A atuação da Polícia Rodoviária Federal nas últimas semanas trouxe à tona aquilo que muitos analistas já vinham denunciando há tempo: as polícias estavam sendo instrumentalizadas para fins políticos e muitos policiais haviam sido radicalizados pelo bolsonarismo.
No dia 30 de outubro, data do segundo turno das eleições, a Polícia Rodoviária Federal realizou mais de 560 operações de fiscalização, a maior parte delas em municípios do Norte e do Nordeste. A atuação da PRF deliberadamente prejudicou milhares de pessoas que se dirigiam às seções eleitorais para votar.
A ação dos policiais rodoviários claramente teve motivação política. A quantidade de operações de fiscalização foi muito superior àquela verificada no primeiro turno. Os locais das operações também mudaram. No primeiro turno as operações se concentraram nas regiões Sul e Sudeste. No segundo turno, as operações aconteceram majoritariamente no Norte e Nordeste, regiões de forte concentração de votos no candidato da oposição.
Não bastasse a confusão no dia da votação que poderia comprometer seriamente a lisura das eleições, a Polícia Rodoviária Federal também se viu envolvida nos protestos que tomaram as rodovias brasileiras no dia seguinte à votação. Grupos de caminhoneiros bloquearam estradas em vários estados em protesto contra o resultado das urnas. Os bloqueios trouxeram transtornos aos cidadãos e desabastecimento de alguns itens, especialmente medicamentos.
Era de conhecimento público que grupos de bolsonaristas radicais iriam para o confronto, acreditando contar com o respaldo das Forças Armadas e das polícias. Foi exatamente o que aconteceu no dia 31 de outubro. Obviamente os bloqueios não foram planejados naquela segunda-feira. Desde a semana anterior, os serviços de inteligência do Ministério da Justiça e da PRF tomaram conhecimento de conversas e mensagens sobre planejamento dessas ações.
Apesar disso, nem o ministro da Justiça, nem o diretor-geral da PRF tomaram providências para mitigar as consequências dos bloqueios. Não foram convocados mais policiais rodoviários para atuar nas operações de desobstrução de rodovias. Não foi realizada articulação com os governos estaduais para apoiar os trabalhos da PRF. Tampouco foi instaurado com a antecedência necessária o Centro Integrado de Comando e Controle Nacional destinado a coordenar as ações das forças federais e estaduais.
O caso de instrumentalização da PRF não é o único. Desde o início do mandato, Jair Bolsonaro vem tentando cooptar e instrumentalizar as polícias brasileiras. O mesmo processo pode ser verificado na Polícia Federal e nas Polícias Civis e Militares estaduais. Para isso, o presidente tem atuado em três frentes: institucional, econômica e simbólica.
No plano institucional, Bolsonaro utiliza a prerrogativa de nomear e exonerar os diretores das polícias. Como ele disse na reunião de 22 de abril de 2020: “Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro!”. Assim, o presidente conseguiu interferir na hierarquia da Polícia Federal. Até a presente data, Bolsonaro já puniu ou afastou 18 delegados federais e quatro superintendentes estaduais, cuja atuação contrariava seus interesses políticos.
É interessante notar que, no âmbito estadual, apesar dos esforços, Bolsonaro não conseguiu instrumentalizar as polícias. Mesmo que parcela significativa de policiais civis e militares sejam seus simpatizantes, o presidente não conta com a lealdade dos comandantes das polícias militares e diretores das policiais civis. Afinal de contas, as polícias são mantidas e controladas pelos governadores. Nesse caso, o sistema federativo agiu como freio e contrapeso do poder federal.
Além de interferir na hierarquia das instituições, o presidente se vale do seu poder simbólico e econômico para manter e ampliar o apoio entre os policiais. Até o início da pandemia, Bolsonaro comparecia em média a duas ou três formaturas e cerimônias militares ou policiais. As imagens dele confraternizando com policiais e seus discursos de apoio à categoria eram imediatamente postados nas redes sociais. Bolsonaro também usou a caneta presidencial para distribuir benesses. Mas diferente da presença simbólica do presidente, os ganhos econômicos se concentram principalmente na PF e na PRF, que foram beneficiadas com aumentos salariais e tiveram o orçamento ampliado.
Entretanto, os policiais estaduais querem muito mais do que selfies com o presidente. Eles não tiveram tanta sorte com a caneta presidencial. Bolsonaro não estabeleceu um piso salarial nacional como havia prometido. O programa Morar Seguro, destinado a financiar moradia para os policiais, praticamente não saiu do papel. Em função disso, diversas lideranças policiais nos estados manifestaram insatisfação com o esquecimento das promessas de campanha. Acusaram o governo de privilegiar apenas o segmento federal da segurança pública, dando as costas para as outras instituições.
Apesar disso, um número grande de policiais federais e estaduais seguem apoiando as pautas bolsonaristas. Como mostrou um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizado em agosto de 2021, um grupo significativo de policiais tem participação ativa em sites e blogs de apoio a Bolsonaro, bem como compartilham sua visão de mundo, independentemente do jogo político e das instituições. O estudo analisou o comportamento dos policiais nas redes sociais e mostrou que 17% dos profissionais de segurança interagem em redes bolsonaristas e outros 21% são bastante ativos nas redes bolsonaristas radicais.
Em parte, isso se deve ao descaso com que os policiais têm sido tratados pelos governos federais e estaduais. Além do baixo reconhecimento profissional, boa parte convive com salários defasados e equipamentos inadequados. Em alguns estados, falta munição, o armamento é obsoleto e os coletes estão vencidos. São frequentes os casos de assédio moral. A atenção à saúde desses profissionais é precária, sendo frequentes os casos de suicídios e afastamento por problemas psicológicos. Se os próximos governos quiserem reconquistar os policiais é necessário que reconheçam e valorizem estes profissionais.
Também é preciso atualizar e fortalecer os estatutos e regimentos internos para impedir interferências indevidas nas atividades cotidianas das polícias. Afinal de contas, as normas internas e leis servem para assegurar autonomia funcional e mitigar a interferência política dentro das políticas. A tramitação no Congresso Nacional do projeto que trata da nova lei orgânica das polícias pode ser uma ótima oportunidade para fortalecer essas instituições.