Betânia de Moraes Alfonsin

Paulo Eduardo Berni

Pedro Prazeres Fraga Pereira

Na infame reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020, cuja gravação foi tornada pública no âmbito de inquérito que apura suposta interferência presidencial na Polícia Federal (alegação de Sérgio Moro para justificar seu pedido de demissão), uma das falas de maior repercussão foi a do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Em sua intervenção, Salles recomendava que o governo aproveitasse o foco da imprensa nas questões relativas à pandemia para “ir passando a boiada” na pasta ambiental. Passar a boiada, para o ministro, significa modificar drasticamente o atual regramento e simplificar as normas ambientais, por meio de reformas infralegais de desregulamentação.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A <a href="https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/07/governo-acelerou-canetadas-sobre-meio-ambiente-durante-a-pandemia.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Folha de São Paulo</a>, em matéria publicada em 28 de julho, divulgou levantamento do número de atos editados pelo Poder Executivo entre março e maio de 2020 relacionados à questão ambiental. De acordo com o jornal, entre decretos, portarias e instruções normativas, foram 195 atos publicados no Diário Oficial da União, contra 12 publicados no mesmo período em 2019. Um número 12 vezes maior. De fato, a boiada está passando diante de nossos olhos.
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Se a famigerada declaração de Ricardo Salles chamou a atenção da imprensa para esse processo velado de desregulamentação das políticas ambientais, é importante destacar que este fenômeno também vem sendo observado em outros setores, dentre os quais destacamos a Política Urbana.
Em relação a esta, a Medida Provisória nº 759/16, convertida na Lei nº 13.465/17, de 13 de julho de 2017, operou um verdadeiro rompimento com a política de desenvolvimento urbano prevista na Constituição Federal, ameaçando inclusive a proteção de áreas ambientais.
Embora trate de quatro regimes legais sobre terras brasileiras (regularização fundiária rural, regularização fundiária urbana, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e procedimento para alienação dos imóveis da União), tal inovação legislativa <a href="https://direitoachadonarua.files.wordpress.com/2020/07/gt-7-alfonsin-berni-e-pereira.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">atingiu sem alarde a medula do capítulo constitucional da Política Urbana</a>, além de revogar boa parte da legislação vigente e aplicável ao planejamento urbano, marcando uma ruptura com o modelo de regulação que vinha se consolidando no Brasil.
Vale destacar quatro das alterações paradigmáticas trazidas pelo novo diploma somente no que tange ao campo destacado.
A primeira delas é a modificação do conceito normativo de regularização fundiária. Enquanto a legislação anterior definia a regularização fundiária como um conjunto de medidas destinadas a garantir o direito social à moradia, as funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente (art. 46 da nº Lei 11.977/09), a nova definição resume esse instrumento à “incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes” (art. 9º da Lei nº 13.465/17).
Como se percebe, a regularização fundiária foi completamente dissociada do feixe de direitos ligados à ordem urbana, bem como desarticulada de outras políticas setoriais como as de habitação, meio ambiente, saneamento básico e mobilidade urbana.
O segundo ponto que merece destaque é a usurpação de competências municipais, permitindo-se a edição de normas sobre uso e ocupação do espaço urbano fora dos ditames do plano diretor, que é deslocado da condição de instrumento básico da Política Urbana, conforme dispõe a Constituição. Terceiro, a criação de novos instrumentos de regularização fundiária, em particular a legitimação fundiária – misto de usucapião, desapropriação e doação –, que rompe com os mais de trinta anos de construção da ordem jurídico-urbanística e mesmo com centenários institutos do direito civil.
Por fim, merece menção a violação ao princípio constitucional da isonomia, por meio da criação de uma situação de verdadeira ação afirmativa reversa. Trata-se da criação de dois regimes de regularização fundiária, uma de interesse social (Reurb-S) e outra de interesse específico (Reurb-E), aplicável esta à população não qualificada como de baixa renda. O que chama a atenção, aqui, é que o novo regramento opõe obstáculos discriminatórios à regularização de áreas ocupadas por população de baixa renda ao mesmo tempo que facilita a regularização de ocupações por outras faixas de renda,
Como se percebe, o conjunto de alterações promovidas pela Lei nº 13.465/17 representa um duro golpe na Política Urbana brasileira, tornando-a facilitadora de processos de regularização fundiária que, ao invés de garantir o direito à cidade e à moradia para as famílias que residem nos territórios, pode acabar facilitando a progressiva expulsão da população de baixa renda das áreas centrais e de melhor localização no tecido urbano, aumentando a já acentuada assimetria na apropriação da infraestrutura das cidades brasileiras.
Tais mudanças representam um giro paradigmático no modelo até então vigente no Brasil, que era reconhecido na América Latina como uma política de regularização fundiária plena e dotada de instrumentos jurídicos e urbanísticos efetivos para assegurar a segurança da posse das populações moradoras das áreas objeto de intervenção.
<blockquote class="jota-article__eye">A avaliação de que tal diploma legal representa um retrocesso jurídico e uma traição aos compromissos assumidos em arenas internacionais parece ser partilhada por um conjunto de entidades, instituições e pesquisadores/as que estudam o tema no país.</blockquote>
A Lei nº 13.465/17 e a ruptura paradigmática que representa, no entanto, segue em plena vigência; e, ainda mais grave, reverbera sua influência antidemocrática em municípios de todo o país, que passam a desestruturar, também em nível local, programas de regularização fundiária construídos segundo o paradigma anterior, que não se restringia à mera titulação O efeito dominó atinge ainda planos diretores e o regime urbanístico de várias cidades onde as leis urbanísticas vão sendo alteradas em preocupantes "boiadas urbanísticas" locais.
Nesse quadro, já desfigurada em suas características fundamentais, a Política Urbana também passa por um recente processo de desdemocratização, com expressiva diminuição da participação da sociedade civil na construção de políticas públicas.
São exemplos desse movimento a extinção do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades, mas também a redação final do art. 29 da Lei nº 13.655/18 (que altera a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que estabelece que a edição de atos normativos por autoridade administrativa de qualquer órgão ou Poder poderá ser precedida por consulta pública (e não será, como dispunha originalmente o projeto).
Para além das ações do atual governo (como a carona a garimpeiros em aviões da FAB ou o cancelamento de operações do Ibama na Amazônia e no Pantanal), a legislação relativa ao direito de propriedade e de posse vem se modificando no sentido de gerar a expectativa que a ocupação do solo urbano – mas também do rural – poderá eventualmente ser regularizada, fator que representa um incentivo à derrubada de árvores, queimadas, invasão de áreas demarcadas e desrespeito a outras normas urbanísticas e ambientais.
Todas essas mudanças não podem ser compreendidas fora dos marcos mais amplos do processo político brasileiro. Elas respondem, primeiramente, à <a href="https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/as-metropoles-e-o-direito-a-cidade-na-inflexao-ultraliberal-da-ordem-urbana-brasileira-texto-para-discussao/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">inflexão ultraliberal</a> operada na política econômica no contexto pós-impeachment, representada sobretudo pela aprovação da reforma da previdência, da reforma trabalhista (com revogação de significativa parcela da CLT) e da Emenda Constitucional nº 95 (estreitando os limites fiscais de investimentos públicos).
É nesse movimento que se insere a Lei nº 13.465/17, <a href="https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/37245" target="_blank" rel="noopener noreferrer">desfigurando a Política Urbana brasileira em benefício de uma acumulação econômica mais flexível</a>, desvinculada dos compromissos sociais que marcaram seu desenho constitucional.
De outro lado, essa regressão democrática da Política Urbana guarda estreita relação com a emergência de um conservadorismo autoritário na institucionalidade política do país.
O fenômeno, a bem da verdade, não é nacional: após a eleição de Donald Trump no Estados Unidos, em 2016, acompanhada da ascensão de outros líderes de extrema direita em diversos países, muitos cientistas políticos forma chamados a analisar em que medida as democracias ocidentais estariam ou não em risco.
“Morte”, “crise”, “risco”, “ódio”, “fascismo”, são algumas das expressões associadas ao fenômeno. Adam Przeworski, em “Crises da democracia”, refere que a “primeira lição que estamos aprendendo dessas experiências é que as instituições democráticas podem não oferecer as salvaguardas necessárias para impedir que sejam subvertidas por governantes devidamente eleitos, segundo normas constitucionais”. É por esta razão que importa perquirir quais os riscos que nossas democracias estão efetivamente enfrentando.
No caso brasileiro, mais do que atacar as políticas setoriais urbanas e ambientais, esses processos afrontam o próprio pacto constituinte estabelecido em 1988. É preciso permanecer vigilante, pois a boiada segue em movimento.
Nesse quadro, espera-se que a mobilização da sociedade civil, das instituições e órgãos públicos que operam a Política Urbana e Habitacional brasileira, bem como dos/as pesquisadores que trabalham com o tema, seja capaz de alertar os poderes públicos, as comunidades beneficiárias das políticas de regularização fundiária e a própria academia para a gravidade das alterações introduzidas na legislação do campo, sob a ilusória promessa de modernização da estrutura fundiária pátria.
É fundamental observarmos e registrarmos os efeitos que essa nova normatividade possa eventualmente ter, por exemplo, na regularização fundiária de áreas desmatadas, no âmbito do que foi inicialmente destacado.
Do mesmo modo, importa registarmos as importantes iniciativas de resistência a esse desmonte que já se observam no país, inclusive no contexto da pandemia, como a Campanha Despejo Zero, por exemplo, articulada por diversos movimentos sociais, atores do sistema de Justiça e entidades da sociedade civil. No mesmo passo em que pretende jogar luz sobre a profundidade da derrota imposta ao direito à cidade no Brasil, o presente texto é um apelo à urgência de resistir.

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JOTA

O presente texto é sobre a profundidade da derrota imposta ao direito à cidade e um apelo à urgência de resistir

As &#8216;boiadas urbanísticas&#8217; e a erosão da Política Urbana

As 'boiadas urbanísticas' e a erosão da Política Urbana

Alterações promovidas pela Lei nº 13.465/17 representam golpe na Política Urbana brasileira, tornando-a facilitadora de processos de regularização fundiária