Leonardo Coelho Ribeiro

Muito se tem falado de Política e Direito. Principalmente de Política e Direito Constitucional, tomando a Constituição como o acoplamento estrutural entre os dois sistemas, e o papel do Supremo Tribunal Federal como um dos agentes institucionais de papel protagonista nesse enredo. A política, no entanto, guarda grande – e incrivelmente pouco explorada – interseção também com o Direito Administrativo. Justamente como tem teimado em demonstrar, pela via patológica, os sucessivos episódios recentes de desvio de poder, pelos quais o país segue, angustiadamente, afundando em areia movediça.
Passamos pelo estágio em que o sistema de freios e contrapesos, desafiando a lei da gravidade, se mantinha de ponta cabeça, enquanto o partido que dá suporte à Presidente da República e o Presidente da Câmara dos Deputados mediam o exercício de suas competências, mutuamente, entre apoiar a cassação do parlamentar no Conselho de Ética e aceitar a instauração de processo de impeachment em face da Presidente. Quebrado o equilíbrio espúrio, o que se viu foi a sucessão desenfreada de atos e mais atos com desvio de poder. Por desvio de finalidade, em nomeações de Ministros e servidores comissionados, ou, na versão momentosa e pitoresca, por excesso de competência, quando o Presidente interino da Câmara dos Deputados anulou a sessão de votação do impeachment naquela casa legislativa, com base em poderes tão inequivocamente inexistentes que se viu forcejado a voltar atrás e revogar o próprio ato de anulação, poucas horas depois, para não passar pela constrangedora situação de uma sessão legislativa sem quórum, na qual ele seria parte interessada, devido ao ato praticado, para tentar evitar sua expulsão do partido que integra.
Enquanto isso, a deslegitimidade, notada em cada ato de desvio de poder, conta mais um ponto em favor da paralisia institucional e da falta de direção e de subsistência da ação pública. E seguimos vivendo numa tempestade de contradições e despreparo, com instrumentos cada vez mais rudimentares e insuficientes para auxiliar nossa navegação. Quando o interesse público deveria nortear as ações públicas, e a realidade passa longe disso, parece mesmo é que o mundo está ao contrário e ninguém reparou.
No mundo real, o Direito não é imune à política. A afirmação de Luís Roberto Barroso, ainda que originalmente formulada pensando na análise da separação de poderes à luz das interações entre o Poder Judiciário e outros atores políticos, apresenta-se igualmente verdadeira no que toca à seleção de ferramentas de Direito Administrativo para endereçar a ação pública. No mundo real, a seleção de ferramentas não é imune à política e nem às partes interessadas que a influenciam. E desse modo, a ação administrativa não toma lugar em um ambiente politicamente inviabilizado.
Em matéria de seleção de ferramentas, a política encontra com o Direito em ao menos três ocasiões: (i) no momento normativo ordinário, definindo as ferramentas que serão disponibilizadas e a quem o serão, à luz da Constituição; (ii) no momento de escolha dentre as alternativas postas em sede ordinária ou constitucional, por decisão de autoridades superiores da Administração Pública; e (iii) no momento do emprego, de fato, das ferramentas, por integrantes da burocracia estatal ou administrados que tenham de escolher entre alternativas juridicamente estabelecidas.
Pois bem. Nos três momentos anteriormente referidos, a definição das ferramentas poderá ser influenciada, além de pela busca por realizar o interesse público em si: (i) pela ideologia dos agentes; (ii) por influência de grupos de interesse; (iii) pela maioria ocasional que elegeu seus representantes; e (iv) pelos interesses pessoais dos próprios agentes envolvidos ao longo do processo.
É certo que tais influências temperam a proposta de uma abordagem eficiente do Direito, delimitando o espaço de manejo e seus instrumentos. Mas a política e todos os interesses que pode trazer consigo não conseguem chegar ao extremo de operar sem qualquer suporte de legitimidade, de modo que ao menos um verniz de interesse público haverá de estar presente, para garantir aos agentes políticos a manutenção de suas posições de poder. E, sendo assim, a influência política tempera a abordagem do Direito Administrativo enquanto uma caixa de ferramentas, mas não a aniquila. A não ser que, do contrário, o desarranjo político seja tão significativo, que nem mesmo nesse plano basilar se consiga alcançar os consensos mínimos sem os quais nada funciona.
A concomitante crise política, ética e de microssistemas regulatórios, que não permitem mais encontrar campo fértil para funcionar sem o uso do “jeitinho brasileiro”, vai confinando o Brasil em um labirinto dinâmico, que todo dia muda e, na medida da mudança, desmancha a perspectiva de se andar para a frente. Tome-se o exemplo das contratações públicas tradicionais, condenadas diante do desgaste de suas duas grandes molas amortecedoras, a primeira, permitindo arbitrariedades e prerrogativas desmedidas ao poder público, e a segunda, recompensando as intempéries pela via da reedição continuada de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Se é verdade que os governos existem para realizar objetivos políticos, uma política que não consegue nem definir seus objetivos, porque se ocupa integralmente de lutar pela sobrevivência básica de mandatos, encerra obstáculo quase intransponível para que a ação administrativa se concretize, e interesses coletivos sejam efetivamente atendidos.
É preciso, pois, reencontrar a viabilidade política para que se possa, a partir daí, retomar a desejada e desafiadora busca pelo ponto ótimo entre ela e o exercício técnico e eficiente da função administrativa. Tudo de maneira sempre contextual, pois uma boa avaliação do cenário político, econômico e administrativo será premissa determinante para o sucesso ou insucesso de qualquer política pública orquestrada pelo governo, que agora se ‘renova’, ao menos temporariamente, e tem, diante de si, a oportunidade de refundar os pilares para sairmos do atoleiro. Que não seja mais uma chance perdida, dentre as tantas até então contabilizadas.

Road infrastructure in Brasilia, the capital of Brazil.

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JOTA

Luta pela sobrevivência de mandato encerra obstáculo quase intransponível 


Política e Direito Administrativo: o mundo está ao contrário e ninguém reparou

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