Fabrício Polido

O mês de junho é internacionalmente conhecido como mês do “Orgulho LGBTQIA+”, e no Brasil, como em outras partes do globo, a publicidade nas <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/redes-sociais">redes sociais</a> não poupava homenagens e mensagens de apoio a esse significativo movimento, em vital espaço do ambiente democrático que buscamos construir.
De ativistas, organizações da sociedade civil a empresas e órgãos governamentais, todos mostravam cores e rostos felizes, afirmando sua simpatia à potencial verve das políticas identitárias, de reconhecimento, de inclusão de pessoas LGBTQIA+ e, acima de tudo, de respeito aos direitos humanos em uma dimensão mais ampla.
No entanto, experimentos políticos e legais em escala transnacional avessos ao apoderamento queer têm frontalmente atingido as bases frágeis da defesa de direitos de grupos minoritários. No mesmo ciclo festivo digital para Orgulho, pouco se falou a respeito, por exemplo, das tentativas de rebaixamento de direitos civis de pessoas LGBTQIA+, constantemente condenadas a permanecer dentro do armário — uma condição a que ainda são obrigadas a se submeter em diversas partes do globo.
Também pouco foi discutido sobre o “casamento de conveniência” celebrado entre campanhas publicitárias de marcas aparentemente favoráveis às causas socialmente relevantes para comunidades LGBTQIA+. Até o entusiasmo midiático e comercial pelo “Orgulho” esconde o lado nefasto do patrocínio de lobbies para aprovação de leis que constrangem o exercício de direitos humanos desse grupo tão representativo.
Desde as infames leis de Uganda criminalizando práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, passando pela escalada de leis nacionais e políticas que buscam atacar diretamente pessoas LGBTQIA+, como na Rússia, Estados Unidos, Turquia, existem ainda os comportamentos de conglomerados a mascarar suas práticas corporativas, direta e indiretamente, envolvidas no processo de fragmentação e enfraquecimento da agenda de políticas em defesa de direitos LGBTQIA+. Como já há anos denunciadas, essas práticas marginalizam pautas afirmativas, identitárias e inclusivas. Tornam sazonais os espaços de reivindicação de direitos fundamentais e excluem indivíduos e grupos, quando não muito apoiando indiretamente blocos políticos que ecoam mundialmente o argumento falacioso de que direitos sexuais e reprodutivos devem “democraticamente” admitir contestações, como por concepções morais e a defesa mais acalorada das liberdades de expressão e crença religiosa.
Nesse mesmo ambiente de experimentos, práticas comerciais e publicidade online cruzando fronteiras — já arraigadas no Brasil com o uso intensivo das plataformas digitais — combinam-se com as chamadas estratégias de ‘pinkwashing’. O termo se refere à apropriação de movimentos de liberdades sexual, reprodutiva e de gênero, exclusivamente para promover, midiática ou comercialmente, uma organização pública ou privada, nas que mascara preconceitos reais e a ausência de políticas efetivamente inclusivas dentro e fora de organizações que se apresentam simpáticas ao Orgulho.
Entre posts em plataformas de redes sociais e aplicativos de mensagens, o apelo é muito mais um efeito de ‘pegar carona’ com o simbolismo que a agenda identitária, de diversidade e inclusão possa representar.
Mais recentemente, o ‘pinkwashing’ sofre a adaptação para o ‘rainbow-washing’, em referência direta à apropriação do movimento LGBTQIA+ para promover uma agenda corporativa mundial específica também centrada na estética dos símbolos do mês e dia Orgulho (28 de junho) e seus dividendos comerciais.
Trata-se do “ato de empregar ou adicionar as cores do arco-íris e/ou seus elementos imagéticos em peças de divulgação, vestimenta e acessórios, identidade da marca, entre outros, para indicar um apoio progressivo à igualdade de direitos da comunidade LGBTQIA+”, além de “alçar credibilidade nos mercados, receber aportes de investimentos baseados em inclusão social e diversidade, sem, contudo, um mínimo de esforço para obter resultados pragmáticos”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
A partir da estratégia de variação do ‘pink’ para ‘rainbow-washing’ no importante e simbólico dia 28 de junho, encontram-se entidades que publicizam o apoio à causa para distintas formas de validação social ou um selo de certificação LGBTQIA. E isso tem ocorrido ao longo dos últimos anos precisamente na época do mês do Orgulho, com o objetivo único de promoção, engajamento de conteúdo publicitário e vinculação com outras campanhas como no campo de governança socioambiental e sustentabilidade (leia-se o encantamento por ‘ESG’, potencialmente ‘lavável’ no mundo corporativo).
As mesmas organizações seguem além: não fazem questão de esconder práticas fisiológicas que colidem com as pretensões legítimas do movimento diverso, identitário e inclusivo projetado pela comunidade LGBTQIA+, orientado pelo respeito dos direitos humanos e reconquista de espaços de reconhecimento – como foi Stonewall, na origem do dia do Orgulho, 28 de junho de 1969. Não coincidentemente, esse fenômeno de indiferença é endossado por pesados financiamentos a lideranças que atacam diretamente pessoas LGBTQIA+ e suas agendas muito frágeis de direitos fundamentais.
Existem dados robustos para avançar com essas premissas, observando-se o Brasil. Em uma pesquisa realizada pelas organizações <a href="https://www.outnowyouth.org/">Out Now</a> e NielsenIQ em 2022, por exemplo, apurou-se que a comunidade LGBTQIA+ garante 7% do PIB nacional e que movimenta quase R$ 12,6 bilhões por ano no território nacional. 30% dos entrevistados consideram estar dispostos a gastar com marcas que apoiam a causa LGBTQIA+. Os indicadores ilustram o interesse de marcas em se promover como apoiadoras da causa, mesmo que somente da porteira para fora.
Em pesquisa conduzida pela <a href="https://popular.info/p/lgbtq2022">Popular Information</a><a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, verificou-se que 25 grandes corporações norte-americanas — igualmente atuantes no Brasil — doaram mais de 13,2 milhões de dólares para políticas anti-LGBTQIA+ desde o início de 2021. Entre elas se encontram, por exemplo, leis e regulamentos proibindo que professores reconheçam a existência de pessoas LGBTQIA+ em sala de aula e proibições de livros com personagens de <a href="https://www.bpmoney.com.br/noticias/negocios/pinkwashing-como-marcas-utilizam-mes-orgulho-lgbtqia-apoiar-ou-nao-causa">minorias sexuais</a>.
Ainda assim, apesar de destinar milhões para políticas anti-LGBTQIA+, as empresas incluídas nessa análise da Popular Information foram positivamente avaliadas no “Índice de Igualdade Corporativa de 2022” da <a href="https://www.hrc.org/">Human Rights Campaign</a> (HRC), que tecnicamente afere, entre os indicadores, o “compromisso público” de grandes conglomerados com as pautas LGBTQIA+.
Metodologias como as empregadas no ranking da HRC, contudo, não captam variáveis críveis para um teste de balanceamento de interesses entre as agendas relevantes para promoção comercial e ambiente de negócios, de um lado, e as de promoção de direitos humanos, nesse caso analisado para pessoas LGBTQIA+, de outro. Elas excluem ou ignoram eventos e processos relacionados a doações políticas e contratos comerciais firmados entre empresas e empresas e o Estado, permitindo que muitas das corporações “positivamente” avaliadas criem a imagem socialmente desejável pró-LGBTQIA+, enquanto no paralelo financiam políticas que retiram ou desmantelam direitos dessa comunidade.
E isso não poderia ser considerado senão rebaixamento de direitos civis e políticos. Variáveis dos indicadores vigentes de diversidade e inclusão pouco capturam as contratações de lobistas e agências de relações governamentais que atualmente se dedicam a embasar ações anti-direitos LGBTQIA+ em parlamentos e órgãos executivos em diferentes países, além do apoio a organizações de fachada, partidos e candidatos publicamente contrários a agendas identitárias, diversas e inclusivas. No caso do Índice HRC de 2022, 15 das 25 corporações receberam pontuações perfeitas (100) e nenhuma recebeu pontuação abaixo de 80. O resultado provavelmente sugere que esse tipo de indicador global não pode ser considerado plenamente adequado para avaliar o que se propõe quanto ao quesito mais amplo (e factível) da promoção identitária, de diversidade LGBTQIA+ em nível local, regional ou global.
Há mais uma razão para desafiá-lo, sobretudo porque práticas inclusivas não estariam circunscritas ao ambiente corporativo, respostas de clientes, pares (‘peers’) ou de empregados, como se as empresas não mantivessem um conjunto de interações públicas e socialmente relevantes, sejam elas legítimas, sustentáveis ou espúrias e corruptivas.
Outros exemplos podem ser oferecidos. Entre os setores da indústria identificados com os maiores financiadores de políticos anti-LGBTQIA+ nos Estados Unidos estão grandes empresas de automação, automobilística/montadoras, aviação civil, computação e tecnologias, energia, alimentos e bebidas, farmacêutica, financeira, varejo e marketplace.
No globo, há vários casos relatados por indicadores de estratégias de ‘rainbow-washing’. Elas demonstram de que maneira gigantes da moda que promoviam roupas exclusivas e coloridas pelo arco-íris como parte de suas "coleções Pride" e apoio às causas identitárias LGBTQIA+, ao mesmo tempo praticavam atos de violação transfronteiriça de direitos humanos, inclusive atingindo outras comunidades locais no Sul Global.
Essas empresas têm sido colocadas sob escrutínio público por produzirem as peças de vestuário e acessórios “pró-diversidade” em Bangladesh e Índia. Nesses países as relações sexuais ou uniões civis entre pessoas do mesmo sexo ainda eram ilegais até recentemente ou ainda permanecem ilegais.
Alguns governos e empresas também têm utilizado a bandeira LGBTQIA+ para pavimentar políticas para atrair investimentos e turismo, como em paradas do Orgulho, buscando limpar imagem negativa de seus países diante de graves violações de direitos humanos e do direito internacional cometidos, ao mesmo tempo em que proíbem cerimônias de casamento ou adoção de crianças por pessoas LGBTQIA+. Por ironia e sem pudores, financiam a indústria de maternidade por substituição (‘surrogacy’) dentro do próprio país, aberta para famílias estrangeiras, captando proativamente clientes LGBTQIA+, a partir de um aparente impulso de concretização de direitos sexuais e reprodutivos e do direito à vida em família.
Olhando em perspectiva esse desenho mais crítico para a proteção e promoção de direitos de pessoas LGBTQIA+ e as oportunidades benéficas a serem gestadas por organizações e conglomerados transnacionais, o Brasil pode servir como laboratório inovador.
Haveria espaço para estabelecer, como trabalho multissetorial, o compromisso de elaboração de um índice mais especializado para testar e classificar práticas sociais e corporativas vigentes relativamente às pretensões identitárias, inclusivas e diversas. Um índice dessa forma poderia também auxiliar a mitigar os efeitos do ‘rainbow-washing’, além de qualitativamente computar práticas inclusivas, diversas e de respeito a pessoas LGBTQIA+, e expondo o oportunismo traduzido pelo apoio e financiamento cruzado a partidários de agendas anti-LGBTQIA+. Algo como um índice específico de “Práticas Inclusivamente Queer” ou “Índice de Inclusividades Queer”, que pudesse mapear, dentre outras, as ações de inclusão, diversidade e respeito aos direitos fundamentais, os enlaces entre empresas e as campanhas políticas, apoios concedidos e o desempenho de políticas legislativas, executivas e judiciais na promoção dos direitos LGBTQIA+.
Outra frente, seria a exigência, em processos licitatórios, compras públicas e certificações governamentais, da demonstração de compromissos efetivos de desenvolvimento de ações sociais voltadas para as comunidades LGBTQIA+, como em acolhimento, programas educacionais de capacitação e liderança, os quais não podem ser substituídos por meros posts em redes sociais.
Em uma frente paralela, seria importante não abandonar a trilha de responsabilidade de Estados e atores não estatais, nos avanços já alcançados quanto às adesões regulares e permanentes de empresas, especialmente os conglomerados em escala global (de atores do Agro a Big Techs) à campanha “Livres &amp; Iguais” das Nações Unidas, ao lado de compromissos de observância de <a href="https://www.unfe.org/pt-pt/padroes-de-conduta-para-empresas/">padrões de condutas</a> destinados especificamente ao combate à discriminação contra LGBTQIA+ no ambiente social e corporativo. Esse documento, elaborado em 2018, pelo Escritório do Alto Comissário das ONU para os Direitos Humanos, teve como objetivo fortalecer o envolvimento das empresas na promoção da igualdade de direitos e tratamento justo da população LGBTQIA+.
A adesão voluntária não afasta, todavia, o cumprimento de leis e regulamentos domésticos reconhecendo a protegendo direitos de pessoas LGBTQIA+ ou tratados em matéria de direitos humanos vigentes.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://thisisgendered.org/entry/rainbow-washing/">https://thisisgendered.org/entry/rainbow-washing/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://popular.info/p/lgbtq2022">https://popular.info/p/lgbtq2022</a>

LGBTQIA+

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Por uma agenda a favor dos direitos LGBTQIA+

Poder corporativo transnacional entre o ‘rainbow-washing’ e o oportunismo

Em junho, mês internacionalmente conhecido como "mês do Orgulho LGBTQIA+", publicidades nas redes sociais são tomadas por homenagens