Joyce Midori Honda

Thales de Melo e Lemos

Nos últimos anos, os mercados digitais se tornaram objeto de calorosos debates políticos, jurídicos e econômicos. Na esfera concorrencial, esses debates estão se intensificando e já houve abertura de investigações em diversas jurisdições. Algumas particularidades destes setores, como a organização em plataformas de múltiplos lados, a forte presença de externalidades de rede, o rápido crescimento de players do setor inclusive por meio de killer acquisitions e o uso intensivo de Big Data, são propensas a demandar a atenção das autoridades concorrenciais.
É certo que ainda não há consenso entre estudiosos e autoridades sobre muitos aspectos relevantes, como a necessidade de enrijecer as obrigações para empresas dominantes ou de alterar critérios de notificação de operações às autoridades concorrenciais mundo afora. Em especial, há divergência significativa entre as principais agências antitruste dos Estados Unidos e da Europa, que repercute nas demais jurisdições e gera questionamentos sobre qual viés (liberal ou intervencionista) essas jurisdições estão seguindo ou estão mais inclinadas a seguir.
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Frente a estas controvérsias, a Comissão Europeia publicou, no começo de abril, o relatório “Competition policy for the digital era”<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>, preparado por grupo de especialistas para explorar como a política concorrencial deve evoluir para continuar a promover inovação pró-consumidores na era digital.
Tendo em vista a posição de liderança da Comissão Europeia, bem como a recente aceitação do Brasil no Comitê de Concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, é de se esperar que o relatório será considerado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE quando o órgão estiver diante de casos envolvendo o setor digital. Portanto, é de extrema importância conhecer os principais pontos levantados.
<h3 align="justify">Repensando parâmetros</h3>
O relatório publicado pela Comissão Europeia defende que a era digital pode exigir adaptação e refinamento de conceitos, doutrinas e metodologias.
Por exemplo, os especialistas defendem que mesmo quando o dano ao consumidor não puder ser medido precisamente, condutas que almejarem reduzir a pressão competitiva deverão ser proibidas, exceto se as empresas forem capazes de comprovar a geração de benefícios ao consumidor. Isto representa uma inversão no ônus da prova usual, o que se justificaria pelos maiores riscos de o enforcement antitruste ser insuficiente no cenário digital.
Outro ponto que o relatório sugere que seja reconsiderado é a importância da definição de mercados relevantes. Para os especialistas, os limites dos mercados digitais podem não ser bem definidos, além de mudarem rapidamente. Além disso, plataformas de múltiplos lados levam a uma interdependência entre diversos setores. Diante disso, autoridades concorrenciais deveriam dar menos ênfase à definição de mercados e mais à identificação de condutas anticompetitivas e danos.
Em relação à medição de poder de mercado, a sugestão do relatório é de que as autoridades se valham de insights da economia comportamental para entender melhor a força de alguns vieses – por exemplo, a tendência de consumidores escolherem opções padrão e gratificações de curto prazo. Outro destaque é a possibilidade de existir poder de mercado mesmo quando as participações de mercado são pulverizadas. Este é o caso de plataformas com as quais é essencial negociar seja porque são intermediadoras de serviços ou detentoras de dados que não estão disponíveis para entrantes.
Em linhas gerais, o relatório defende que particularidades dos mercados digitais mudaram o equilíbrio entre os custos de erros do antitruste. Até aqui, a visão prevalente tem sido a de que absolvições equivocadas são menos custosas do que condenações errôneas e, por isso, a autoridade só deve intervir quando realmente necessário, especialmente em mercados em desenvolvimento. Para os especialistas, no entanto, deve haver esforço para encerrar condutas anticompetitivas na origem, impondo às empresas dominantes o ônus de provar que a prática também tem efeitos positivos.
<h3 align="justify">Lidando com plataformas</h3>
A economia digital é marcada pelo modelo de negócios em plataforma, ou seja, que busca facilitar a troca de valor entre dois ou mais grupos de usuários, por meio da criação de redes de usuários e recursos, em grande escala, permitindo interações e transações constantes<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>.
Os autores do relatório ressaltam que, a depender de fatores como externalidades de rede<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> e ausência de diferenciação, o espaço para novas plataformas pode ser limitado. Em razão disso, é necessário proteger tanto a concorrência pelo mercado quanto a concorrência na própria plataforma: na medida em que criam as regras às quais prestadores de diversos serviços complementares se submetem, as plataformas dominantes deveriam garantir que a competição seja justa, não enviesada e pró-usuários.
Além disso, ações de players dominantes que tentem dificultar a atuação de rivais devem ser consideradas com suspeição pela autoridade. Alguns exemplos são as cláusulas de paridade ou nação mais favorecida (Most Favoured Nation – MFN) e a criação de dificuldades para multihoming, troca de fornecedor, portabilidade e interoperabilidade de dados. Caso adote algumas destas práticas, a empresa deve ter também provas de eficiências sólidas.
Outros tipos de condutas que devem ser analisadas com cuidado, apesar de não proibidas per se, são a alavancagem e autofavorecimento, especialmente em mercados com altas barreiras à entrada e onde as plataformas têm infraestrutura de intermediação relevante. Se a prática tiver significativamente beneficiado uma subsidiária da plataforma, com efeitos exclusionários, podem ser necessários remédios restaurativos, o que é difícil de articular. Por outro lado, para os especialistas, não é necessário aplicar regras de conduta a priori para plataformas que não são dominantes, já que estas são disciplinadas pela concorrência e alguns tipos de condutas podem ter resultados pró-competitivos.
<h3 align="justify">Economia de dados</h3>
Na atualidade, empresas dos mais diversos segmentos se beneficiam do processamento de grandes quantidades de dados e do seu emprego em inteligências artificiais, algoritmos e anúncios personalizados. Ao passo que isso gera inovação e mais eficiência no uso de recursos, também se argumenta que há geração de fortes vantagens competitivas e incentivos para limitar o acesso tempestivo, por rivais, às mesmas bases de dados<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>.
O relatório reconhece que a importância dos dados depende do mercado, do tipo de dado e da sua utilização. No que concerne aos dados pessoais, enquanto o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia foi importante para facilitar a portabilidade, os especialistas ressaltam que tudo depende de como o direito será interpretado e aplicado na prática. Para eles, deve ser cogitado um regime mais rigoroso para firmas dominantes, visando evitar os chamados efeitos “lock-in”, que impedem o usuário de trocar de serviço sem custos substanciais. Além disso, ressalvam que o GDPR não foi desenhado para facilitar multihoming ou o oferecimento de serviços complementares que precisam de acesso aos dados em tempo real. O GDPR também não é efetivo quando se trata de dados não pessoais, como aqueles gerados por máquinas e que servem de insumo para mercados secundários.
Quanto ao compartilhamento de dados entre empresas e os chamados “data pools”, apesar do aspecto positivo de removerem gargalos e favorecerem a inovação, também há risco de troca de informações sensíveis, desincentivo para melhoria na coleta e processamento próprios e de discriminação de concorrentes.
Outro ponto relevante é que as autoridades devem ser criteriosas ao analisarem pedidos de acesso a dados de rivais, especialmente se o objetivo não estiver relacionado ao mercado de atuação do incumbente. Por outro lado, nos casos em que for necessário impor o compartilhamento – por exemplo, se os dados são essenciais para atuação em mercados complementares – pode ser necessária regulação, inclusive setorial, para que tal decisão seja viável, tendo em vista custos de monitoramento.
<h3 align="justify">Fusões e aquisições nos setores digitais</h3>
Neste aspecto, o relatório trata especialmente de aquisições, por plataformas dominantes, de pequenas start-ups com base de usuários crescente e significativo potencial. Na visão dos especialistas, as killer acquisitions podem ser preocupantes se as incumbentes fazem isso de forma sistemática e as aquisições escapam à jurisdição concorrencial por não atingirem certos critérios, especialmente de faturamento. De fato, muitas empresas inovadoras sacrificam lucros de curto prazo visando primeiro se estabelecer.
Na União Europeia, alguns estados membros buscaram resolver o problema instituindo critérios baseados no valor da transação. Todavia, conforme reconhece o relatório, os efeitos práticos desta mudança ainda precisam ser verificados. Por outro lado, o mercado precisa de segurança jurídica para operar com menos custos de transação. Sendo assim, o relatório conclui que ainda é cedo para alterar critérios de notificação no âmbito comunitário, preferindo monitorar os resultados nos estados.
O relatório também sugere que as teorias de dano sejam reavaliadas nos casos em que uma plataforma ou ecossistema dominante, que se beneficia de fortes efeitos de rede e acesso a dados, adquire uma empresa com alto potencial de crescimento, que poderia efetivamente incrementar a rivalidade no setor. Além disso, a aquisição de empresas que oferecem serviços complementares não é abrangida completamente pela noção de limitação de acesso, dos rivais, a fontes de insumos. Para os especialistas, tal aquisição pode estender a dominância do ecossistema por meio de outros fatores, como intensificação da lealdade, retenção de usuários que poderiam migrar para o novo serviço caso fosse considerado um substituto parcial, entre outros. Para o relatório, não se trataria de gerar uma presunção de ilegalidade para tais operações, mas de aumentar o controle sobre operações que geram riscos concorrenciais próprios, diminuindo os riscos de falsos negativos.
<h3 align="justify">Reflexos no Cade</h3>
A OCDE proferiu, recentemente, relatório sobre a política concorrencial brasileira<a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>. Neste documento, ressaltou que a economia digital emergiu como prioridade para o CADE, em razão de diversos casos de alto nível, assim como o combate às condutas anticompetitivas unilaterais.
Conforme o relatório da OCDE, o CADE reconheceu que há desafios para lidar com a evolução dos mercados digitais e avaliar o nível de intervenção ótimo. Outro ponto lembrado pela Organização foi que os critérios para notificação de operações de concentração, no país, consideram apenas faturamentos e não o valor dos ativos envolvidos, o que pode retirar do radar da autoridade aquisições de empresas digitais relevantes.
Para referência, o CADE lida atualmente com ao menos quatro investigações relativas a condutas supostamente praticadas por uma giant tech – tais como supostas restrições para que anunciantes utilizem plataformas concorrentes, impedimentos para portabilidade de dados, raspagem de conteúdo de outros sites e manipulação da ferramenta de busca em benefício de seus próprios produtos. Até o momento, as áreas técnicas do CADE se manifestaram pelo arquivamento em três destes processos, mas ainda não há decisão final. Isto sem mencionar investigações envolvendo fintechs, criptomoedas, dentre outras, que terão que lidar com as particularidades do mundo digital.
Evidentemente, o CADE não está sujeito apenas à influência da Comissão Europeia, pelo contrário, um posicionamento mais próximo ao da Federal Trade Commission e o Department of Justice dos Estados Unidos, que têm adotado postura mais liberal quando lidam com a economia digital, é o que tem prevalecido no âmbito da Superintendência-Geral do CADE. Todavia, este relatório da Comissão Europeia certamente não deverá passar despercebido pela autoridade brasileira e em razão disso faz-se necessário conhecer e debater o seu conteúdo.
A nosso ver, mercados digitais estão sujeitos a constantes e bruscas transformações, o que gera uma verdadeira “corrida contra o relógio” para as autoridades, na tentativa de evitar prejuízos maiores para os consumidores. No entanto, estas devem ser muito cautelosas para não prejudicarem o desenvolvimento regular de mercados ainda não completamente compreendidos e sujeitos a constante inovação. Assim, estudos como o aqui analisado têm muito valor, mas devem ser utilizados com parcimônia até porque certas medidas são incompatíveis com a nossa legislação.
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Disponível em &lt;<a href="http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0419345enn.pdf">http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0419345enn.pdf</a>&gt; Acesso em 08/05/2019.
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> MOAZED, Alex; JOHNSON, Nicholas. Modern Monopolies: what it takes to dominate the 21st-Century economy. New York: St. Martin’s Press, 2016.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> O termo é normalmente utilizado para descrever contextos em que um bem ou serviço gera benefícios crescentes quanto mais atrai usuários. Neste caso, são externalidades positivas e diretas, como ocorre com o sistema de telefonia e muitas redes sociais. Ver: TUCKER, Catherine. What have we learned in the last decade? Network effects and market power. In: Economics and Antitrust. Antitrust Magazine, volume 32, n. 2, Spring 2018.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> STUCKE, Maurice; GRUNES, Allen. Big data and competition policy. Oxford: Oxford University Press, 2016.
</div>
<div id="sdfootnote5">
<a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> OCDE (2019), Revisão por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil <a href="http://www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-andpolicy-brazil-2019.htm">www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-andpolicy-brazil-2019.htm</a>
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'Política concorrencial para a era digital'

O relatório da Comissão Europeia e a possível repercussão para o Brasil