Luis Felipe Dalmedico Silveira

Embora a inflação brasileira esteja em trajetória de declínio, as previsões mais otimistas dão conta de que a inflação oficial encerrará o ano de 2016 ao redor da marca de 7%. É um resultado melhor que o do ano anterior (10,67%), mas ainda muito distante do centro da meta estabelecida pelo Banco Central do Brasil (4,5%).
O protagonismo do controle da inflação sempre esteve tradicionalmente atrelado a ações do próprio Poder Executivo ou de suas autarquias, como o Banco Central do Brasil. As políticas monetária e fiscal, portanto, sempre foram, ao menos no Brasil, o pilar forte do combate à inflação. É claro que tais medidas contam com apoio do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Mas não há dúvidas de que é por meio das políticas monetária e fiscal, capitaneadas pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central do Brasil, sobretudo em razão de sua flexibilidade e dinamismo, que o Estado intervém na ordem econômica de forma mais contundente com o fim de estabilizar a inflação. A participação dos demais Poderes, portanto, é, no mais das vezes, acessória ou, em alguns casos, até coadjuvante.
A reflexão que se pretende provocar, assim, é se e, em caso positivo, de que forma, poderia o Poder Judiciário, a partir de sua função jurisdicional, contribuir para o controle efetivo da inflação com algum protagonismo, assim como o faz os órgãos vinculados ao Poder Executivo. Mais especificamente, a reflexão que se propõe é se caberia ao Poder Judiciário uma atuação mais marcante e, digamos, criativa neste sentido, isto é, para além da simples subsunção dos atos do Poder Público e dos agentes econômicos, em geral, às disposições casuísticas da legislação financeira (como a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou a própria lei que instituiu o “Plano Real”).
Fala-se, aqui, especificamente, de uma intervenção judicial na ordem econômica a partir da aplicação de cláusulas gerais de direito contratual – como o princípio da função social dos contratos estabelecido no art. 421 do Código Civil, por exemplo – as quais não trazem uma “fórmula pronta” ou uma disposição de conteúdo específico decorrente da experiência – e que, portanto, permitiriam uma atuação mais imaginativa e criativa do julgador sobre o caso posto sob análise, em comparação com as soluções trazidas pela legislação casuística.
A provocação se justifica porque, como se sabe, a inflação – e, portanto, estamos aqui trabalhando no âmbito das “consequências” da política monetária como instrumento de prevenção e combate à inflação, diga-se – retrata o comportamento dos preços na economia, os quais, basicamente, são resultado de operações econômicas entabuladas entre os agentes econômicos. Ou seja, há uma inegável relação entre inflação e contratos que, evidentemente, poderia levar a conclusão de que o Estado, por meio do Poder Judiciário, poderia adotar soluções, digamos, menos ortodoxas a partir da intervenção nos contratos da economia com a finalidade de contribuir para o controle da inflação.
É claro que, do ponto de vista formal, haveria espaço para esse tipo de ação. O art. 174 da Constituição Federal trata da intervenção do Estado na ordem econômica, determinando que cabe a ele “as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”. A Carta não diz “que” Estado seria este, de modo que, evidentemente, o Judiciário, como Poder de Estado que é, e respeitadas as limitações óbvias que são impostas pela própria característica da função jurisdicional, estaria absorvido pelo mencionado art. 174 da Constituição Federal.
O problema, no entanto, se dá sob o aspecto material e de resultado. Como dito, há, na legislação vigente, dispositivos de natureza casuística que impõem a participação repressiva do Poder Judiciário sobre comportamentos econômicos indesejados para fins de controle da inflação. O exemplo mais conhecido, talvez, seja o art. 28, §1º da Lei nº 6.069/1995 (conhecida como “Lei do Plano Real”), segundo o qual “é nula de pleno direito e não surtirá nenhum efeito cláusula de correção monetária cuja periodicidade seja inferior a um ano”. Mas o que dizer, por exemplo, de uma decisão judicial que, eventualmente, e com base numa cláusula geral de direito contratual, anulasse parcialmente uma cláusula contratual que previsse o reajuste dos preços ali previstos conforme um determinado índice de inflação, de modo a limitar tal reajuste ao teto da meta da inflação (4,5%)? Alguém poderia argumentar, eventualmente, que uma decisão como a imaginada acima seria compatível com o já mencionado princípio da função social dos contratos. Argumentar-se-ia, por exemplo, que o referido princípio imporia a adequação da liberdade que detém as partes para determinar o conteúdo do contrato aos interesses sociais e que, assim, uma cláusula contratual que permitisse um reajuste superior ao teto da meta da inflação seria contrária a esses interesses – e isto porque concorreria para alimentar o processo inflacionário.
Responder à pergunta acima depende, em primeiro lugar, de se compreender como interagem os sistemas jurídico e econômico dentro da ordem social. Embora a ordem legal seja cogente no Estado de Direito, o sistema econômico nem sempre reage como esperado às interferências do sistema jurídico. Isto é, se a solução proposta pelos organismos que compõem o sistema jurídico contraria pressupostos, elementos de base ou qualquer outro aspecto definidor do sistema econômico, este simplesmente ignora a regra jurídica, reagindo a seu modo a essa “interferência” – ou seja, adotando um comportamento que, embora não contrarie a ordem legal, simplesmente não é o desejado pelo sistema jurídico. É preciso escolher sabiamente quando e como intervir por indução (apresentando opções de ação ou “manipulando” o comportamento dos agentes econômicos) ou por direção na ordem econômica (proibindo expressamente certos comportamentos). Não à toa, por anos a fio, os remédios contra a inflação eram ministrados pelo sistema jurídico – por meio de leis, medidas provisórias, resoluções do Banco Central, etc. – sem que o sistema econômico reagisse da maneira esperada.
E isso, evidentemente, porque há diversas teorias que se propõem a explicar o fenômeno inflacionário, cada uma delas oferecendo uma solução distinta para o problema. Existem as teorias que se concentram no problema da demanda – notadamente, as teorias quantitativa e keynesiana – e que apontam a política monetária ou a fiscal como a solução para o problema. Por outro lado, é preciso citar a teoria estruturalista – muito popular nos países em desenvolvimento, frise-se – e que explica o processo inflacionário a partir dos problemas de oferta e de estrutura da economia. Há, ainda, teorias que se dedicam a investigar os efeitos da variação dos custos de produção sobre a inflação (administrativistas) – e que oferecem como solução, dentre outras alternativas, o próprio controle de salários e de preços. Além destas, existem as teorias que relacionam taxa de preços, salário e nível de emprego, dando ênfase à expectativa de inflação e seu efeito cíclico sobre o processo inflacionário (tendo seu comportamento explicado pela famosa “Curva de Phillips”). Por fim, e talvez a mais importante para fins locais, há a teoria da inflação inercial, que explica a inflação a partir da indexação da economia e que constitui a base do plano de estabilização colocado em prática durante a década de 1990. Note-se, portanto, que, em termos de controle da inflação, o sistema econômico só reagirá adequadamente se, dentre todas as teorias oferecidas, for realizado o diagnóstico correto e, com base nele, o sistema jurídico aplicar o remédio apropriado para a situação.
Vê-se, então, desde já, os problemas que ocorreriam na hipótese de uma eventual atuação mais criativa do Poder Judiciário em termos de intervenção contratual para fins de controle da inflação.
O primeiro deles, evidentemente, é até óbvio. Trata-se do problema de coordenação. Uma atuação mais protagonista do Poder Judiciário no controle a inflação pressupõe, evidentemente, juízes preparados para mapear o cenário que lhes é posto e, logo após isso, aplicar a solução adequada para o problema, conforme se demonstrou acima. Ora, ocorre que, tanto no Direito, quanto na Economia, há divergências e pontos de vista distintos sobre os fatos relevantes para a ciência. Ou seja, haverá sempre o risco de um magistrado mapear o cenário econômico que se apresenta de forma distinta, por exemplo, dos agentes responsáveis pela formulação da política econômica central. Imagine, assim, por exemplo, um juiz que intervenha sobre um litígio contratual aplicando soluções próprias para uma inflação de demanda, ao mesmo tempo em que a política econômica central aplica a terapêutica adequada para um quadro de inflação inercial. Pior: imagine juízes diferentes aplicando soluções distintas para litígios da mesma natureza ao longo do país, algumas coincidindo e outras divergindo da política econômica central, tudo com vistas a promover o controle da inflação. É evidente que isso traria uma enorme insegurança para os agentes econômicos, além de não provocarem o efeito desejado no sistema econômico – que desorientado e sem uma política clara, simplesmente se veria desestimulado a produzir. Neste sentido, é possível até concluir que uma solução criativa tomada com base no princípio da função social do contrato (conforme exemplo proposto) se voltaria contra o próprio espírito do instituto.
O segundo problema diz respeito à natureza da função jurisdicional. Enquanto a política monetária visa orientar o comportamento dos agentes econômicos em relação à definição de preços para o futuro – isto é, numa espécie de ação “anterior” aos fatos que se pretende afetar –, a atuação jurisdicional é, na massacrante maioria das vezes, posterior e repressiva. Noutras palavras: a atuação do Poder Judiciário em matéria contratual tem sempre em vista fatos ou ações do passado, buscando, assim, o restabelecimento de uma situação anterior ou a propagação dos efeitos de fatos passados para o futuro. Mais ainda: ela sempre depende da provocação do interessado. Esses aspectos, como bem se percebe, limitam sobremaneira qualquer protagonismo que o Poder Judiciário pudesse ter em termos de política anti-inflacionária. A política econômica central quanto à inflação tem sempre em vista orientar o comportamento dos agentes econômicos para o futuro, buscando, em resumo, desestimulá-los a adotarem novos comportamentos inflacionários. Trata-se de comportamento ativo e prospectivo. A atuação do Poder Judiciário, portanto, em razão das próprias características da função jurisdicional, teria eficácia limitada nesse sentido.
O terceiro problema reside na eficácia “espacial” da atuação jurisdicional. Ressalvados os casos de ação coletiva ou naqueles com entendimento consolidado perante as instâncias superiores, as decisões judiciais têm efeito restrito ao universo das partes envolvidas no litígio. Seu efeito prático, portanto, não vai além das partes, sem caráter “orientativo” relevante – algo essencial à uma política anti-inflacionária. Esse dado, inclusive, atrai um quarto problema: as políticas anti-inflacionárias transitam, substancialmente, no campo da macroeconomia, de onde a intervenção judicial em contratos passa distante – a atividade jurisdicional, em matéria contratual, trata principalmente de questões atinentes tão somente à microeconomia.
Por tudo isso, parece claro que a atuação do Poder Judiciário em termos de controle da inflação deve ser coordenada com os demais Poderes de Estado e restrita às normas de natureza casuística prevista pela legislação a respeito do tema. Esse, a princípio, parece ser o real comando do art. 174 da Constituição Federal: a intervenção do Estado na economia deve se dar de forma integrada, e não dissociada entre seus Poderes. Ao Poder Judiciário, assim, caberia o papel principal de “fiscalização” dos comportamentos inflacionários, por meio da aplicação repressiva dos dispositivos legais que, em matéria contratual, especifica e claramente tratem sobre o tema – evitando-se, assim, medidas “criativas”, com base em dispositivos de lei de conteúdo vago e impreciso, como o caso da função social dos contratos (art. 421 do Código Civil) ou mesmo da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil).

Inequality Scales Of Justice Income Gap South Africa

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JOTA

De que forma pode o Judiciário, a partir de sua função jurisdicional, contribuir para o controle efetivo da inflação com algum protagonismo

Poder Judiciário, intervenção contratual e controle da inflação

De que forma pode o Judiciário, a partir de sua função jurisdicional, contribuir para o controle efetivo da inflação com algum protagonismo