Coronavírus

Poder Judiciário e sessões de julgamento em tempos de pandemia

Qual o modo mais democrático de garantir a adequada prestação jurisdicional?

Ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes durante sessão plenária por videoconferência. Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

As portas dos tribunais estão fechadas. Juízes, desembargadores, ministros, promotores, procuradores de Estado, advogados públicos, privados, partes… todos impedidos de exercer as atividades costumeiras. Tempos de pandemia e de isolamento social forçado.

Para quem, como advogado, gosta dos embates nas cortes, da discussão das teses, do argumento e do contra-argumento, de utilizar-se da palavra como meio para convencer o julgador, estar afastado do cotidiano dos tribunais encerra considerável dose de angústia.

Não apenas. Para o advogado, que tem a persuasão como principal ferramenta de trabalho, não há nada mais eficaz do que a conversa direta e aberta, olho no olho. Basta-lhe ler alguns dos livros sobre convencimento para verificar que um toque, uma expressão e até mesmo o ato de respirar são cruciais para formar convicção sobre um tema.

Estudo datado de 2017 pelas Universidades de Waterloo, no Canadá, e Cornell, em Nova York, publicado pelo Journal of Experimental Social Psychology[1], verificou que falar pessoalmente é 34 vezes mais eficiente do que encaminhar um e-mail, embora se utilizem idênticos argumentos e se façam as mesmas solicitações. Do estudo se depreende que tal acontece porque a postura corporal positiva ou a expressão de sinceridade têm o poder de influenciar sobremodo o interlocutor.

Neste tempo em que o distanciamento social e a tecnologia das comunicações tornam-se diuturnas, percebe-se ser imperativa a comunicação presencial. Há o tácito código de conduta moral na sociedade a indicar que “assuntos importantes devem ser tratados pessoalmente”. Tanto que términos de relacionamento, promoções de trabalho, mudança de país e demais discussões de grande impacto são, na maioria, anunciadas e conversadas presencialmente.

De volta ao mundo jurídico, imagine-se pois a dificuldade para demonstrar “por PDF” a um juiz responsável por acervo de 10 mil processos, que se a multa prescrita de R$ 100 milhões for cobrada, seu cliente vai fechar a empresa, muitos funcionários serão demitidos e suas famílias sofrerão grave e imediato impacto em sua subsistência. Outrossim tentar convencê-lo de que – apesar de todos os estereótipos – seu cliente é inocente e um pequeno detalhe na investigação prova isso.

Esse é o verdadeiro desafio dos advogados que estão diariamente nos tribunais, valendo-se da máxima de que “assuntos importantes devem ser tratados pessoalmente”. O trabalho do advogado consiste em garantir que os detalhes sejam notados para que o conceito de justiça seja cumprido e, assim, o Estado-juiz possa dar a cada um o que lhe é devido.

A controvérsia sobre os julgamentos eletrônicos

A interferência da tecnologia no direito é inevitável. Esvaiu-se o tempo em que eram necessários imensos arquivos físicos em escritórios de advocacia para guardar cópias de processos. Os processos eletrônicos já fazem parte da realidade do meio jurídico na quase totalidade dos Tribunais. Com a inovação do processo eletrônico chegou a vez dos julgamentos eletrônicos. Ao contrário da pacífica aceitação havida na transição para processos eletrônicos, há hoje enorme discussão entre os juristas sobre a efetividade e a justeza do julgamento virtual.

Quem o defende prega a eficiência do desenvolvimento dos trabalhos nos Tribunais diante da enorme quantidade de processos. Argumenta que há inclusive mais tempo para que cada juiz examine o caso e possa se manifestar. Já quem reclama se vê privado de acompanhar debates e de eventualmente contribuir com as discussões entre os magistrados, por vezes até com esclarecimentos que podem se mostrar fundamentais para a decisão a que chegará o juiz no caso. E não concorda com a absoluta impossibilidade de acompanhar a marcha do julgamento, que se traduz em verdadeiro voo cego para o advogado.

Na busca da arte do possível e frente a uma realidade que não parece ter volta, cabe pensar em alternativas para aprimorar uma sistemática mais racional dos julgamentos eletrônicos, uma sistemática pública, em que prevaleça a interação entre advogados e magistrados, como é, deveras, nossa tradição.

Isso porque nos julgamentos virtuais, que já aconteciam corriqueiramente nos Tribunais, à interação presencial in totum suprimida, inexiste qualquer interação ou acompanhamento da questão examinada durante o processo decisório. Além disso, há diversos relatos de casos em que o princípio da colegialidade não foi cumprido de forma adequada e de processos em que a decisão proferida tratava de assunto diverso, sequer se referindo ao processo analisado. Infelizmente, para o sistema de justiça, o jurisdicionado pode ser efetivamente prejudicado nessa situação, tendo em vista que o advogado fica privado de cumprir o seu papel de prestar esclarecimentos durante a construção da decisão jurídica.

Há de se ponderar também o enorme acervo dos magistrados. A judicialização em excesso dificulta o trabalho detalhado, atencioso e abarrota os gabinetes. Aqui, novamente, quem perde é o jurisdicionado com a morosidade da justiça e a demora para ter a adequada prestação jurisdicional.

Verifica-se a triste constatação de um jogo de “perde-perde”. Com o julgamento eletrônico no formato atual, perde-se com a ausência de participação efetiva dos advogados no processo decisório e, por vezes, com menos aprofundamento do caso. Por outro lado, claramente se perderia com a ausência de celeridade processual e a imprevisão para o jurisdicionado de ver direitos seus garantidos, não houvesse para os Tribunais a possibilidade de julgamentos eletrônicos.

As sessões de julgamento por videoconferência – um grande avanço

A história demonstra que tempos de crise são tempos de oportunidade. Foram as guerras que deram origem ao primeiro antibiótico e ao GPS, por exemplo. No entanto, na sociedade atual, as guerras, comparando-se ao quesito crise mundial, perderam vez para a pandemia global.

Ninguém estava preparado para viver tal cenário. Rápidas adaptações foram necessárias em inúmeras áreas profissionais. No meio jurídico, fez-se necessário inovar. Os encontros presenciais foram substituídos por ligações e videoconferências. As audiências foram canceladas, e os prazos, suspensos. Cada Tribunal está aos poucos ajustando procedimentos, para que se julguem os processos.

Quanto a julgar, diga-se do grande movimento nos Tribunais espalhados pelo mundo com a realização de videoconferências. Nos Estados Unidos, vários estados realizam julgamentos por videoconferência desde março. Inclusive, e por exemplo, aqui no Brasil foi possível acompanhar ao vivo um julgamento realizado pela Supreme Court of Appeals of West Virginia na última semana, por meio do seu canal no Youtube. Circulam na Internet diversos julgamentos com tais características, aliás.

Seguindo os mesmos passos, o STF editou a Resolução nº 672, de 26 de março de 2020, passando a permitir o uso de videoconferência nas sessões de julgamento presencial do Plenário e das Turmas. As primeiras sessões ocorreram nesta semana e foram transmitidas pelo canal oficial da Corte no Youtube. Os links para acompanhamento das sessões circularam fartamente. Indubitavelmente, um grande avanço.

O julgamento por videoconferência permite acompanhar os debates do Tribunal quanto aos casos em pauta. Ao invés de simplesmente aguardar, em voo cego, o resultado eletrônico do julgamento, como ocorre nas pautas virtuais, pode-se assistir aos debates entre os julgadores dos casos que vão um a um sendo apregoados, como numa sessão presencial de julgamentos. Além disso, passou a ser permitido ao advogado realizar sustentação oral ao vivo e apresentar questões de ordem ou esclarecimentos. Isso lhe faculta participar de forma mais ativa no processo decisório, além de exercer a defesa de seu cliente de forma completa.

No mesmo sentido, o STJ tratará do tema na Resolução STJ/GP n. 9, de 17 de abril de 2020, com previsão de publicação nesta segunda-feira dia 20.4.2020, cuja minuta que circula disciplina a realização de sessões de julgamento com uso de videoconferência até o dia 31 de maio de 2020. Ao que tudo indica, o STJ terá procedimento muito semelhante ao que foi implementado pelo STF. Aguardemos para saber como será a efetiva operacionalização do novo sistema de julgamentos.

O melhor caminho possível, no regime de distanciamento social?

Não obstante, considerando o observado nos julgamentos até então realizados, conclui-se que o sistema de videoconferência é o que funciona de modo mais adequado neste ambiente de exceção devido à grave crise sanitária que afeta as economias e as relações sociais e de trabalho no mundo.

Se de um lado se respeita a segurança do isolamento social, com a possibilidade de que ministros, assessores, representantes do Ministério Público Federal e advogados possam acompanhar julgamentos de qualquer lugar, existe fundamentalmente transparência e maior possibilidade de participação dos procuradores das partes na construção dos processos decisórios.

De outro modo, ressoa negativo que o trabalho dos advogados, no trato hábil de convencer julgadores, não se completa sem o contato próximo e pessoal, visto que a cinegrafia televisual, por mais próxima que seja da conversa física, jamais se comparará ao olho a olho. Além disso, há tendência de que as pessoas fiquem mais dispersas quando a conversa é por câmera, o que decerto prejudica o processo decisório.

Cabe também ponderar eventuais dificuldades e problemas extrínsecos, de caráter técnico, como acesso de todos a computadores de qualidade e problemas com o próprio serviço de internet.

De todo modo, e apesar dos obstáculos apontados, os julgamentos por videoconferência parecem ter mais pontos positivos do que negativos, no ambiente de pandemia e de isolamento social obrigatório. Enquanto os julgamentos presenciais estão suspensos, os julgamentos por videoconferência têm-se mostrado as melhores alternativas.

Parece claro que julgamentos presenciais não devem ser substituídos, mas talvez a experiência seja válida para que se possa repensar o modelo dos julgamentos virtuais.  Na prática, uma decisão judicial nada mais é do que a construção da justiça. É trabalho conjunto dos advogados públicos, dos privados e dos representantes do Ministério Público na criação das teses, e será concluído pelos juízes, ao ponderarem a melhor aplicação do Direito ao caso concreto.

Um modelo de julgamento virtual que vise à celeridade e, simultaneamente, não impeça os procuradores das partes de contribuírem para a formação da convicção do juiz, parece o modo mais democrático de garantir a adequada prestação jurisdicional, atenta à razoável duração do processo e aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

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[1] Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S002210311630292X?via%3Dihub. Acesso em 18 de abril de 2020.