dia da consciência negra

Por mais lideranças negras no setor público

Efeitos acumulados do racismo com o passar dos séculos geraram ampla desigualdade social, financeira e educacional

lideranças negras setor público
Crédito: Unsplash

Neste mês de novembro você – pessoa negra ou branca, parda ou indígena – deve estar ouvindo e ainda ouvirá muito sobre racismo e práticas antirracistas. E tomara que siga ouvindo bastante, neste mês e muito além. Porque, com nosso histórico escravista, presente racista e futuro com longa avenida a percorrer para a superação de desigualdades e injustiças, precisamos moldar um novo país, acelerando políticas, práticas e pensamentos ancorados na diversidade. Não será nem simples nem rápido, mas há razões para acreditar que é possível. E, mais do que isso, inevitável.

Se entendemos o racismo como algo estrutural, somos conscientes da existência de mecanismos que reproduzem a desigualdade racial a despeito das crenças e comportamentos individuais dos membros de nossa sociedade. Nesse sentido, o racismo estrutural é como uma dívida coletiva. Mesmo se hipoteticamente o racismo deixasse de existir e influenciar a tomada de decisões das pessoas e autoridades hoje, seus efeitos acumulados com o passar dos séculos geraram uma ampla desigualdade de acumulação de capital (social, financeiro, educacional etc.) que dificulta e dificultará a ascensão social dos negros por muitos anos.

Para interromper este ciclo muitas transformações são necessárias e uma das mais relevantes é deixar de naturalizar a falta de representatividade: o lugar e o não lugar de pessoas negras e de outros grupos historicamente discriminados. Esse é um dos motivos pelos quais é tão importante chamar a atenção para a necessária diversidade no serviço público, em especial nos níveis de alta gestão.

Muito se fala na baixa representatividade de pessoas negras, indígenas e também de mulheres na política, especialmente entre candidaturas eleitas. Mas há outra desproporção no setor público que também precisa ser  corrigida: pretos e pardos representam 56% da população brasileira, mas ocupam apenas 30% dos cargos públicos concursados, incluindo as esferas federal, estadual e municipal. No nível federal, são 37%, em dados de 2020. Dos cargos com nível superior no governo federal, apenas 27% são ocupados por pessoas negras.

Em 2014, ações afirmativas foram adotadas no serviço público federal, após a aprovação da Lei 12.990. A partir de então, 20% das vagas em novos concursos públicos passaram a ser preenchidas exclusivamente por candidatos negros. Isso tem permitido, por exemplo, observar um aumento do número de pessoas negras que ingressam no serviço público. É uma boa notícia. A má notícia é que ainda há grandes disparidades dentro da própria burocracia. Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2020 apontam a diminuição da presença de pessoas negras conforme o aumento da senioridade dos cargos de liderança da administração federal.

O Ipea radiografou o perfil dos chamados DAS, como são denominados os cargos comissionados da alta administração federal. Quanto maior a numeração, maior o poder hierárquico dos ocupantes de cargos DAS. Se considerados os níveis 1, 2 e 3, homens e mulheres de cor negra totalizavam 28,9% de seus ocupantes. Todavia, se considerado somente os DAS de nível 6, as pessoas negras somavam apenas 14,4% dos ocupantes. Faltam mais evidências robustas sobre a composição racial da alta administração pública em todos os níveis da federação, mas não é improvável que as tendências de baixa diversidade se repitam em estados e municípios.

As relações sociais no Brasil são atravessadas pela naturalização do racismo. Ocorre que essa naturalização, como lembrou uma vez Silvio Almeida, só é possível se houver instituições que, do ponto de vista ideológico e também político, reproduzam essas relações permeadas pelo racismo.

A desigualdade racial na própria burocracia é outra face do mesmo problema, razão pela qual é tão importante a adoção de programas capazes de estruturar processos seletivos, sobretudo para a ocupação de cargos comissionados, pensando na relevância de compor equipes que reflitam a realidade da população brasileira, em grande medida jovem, negra e periférica. Esse é um dos fundamentos do programa Ubuntu, do Vetor Brasil, dedicado ao fortalecimento dos profissionais públicos pretos e pardos que já atuam no setor público. Seu objetivo é prepará-los a fim de ampliar e consolidar sua participação em funções da alta direção nos governos.

Uma burocracia representativa é fundamental para que tenhamos políticas públicas que atendam a diversidade de demandas da população brasileira. E mais ainda entre os cargos de liderança, buscando a execução de políticas públicas feitas cada vez mais por pessoas que precisam dela e a utilizam. É uma forma também de encerrar uma história de invisibilidade, silenciamento, injustiça e desigualdades, a começar pelas próprias agendas e prioridades de políticas públicas. De pôr fim a uma história de predominância do corpo e do pensamento branco, sobre a determinação dos rumos das políticas públicas no país.

Eis o desafio para construir uma democracia verdadeiramente representativa. Este é um debate que – convém insistir – vai muito além deste mês da consciência negra. Passou da hora de construirmos coletivamente um desejo pela igualdade, um desejo pelo outro, um desejo pela vida. É o momento de reorientarmos esse desejo – pela educação, pela convivência, pelo aprendizado, pela denúncia e, claro, pelo desenho de políticas de oportunidade e participação. No nosso caso, um sonho grande de não só potencializar profissionais que já estão na máquina pública para pensarem e desenvolverem ações pela igualdade racial, mas também conectá-los em rede, reduzindo assim a solitude da liderança negra em espaços ainda dominados pela lógica branca.

Promover a igualdade racial na gestão pública impulsiona um ciclo virtuoso de políticas voltadas para os mais vulneráveis: profissionais públicos diversos, bem preparados e representativos da população brasileira irão elaborar e implementar políticas públicas para a parcela mais vulnerável da população. Com isso teremos a tão sonhada redução das desigualdades estruturais, com promoção real de políticas antidiscriminatórias.

Sair da versão mobile