Lucas de Santana Módolo

A falta de diversidade étnico-racial no Congresso já é um dado conhecido pelos brasileiros. Atualmente, entre 513 deputados federais em exercício, apenas 124 deles são negros. No Senado, o cenário é ainda mais preocupante — apenas 13 senadores se autodeclaram negros[1], em um universo de 81 parlamentares eleitos.  
O cenário histórico de desigualdade racial nesses ambientes foi o que motivou a Justiça Eleitoral a criar regramentos para fomentar o aumento de candidaturas negras pelos partidos políticos brasileiros em disputas eleitorais. Em agosto de 2020, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a> decidiu que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral. 
Um ano após essa decisão, foi criada a Emenda Constitucional nº 111, de setembro de 2021, que determinou que, para fins de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre os partidos políticos, será feita a contagem em dobro dos votos dados a candidaturas negras[2]. 
Essas reformas passaram a valer a partir do ano corrente e transmitem duas mensagens aos partidos: 1) quanto mais a legenda se propuser a lançar candidaturas negras, maiores serão os recursos do FEFC e os períodos de propaganda no rádio e na televisão destinados à legenda; e 2) quanto mais votos essas candidaturas negras receberem, maiores serão os recursos do fundo eleitoral para as próximas disputas eleitorais[3]. 
Embora tenham o potencial de provocar mudanças no perfil dos parlamentares eleitos em todo o país, as novas regras do jogo devem ser observadas com muita cautela. Desde o primeiro momento em que o país passou a discutir ações afirmativas para a composição do Poder Legislativo, dezenas de parlamentares optaram por alterar sua declaração de raça junto ao TSE, causando um estranhamento quanto à veracidade dessas autodeclarações.  
Um levantamento mostra que mais de 10 mil candidatos que antes se declaravam brancos passaram a se declarar negros para disputar as eleições[4], não coincidentemente, após o início da vigência das regras afirmativas para candidaturas negras. Alguns desses candidatos, identificados por parte expressiva dos brasileiros como pessoas nitidamente brancas, alegam que a mudança repentina da autodeclaração se deu para “corrigir” um suposto erro cometido por seu partido em eleições pretéritas.  
O problema das fraudes se apresenta em outras experiências de ação afirmativa no Brasil. Sobretudo após a edição das Leis 12.711/2012 e 12.990/14, que criaram vagas afirmativas para pessoas negras, respectivamente, nas universidades federais e nos concursos da administração federal, tornaram-se frequentes as denúncias de ocupação irregular das vagas por parte de pessoas cuja autodeclaração foi prestada de maneira fraudulenta.  
Nas experiências já amadurecidas da ação afirmativa, tem-se optado pela adoção de bancas de heteroidentificação, colegiados que promovem a deliberação preventiva sobre a veracidade da autodeclaração racial prestada por candidatos que pleiteiam espaço nas ações afirmativas. Essa deliberação ocorre a partir da análise do fenótipo dos candidatos, que é o aspecto utilizado socialmente para caracterizar uma pessoa como negra e sujeitá-la às práticas discriminatórias no Brasil[5].  
Ainda não há uma prática fiscalizatória dessa natureza no contexto da disputa eleitoral, mas não haveria grandes óbices à sua implementação. Na perspectiva preventiva, o TSE e os órgãos regionais poderiam assumir, com certa facilidade, a tarefa de avaliar as autodeclarações dos candidatos no intervalo entre o registro da candidatura pelo partido político e a decisão de sua validação ou invalidação. Ainda que por meio de um controle a posteriori, os órgãos eleitorais também poderiam realizar uma investigação rigorosa para promover a cassação de candidatos eleitos que tiverem confirmada a falsidade de sua autodeclaração racial.  
Com o término do processo eleitoral de 2022, ficará mais fácil identificar o impacto provocado pelas novas ações afirmativas. Também será possível fazer um diagnóstico mais preciso sobre quais partidos políticos no Brasil estiveram verdadeiramente engajados na mudança de perfil dos parlamentares do Congresso e quais deles se aproveitaram da medida afirmativa para praticar irregularidades.  
O que se tem de percepção a partir do atual cenário é que, uma hora ou outra, o Tribunal Superior Eleitoral será chamado a se posicionar sobre as autodeclarações fraudulentas que vêm sendo prestadas na disputa eleitoral. E o mais importante: as experiências institucionais já anunciam a necessidade de criar um controle institucional eficaz para coibir essas práticas, que tendem a criar um falso ideário de que o Parlamento está se tornando um espaço mais diverso.
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[1] Para mais, ver: Congresso em Foco. Sub-representação negra nos três poderes escancara racismo brasileiro, 20.11.2021. Disponível em: &lt;<a class="Hyperlink SCXW228834629 BCX0" href="https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/sub-representacao-negra-nos-tres-poderes-escancara-racismo-brasileiro/" target="_blank" rel="noreferrer noopener">https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/sub-representacao-negra-nos-tres-poderes-escancara-racismo-brasileiro/</a>&gt;. Acesso em 15 de setembro de 2022. 
[2] Atualmente, a Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) estabelece que 35% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), para o primeiro turno das eleições, serão divididos entre os partidos que tenham pelo menos um representante na Câmara dos Deputados, proporcionalmente ao percentual de votos por ele obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados (artigp 16-D, inciso II). A Emenda Constitucional nº 111 atua nesse regramento, prescrevendo que, até o processo eleitoral de 2030, os votos dados a candidatos negros à Câmara dos Deputados serão contados em dobro na definição das cotas do fundo eleitoral. 
[3] Importante notar que ambas as regras afirmativas criadas pelo TSE e pela EC nº 111 atuam de maneira complementar, de modo a impedir que um partido político opte simplesmente por lançar candidaturas negras a rodo, a fim de conseguir maiores recursos do fundo eleitoral, sem que haja uma verdadeira dedicação para que essas candidaturas recebam uma votação expressiva. 
[4] Para mais, ver: G1. Mais de 25 mil candidatos mudam raça declarada nesta eleição; 40% passam de brancos para negros, 25/09/2020. Disponível em: &lt;<a class="Hyperlink SCXW79042185 BCX0" href="https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/09/25/mais-de-25-mil-candidatos-mudam-raca-declarada-nesta-eleicao-40percent-passam-de-brancos-para-negros.ghtml" target="_blank" rel="noreferrer noopener">https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/09/25/mais-de-25-mil-candidatos-mudam-raca-declarada-nesta-eleicao-40percent-passam-de-brancos-para-negros.ghtml</a>&gt;. Acesso em 15 de setembro de 2022. 
[5] Oracy Nogueira, importante sociólogo brasileiro, explica: "Na falta de expressões mais adequadas, o preconceito, tal como se apresenta no Brasil, foi designado por preconceito de marca (...) Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque". Para mais, ver: Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. In: Tempo Social, Revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, p. 292.

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JOTA

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