Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote>"Perdemos as colônias americanas porque nos faltou aquela competência na arte de conduzir os assuntos de Estado para saber a hora e a maneira certas de ceder aquilo que é impossível manter"
<footer class="jota-article__quote-cite">Rainha Elizabeth 2ª, em discurso na celebração dos 200 anos da Independência dos EUA</footer>
</blockquote>
Todo ofício possui o seu instrumento específico de trabalho. Dominar o seu uso e compreender os seus limites é a primeira obrigação do artesão. Se o instrumento do soldado é a espada e o do advogado é a palavra, o do diplomata é o tempo. Todo processo de construção ou de dissolução em assuntos humanos tem o seu tempo próprio de maturação. Cabe ao diplomata sentir o momento certo da ação, calibrando o ritmo dos processos que se desenvolvem na época da sua vida. A tentativa de acelerar ou retardar processos políticos que ainda não atingiram o grau necessário de maturidade, ou dele já passaram, acabam, mais cedo ou mais tarde, por gerarem novos e mais perigosos problemas, capazes de anular um ganho inicial eventualmente obtido. O tempo, cara leitora, é inexorável.
Na último dia 7/10, uma decisão do Tribunal Constitucional da Polônia abalou a Europa e o mundo, jogando o país em uma onda de protestos sem precedentes, por medo de que o país esteja a caminho de um “Polexit”, uma retirada do bloco europeu, que pode representar o fim mesmo do ideal comunitário. Para o Financial Times, o “Polexit”, de fato, apresenta-se como uma ameaça à unidade europeia maior do que fora o próprio “Brexit”.
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O Tribunal Constitucional da Polônia se pronunciou pela incompatibilidade entre algumas áreas da legislação comunitária e a Constituição do país. A decisão, mais especificamente, declara como ultra vires – isto é, fora da sua área de competência – a aplicação do princípio da supremacia do direito comunitário sobre o direito nacional polonês para além das áreas de competência da UE formalmente estabelecidas pelos tratados, intensificando a já tradicional posição dualista do país, no que rege as relações entre o seu ordenamento jurídico interno e o ordenamento jurídico comunitário.
No âmbito da União Europeia as relações entre o direito comunitário e os direitos internos dos Estados-membros têm sido, desde a criação do bloco, um ponto de intensa clivagem política. Na prática, opera-se um sistema dualista, no qual se relacionam duas ordens jurídicas distintas, a do direito comunitário e a de cada direito nacional, cujo diálogo se dá pela internalização ou pelo reconhecimento, em cada país-membro, da extensão e dos limites do princípio da “supremacia do direito da União Europeia”. Esse princípio, cara leitora, tem sido, historicamente, um verdadeiro pomo da discórdia no processo de integração europeu.
Uma postura monista, isto é, de supremacia direta e absoluta do direito comunitário sobre os direitos nacionais nunca fora estabelecida pelos tratados da UE. Ela fora incluída, de fato, na proposta de Constituição do bloco (2004), mas, dado seu caráter controverso, acabou retirada do texto final do Tratado de Lisboa (2007), figurando apenas em uma “Declaração em Relação à Supremacia”. Houve intensos debates na época, com muitos analistas temendo que a sua retirada do Tratado de Lisboa pudesse levar a questionamentos das cortes nacionais quanto à validade e eficácia do princípio da supremacia. A crise atual na Polônia, cara leitora, atesta para a correção dessas análises.
Ausente do Tratado de Roma (1957), que estabelecia originalmente a Comunidade Econômica Europeia (CEE), portanto, o princípio da supremacia do direito da União Europeia foi, não obstante, desenvolvido jurisprudencialmente pelas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A sua primeira articulação embrionária pelo tribunal se deu no caso Van Gend en Loos (1963), pelo qual o TJUE declarou que a "Comunidade constituía uma nova ordem jurídica de direito internacional, em benefício da qual os Estados-membros haviam cedido parte de suas soberanias".<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A leitora pode imaginar que nascia aí o ovo da serpente, que iria gerar intensos embates políticos pelas décadas subsequentes.
A formulação explícita do princípio da supremacia foi realizada pelo TJUE no ano seguinte, caso Costa (1964).<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Nesse caso, o tribunal declarou que “a transferência pelos Estados de seus sistemas jurídicos domésticos para o sistema jurídico comunitário de direitos e obrigações provenientes do tratado carrega consigo uma limitação permanente dos seus direitos soberanos, contra a qual um ato unilateral subsequente que seja incompatível com o conceito da Comunidade não pode prevalecer”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O fundamental a se notar aqui, cara leitora, é que o princípio da supremacia do direito comunitário é um constructo de origem jurisprudencial, a partir de uma interpretação teleológica dos tratados da UE. Isto é, o princípio não possui fundamento positivo no ordenamento jurídico da UE.
A partir de Costa, o TJUE continuou desenvolvendo o princípio da supremacia ao longo das décadas subsequentes, delimitando a sua extensão e a sua aplicabilidade, no tempo e no espaço. A UE passou, então, a operar a partir de uma espécie de solução de compromisso entre a não positivação do princípio da supremacia e o desenvolvimento jurisprudencial da doutrina. Essa solução de compromisso foi batizada de “supranacionalismo de caráter dual”, segundo o qual de um lado há a elaboração dos parâmetros do princípio pelo TJUE, e, de outro lado, há a necessidade da sua “incorporação pelas ordens constitucionais dos Estados-membros e a sua afirmação pelas suas respectivas cortes supremas”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Em bom português, cara leitora, acabou ficando para cada corte nacional decidir o que ela entende pelo princípio da supremacia e como ele se aplica no território sob a sua jurisdição. Um balanço delicado e uma tensão que, mais cedo ou mais tarde, iria estourar.
No caso específico da Polônia, assim, em linha com a postura seguida por outros países da Europa central e do leste, a sua Corte Constitucional, desde o início, deixou muito claro que não aceitava a supremacia do direito comunitário sobre o direito constitucional polonês. Alguns analistas chamam mesmo à atenção para o chamado “dilema constitucional” dos países do Leste Europeu: são nações muito ciosas de suas soberanias, que resistem a cedê-la para uma comunidade supranacional após longas décadas de dominação soviética.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Esses países, dessa forma, possuem Cortes Constitucionais cuja jurisdição é mais ampla do que a daquelas dos países da Europa Ocidental, a se afirmarem mesmo como “atores poderosos, influentes e ativistas, ditando as regras do jogo político para os outros atores políticos”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Ou seja, há especificidades histórico-políticas e culturais na região que não podem ser ignoradas pela análise.
O Tribunal Constitucional da Polônia, dessa forma, pronunciou-se no caso Lisboa (2010),<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> no sentido de que a Constituição da Polônia é a lei suprema do país, estabelecendo os limites do princípio da soberania do direito comunitário, que não se sobrepõe à Constituição polonesa. Para o Tribunal Constitucional da Polônia, o direito comunitário se assemelha ao direito internacional geral, internalizando e gozando do mesmo status de legislação infraconstitucional.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional da Polônia, desde a adesão do país à UE em 2004, vem sendo apontada por analistas como dividida, apresentando, de um lado, uma abertura à UE, mas, de outro lado, também um receio de que uma cessão desenfreada de soberania possa levar a um esfacelamento da identidade constitucional do país, cuja longa história de sofrimentos e dominações estrangeiras tornam naturalmente compreensíveis as desconfianças nesse sentido.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Gato escaldado tem medo de água fria.
A lição que fica da atual crise do “Polexit”, cara leitora, é a de que questões jurídico-constitucionais importam de verdade e precisam ser enfrentadas diretamente no momento em que surgem, ainda que a sua solução demande muito tempo. A estratégia adotada de avançar rapidamente no processo de integração, pelo desenvolvimento jurisprudencial do princípio da soberania do direito comunitário, para não ter de esperar pela construção de um consenso maduro para a sua positivação nos tratados, está agora a cobrar o seu preço. Todo o projeto e o ideário da União Europeia correm o risco de ruírem nos escombros de uma Babel moderna. Aguardemos as cenas dos próximos episódios. Bis dat, qui cito dat.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Caso 26/62 NV Algemene Transport – en Expeditie Onderneming van Gend en Loos v Nederlandse Administratie der Belastingen [1963] ECR 1.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Caso 6/64 Flaminio Costa v ENEL [1964] ECR 585.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ibid, 267.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> WEILER, JHH, “The Community System: The Dual Character of Supranacionalism”, Yearbook of European Law, vol. 1, Oxford: OUP, 1981, p. 276. Tradução livre.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> SADURSKI, W. “´Solange Chapter 3´: Constitutional Courts in Central Europe – Democracy – European Union”, European University Institute Working Papers, Law No 2006/40.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ibid, p. 2. Tradução livre.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> K 32/09, 29 Nov. 2010.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> LAZOWISKI, A., 'Half full and half empty glass: The application of EU law in Poland (2004–2010)', (2011), 48, Common Market Law Review, Issue 2, pp. 503-553.

Polônia bandeira

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JOTA

Os percalços do princípio da supremacia do direito comunitário e o futuro do projeto europeu

&#8216;Polexit&#8217;

'Polexit'

Decisão do Tribunal Constitucional da Polônia desencadeou protestos em meio ao receio de um "Polexit", uma saída da União Europeia