Fabiana de Menezes Soares

Thais de Bessa Gontijo de Oliveira

Será que é possível planejar às cegas?
Imagine-se ganhando um salário mensal com valor indeterminado, tendo que alimentar uma quantidade também indeterminada de pessoas, que, como complicador, podem ou não ter alguma alergia alimentar que comprometa sua devida nutrição. Agora imagine que você também não tem condições de fazer um acompanhamento dessa rotina, não sabe bem quem aparece para jantar, nem o quanto eles comeram, nem o quanto custa cada refeição. Todo mês é assim, e sua tarefa é garantir que ninguém passe fome e não tenha carências nutricionais.
Tem como planejar assim?
Pois é mais ou menos isso que se passa com muitos Municípios brasileiros, no que se refere à gestão dos serviços de saneamento básico.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A atividade de planejamento necessita de um volume de dados robustos e, no entanto, o setor de saneamento possui grandes lacunas em relação à realidade atual. Pelo menos, é isso que mostra o último Diagnóstico de Água e Esgoto, publicado pelo Sistema Nacional de Saneamento Básico (SNIS), órgão ligado ao Ministério do Desenvolvimento Regional.
Mais grave que isso, o problema da falta de dados não tem sido, em si mesmo, objeto de ações para corrigi-lo. Ao contrário, muito embora a elaboração do Plano Completo de Saneamento Básico devesse ser uma obrigação do titular dos serviços, o novo Marco Legal do Saneamento Básico pode ter agravado essa falta de dados, ao instituir que os Municípios com população inferior a 20.000 habitantes elaborem apenas uma versão simplificada do Plano, sem, no entanto, esclarecer o que a Lei pretendeu com o uso da expressão “com menor nível de detalhamento”.
Neste artigo, discutiremos a falta de dados no setor como um dos grandes obstáculos à universalização dos serviços água e esgoto.
A importância dos dados: em defesa do SNIS 
Um dos maiores avanços do setor de saneamento foi a instituição do SNIS, administrado pelo Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Regional. Trata-se do maior e mais importante sistema de informações do setor saneamento no Brasil, apoiando-se em um banco de dados que contém informações de caráter institucional, administrativo, operacional, gerencial, econômico-financeiro, contábil e de qualidade sobre a prestação de serviços de água, de esgotos e de manejo de resíduos sólidos urbanos.
No Brasil, os serviços de saneamento básico são considerados como de titularidade municipal, enquadrados nos serviços públicos de interesse local, mencionados na Constituição. No entanto, como a melhoria das condições do setor está entre as competências materiais comuns de todos os entes federativos, a União tomou para si a organização e consolidação dos dados do setor. Assim, o SNIS pode ser considerado uma iniciativa do Governo Federal para cumprir sua obrigação constitucional de cooperar e assim atuar como um agente para a concertação entre entes federados, tendo em vista a maior eficiência na prestação de serviços, no incremento da efetividade de direitos fundamentais.
As informações do SNIS são fornecidas por companhias estaduais, empresas e autarquias municipais, empresas privadas e, em muitos casos, pelas próprias prefeituras, todos denominados no SNIS como prestadores de serviços.
Os dados do SNIS escancararam os índices vergonhosos de cobertura (apenas 83,6% da população está servida por rede de abastecimento de água, e 53,2% com rede de abastecimento de esgoto), bem como a precariedade da operação (em que 38,5% do volume de água disponibilizado não foi contabilizado como volume utilizado pelos consumidores), segundo o último Diagnóstico publicado.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">No Brasil, há 10 Municípios (0,2% do total) que declararam não possuir sistema público de abastecimento de água (ou seja, neles existem apenas soluções alternativas de água, como poço ou nascente, chafariz, carro-pipa etc.), e 1.546 Municípios (27,8% do total) que declararam não ter sistema público de esgotamento sanitário (novamente, apenas soluções alternativas, como fossa séptica, fossa rudimentar, vala a céu aberto, lançamento em cursos d’água etc.).</blockquote>
No entanto, nosso objetivo aqui não é focar nesses dados trágicos já conhecidos, mas sim na significativa lacuna de dados que desconhecemos.
Políticas públicas e o planejamento à luz dos dados, ou às cegas
No Diagnóstico de 2018, com referência ao serviço de abastecimento de água, são identificados 5.146 Municípios, o que assegura uma representatividade de 92,4% em relação ao total de Municípios. Já para os serviços de esgotamento sanitário, a quantidade de Municípios é de 4.050, com representatividade de 72,7% em relação ao total. Isso porque são 5.570 Municípios no Brasil e, já que estes entes federativos são considerados os titulares dos serviços, há 5.571 titulares no país (todos os Municípios, além do Distrito Federal, que acumula as competências municipais).
A titularidade municipal, antes construída dogmaticamente, foi escancarada pelo novo Marco Legal, que lista expressamente os Municípios como titulares dos serviços (ou cotitulares, no caso de regiões metropolitanas).
O Município inadimplente com o SNIS fica impedido de acessar recursos de investimentos no âmbito do órgão responsável pela Política de Saneamento do Governo Federal.
Mas talvez o mais grave dessa situação é que o Município que não possui dados planeja às cegas, e essa vulnerabilização pode ter consequências funestas não só à satisfação dos interesses locais, mas para gestores mal assessorados ou mesmo inescrupulosos.
Embora a edição do Novo Marco tenha alimentado as esperanças de acelerar o lento avanço do setor, é preciso não esquecer da Lei dos Consórcios (2005) e Lei Nacional do Saneamento Básico (2007) provocaram reações esperançosas semelhantes. No entanto, repete-se aqui o desafio já denunciado pelo realismo norte-americano: transformar a lei que está nos livros em lei em ação não se alcança com a edição de uma nova lei. Que os Municípios realmente efetivem o planejamento (não apenas homologando estudos fornecidos por consultorias) permanece um dos grandes desafios legais,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> lançado em 2007 e repetido agora em 2020.
Uma cegueira do Novo Marco Legal do Saneamento Básico: a desoneração legal que alcança 68,16% dos titulares
Em relação a esse desafio de proporcionar condições para que os Municípios efetivem o planejamento ao qual estão constitucionalmente obrigados, o novo Marco andou mal. Se antes todos os Municípios eram obrigados a elaborar o Plano de Saneamento em uma versão completa, agora aqueles com menos de 20.000 habitantes podem elaborar uma versão simplificada, em uma “desoneração legal”.
No entanto, nesta faixa encontram-se 3.797 do total de 5.570 Municípios, o que significa que 68,16% dos titulares deixaram de ser obrigados a planejar de forma completa.
O impacto disso na realização de políticas públicas será brutal, já que, segundo Élida Graziane Pinto, “a noção de política pública corresponde a um ciclo decisório, finalística e processualmente voltado ao cumprimento dos ditames constitucionais, organizado em torno dessas três grandes fases: planejar, executar e controlar”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Sem dados, como planejar? Como controlar? Sem dados, executam-se as ações às cegas sobre um tema sentido por todos nós que dependemos de água potável e esgotamento sanitário.</blockquote>
Ao promover tal desoneração, o Governo Federal não apenas enfraqueceu tentativas de superar a carência de dados sobre saneamento básico, mas, principalmente, demonstrou desconhecer o perfil dos Municípios brasileiros, questão essencial não apenas para o setor de saneamento, mas para a implementação inúmeras outras políticas públicas. A maior parte dos Municípios brasileiros é de pequeno porte. Grandes metrópoles são exceção, e não a regra.
Trata-se de aspecto de nossa organização federativa que raramente ganha destaque, invisibilizado pelos grandes problemas metropolitanos que dominam o noticiário e contexto da maior parte dos tomadores de decisão. Esse aspecto de nosso federalismo só ganha relevo quando realmente busca-se o conhecimento preciso da realidade. E no cotidiano da vida local, a geografia vai além dos limites territoriais dos Municípios exigindo ações regionais concertadas: curso d’água, biomas. Nessa equação, a presença dos Estados como fomentadores constitucionais de políticas públicas regionais é necessária como a nossa água de cada dia.
No setor de saneamento, temos assim esses dois exemplos de falta de dados, sejam estatísticos ou mesmo geográficos, o que viola um dos pressupostos da chamada Legística material, a qual busca orientar, metodologicamente, o processo de construção e escolha da decisão sobre os rumos da nova legislação, a reconstrução do cenário de incidência normativa presente e do almejado cenário futuro e em como o processo de regulação a ser projetado, por meio da avaliação do seu possível impacto sobre o sistema jurídico e a definição de sua rede de implementação.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Quando se avança às cegas, corre-se o risco de retroceder.
Não bastam legislações bem-intencionadas. Belas leis nos livros podem jamais tornar-se leis em ação. A despeito disso, nossa esperança é que, apesar do novo Marco ter desincumbido Municípios com população de até 20.000 habitantes de realizar o Plano Completo, o compromisso real dos gestores com a meta de universalizar os impulsione a planejar da melhor maneira possível, com dados transparentes e auditáveis. E que mesmo diante da desoneração legal, os Governos Federal e Estaduais auxiliem esses Municípios a elaborar o Plano Completo, provendo-lhes com os recursos, técnicos e financeiros, necessários e sempre tão escassos, por vezes pouco acessíveis e transparentes, nas regiões mais pobres do país. Esse seria um grande passo em direção a uma maior legitimidade na cooperação federativa no Brasil.
<hr />
O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=LEilO-XHtko&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Diagnóstico SNIS 2018. 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019. Disponível em: www.snis.gov.br/diagnosticos. Acesso em: 10 mar. 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> COSTA, Silvano Silvério; RIBEIRO, Wladimir Antonio, Dos porões à luz do dia: um itinerário dos aspectos jurídico-institucionais do saneamento básico no Brasil. In: HELLER, Léo; CASTRO, José Esteban. Política pública e gestão dos serviços de saneamento: edição ampliada. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. Cap. 22, p. 467-482.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> PINTO, Élida Graziane. Ciclo das políticas públicas e legitimidade compartilhada das escolhas alocativas: um estudo em busca da vinculação à força normativa do planejamento. In: PINTO, Élida Graziane; SARLET, Ingo Wolfgang; PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; OLIVEIRA, Odilon Cavallari. Política pública e controle: um diálogo interdisciplinar em face da Lei nº 13.665/2018, que alterou a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2018. Cap. 4, p. 105. p. 111.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SOARES, Fabiana de Menezes. Legística e desenvolvimento: a qualidade da lei no quadro da
otimização de uma melhor legislação. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 50, pp. 124-142, jan. – jul., 2007b. p. 125-126.

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JOTA

O caso da legislação em saneamento básico no Brasil

Fazer política pública às cegas?

política pública: Será que é possível planejar às cegas? O novo Marco Legal do Saneamento Básico pode ter agravado essa falta de dados