.
A análise do segundo grupo está relacionada à composição da pirâmide etária brasileira. Como já assinalado, a maior parte da população total do país se autodeclara negra. Entretanto, ao darmos ênfase nos dados referentes a <a href="https://www.abrasco.org.br/site/gtracismoesaude/2021/02/01/populacao-idosa-negra-e-covid-19-por-que-invisibilizar-e-negar-direitos/">pessoas com mais de 60 anos, os números se invertem</a><a href="https://www.abrasco.org.br/site/gtracismoesaude/2021/02/01/populacao-idosa-negra-e-covid-19-por-que-invisibilizar-e-negar-direitos/">.</a> O quadro torna-se ainda mais gravoso quando analisamos a faixa dos 80 anos para cima, na qual apenas uma a cada quatro pessoas é preta ou parda.
Os dados acima estão intimamente conectados à diferença no acesso à saúde, à moradia e ao saneamento de qualidade, bem como à violência mortal contra negros que se evidencia desde a infância. Essas condições precárias não são contemporâneas à pandemia - embora tenham sido intensificadas com ela, de modo que, dentre outros fatores, contribuem para que mais brancos acabem chegando a idades prioritárias na fila da imunização.
Sob essa perspectiva, reafirma-se que o recorte de raça na fila de vacinação é mais um exemplo da discriminação indireta. Segundo o jurista Wallace Corbo, tal conceito diz respeito a normas de conduta aparentemente neutras que, quando colocadas em prática, geram efeitos discriminatórios e reproduzem desigualdades.
<blockquote class="jota-article__eye">O recorte racial aqui levantado não decorre de uma lei que impeça pessoas negras de tomarem a vacina, mas sim de um plano de imunização que, apesar de ser neutro à primeira vista, quando aplicado mostrou-se desvantajoso para grupos marginalizados.</blockquote>
Não se trata, portanto, de preterir profissionais de saúde, idosos, pessoas com comorbidades ou quaisquer outros grupos em situação de vulnerabilidade. Tampouco de propor que pessoas negras "passem à frente" de pessoas brancas de forma arbitrária. Basta que se apliquem critérios diferentes para que se englobe também pessoas com necessidades sociais diferentes, e que se chame atenção para o fato de que o racismo perpassa todas as esferas das relações sociais. Seguir inerte, sem realizar um esforço ativo para eliminar desigualdades, é sinônimo de perpetuar esse status quo subversivo.
É preciso um olhar atento para que a estratégia de vacinação brasileira não acabe por resolver um problema, enquanto fomenta outro ainda mais profundo: se por um lado nossa sociedade se vacina contra a Covid, por outro, a imunização contra vírus epidêmico do racismo, que mata e assombra milhares de pessoas há tanto séculos, ainda se prova distante da realidade.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Estes dados são aproximações verossímeis, uma vez que alguns dos vacinados não declararam sua cor no formulário de vacinação. A despeito disso, artigo se sustenta pois apesar de não serem exatos, os dados não fugiriam muito do escopo apresentado.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CORBO, Wallace. Discriminação indireta: conceito, fundamentos e uma proposta de enfrentamento à luz da Constituição de 1988. Editora Lumen Juris, 2017.

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JOTA

Apesar de a primeira vacinada ter sido uma mulher negra, brancos constituem quase o dobro dos negros entre os imunizados

Por que a fila anda mais rápido para pessoas brancas do que para negras?

Recorte racial na vacinação contra Covid-19?