Pedro Pinheiro Orduña
advogado e Procurador do Município de São Paulo. Foi advogado da Área de Mercado de Capitais do BNDES (BNDESPAR).

Num momento de especial consciência no país sobre a necessidade de desenvolvimento da infraestrutura para alavancar a saída da crise econômica e a retomada do desenvolvimento, um dos grandes desafios que se colocam aos gestores públicos é a estruturação de bons projetos de PPPs e concessões, aptos a atrair licitantes qualificados e a gerar contratos adequados e que atinjam, no médio e longo prazos, as expectativas sobre eles colocadas.
Os entes públicos, independentemente do porte, enfrentam sérias dificuldades na montagem de equipes internas capacitadas para esta tarefa, seja pela necessidade constitucional de seleção objetiva e impessoal por intermédio de concurso público, seja pela concorrência de empresas privadas num mercado em ascensão – o que, aliado aos baixos salários e a outros problemas presentes na gestão pública, dificulta até mesmo o preenchimento de cargos em comissão com pessoal adequado.
É fato que mesmo os entes mais estruturados, quando conseguem formar uma equipe especializada para a modelagem de projetos, não retêm esta mão de obra por um longo período, enfrentando alta rotatividade e os ônus daí oriundos.
Assim sendo, os gestores públicos interessados em lançar projetos de infraestrutura precisam buscar alternativas fora de seus quadros de servidores. BNDES, CEF, BID e Banco Mundial (IFC) têm sido parceiros cada vez mais presentes na modelagem de projetos, mas o processo para sua contratação ainda se mostra bastante falho, dadas as lacunas legislativas decorrentes de um arcabouço normativo que não está preparado para este tipo de relação de parceria institucional.
A recente MP n.° 882/2019 representou avanço, permitindo a contratação do BNDES sem licitação para a estruturação de projetos e introduzindo o procedimento de colação para escolha de consultores, mas a sua não conversão tempestiva em lei veio como um balde de água fria.
Hoje, a forma de atuação do banco não é livre de críticas, como quando contrata seus consultores por pregão eletrônico, taxando de "comum” um serviço que não o é – e para o qual ele próprio pretende ser contratado pelos entes públicos sem licitação, dada a natureza especializada.
Além da dificuldade legal, todavia, há outras de ordem prática. Não é crível que todos os projetos de que o Brasil precisa, em todas as esferas de governo, possam ser estruturados por alguns poucos organismos, por mais competentes e especializados que sejam. Além disso, a atuação destas entidades envolve custos, algumas vezes de alta monta, o que pode afastar, principalmente, entes com maiores dificuldades orçamentárias – que, claro, não são poucos.
É nesse contexto que a Administração tem de buscar alternativas para a modelagem de projetos. Um desses meios, que se tornou bastante popular no país nos últimos anos, é o chamado Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI, que pode ser caracterizado como um chamamento público para obtenção de estudos necessários à elaboração do edital de licitação de determinado projeto de concessão/PPP. Cuida-se de alternativa fundada em interpretação do artigo 21 da Lei n.° 8.987/95, admitindo que a Administração especifique no edital de chamamento quais aspectos da modelagem de uma concessão/PPP espera receber da iniciativa privada, com a possibilidade de ressarcimento futuro dos autores dos estudos quando da realização de licitação e na medida do aproveitamento de cada material apresentado.
Diferentes razões levam a Administração a optar pelo PMI, sendo a principal delas a oportunidade de obter os elementos (ou grande parte deles) para a modelagem de determinada PPP/Concessão sem ônus financeiro imediato e direto, já que o pagamento pelos estudos ficará a cargo do vencedor de eventual licitação. Além disso, há o fato de que o PMI não traz para o gestor a obrigação de, posteriormente, efetivamente lançar o edital de concessão/PPP, já que a desistência do projeto não lhe acarreta obrigação de pagar pelos estudos obtidos ou qualquer outra vinculação.
Por outro lado, num ambiente ideal, o procedimento configuraria importante abertura da fase interna da licitação à participação do mercado, que subsidiaria a Administração com informações relevantes que teriam o condão de reduzir as assimetrias informacionais e de melhorar a qualidade dos instrumentos convocatórios.
Entretanto, o mecanismo não tem sido, até o momento, entendido como um sucesso. Na prática, diferentes problemas têm sido diagnosticados, ocasionados, em análise mais detida, pelos próprios elementos apontados como suas principais virtudes.
É possível constatar, de início, que o mais corriqueiro é a Administração autorizar mais de um agente privado a apresentar estudos no PMI, sem imposição de maiores requisitos para participação. Desse modo, os interessados competirão entre si, já que a sua remuneração futura dependerá da efetiva utilização de seus estudos na modelagem final do projeto.
Escolhido determinado estudo (ou mesmo parcela dele), a remuneração do agente privado ficará atrelada ao sucesso da licitação, já que imputado seu pagamento ao licitante vencedor. Ora, a efetiva assinatura de contrato, a possibilitar o ressarcimento, pode demorar anos ou sequer ocorrer, risco este especialmente relevante no Brasil, dada a elevadíssima taxa de mortalidade de projetos de infraestrutura.
Por estes dois fatores, o estudo deverá ser realizado sem que o particular tenha certeza do recebimento por sua atividade, o que subverte a lógica corriqueira do fornecimento de serviços, que é, obviamente, de garantia de remuneração se estes estiverem adequados. A situação de incerteza é agravada pelo fato de que as facilidades trazidas para a Administração pela possibilidade de condicionar o pagamento ao sucesso da licitação e pela ausência de obrigação quanto à sua efetiva realização têm levado diversos entes a banalizar o instrumento, conduzindo-o ao descrédito. Não são incomuns a revogação de PMIs lançados, o dispêndio de pouca ou nenhuma atenção à análise de seus resultados e o descarte de projetos que, de início, foram colocados para o mercado como de grande interesse da Administração.
Nesse contexto, sabe-se que dois tipos de agentes privados costumam participar dos PMIs: as consultorias, que têm por objeto, precisamente, a atuação no mercado de modelagem de projetos, e os potenciais licitantes, cuja participação neste procedimento prévio encontra respaldo no artigo 31 da Lei n.° 9.074/1995. Os potenciais licitantes, como precificam de antemão a internalização dos custos necessários à preparação de estudos próprios para subsidiar seu ingresso num futuro certame, possuem clara vantagem comparativa no PMI frente às consultorias, que não dispõem da mesma margem para enfrentar os riscos de seleção e remuneração.
De fato, este cenário abre as portas para um domínio dos potenciais licitantes nos PMIs, o que pode agravar a assimetria informacional, ao invés de reduzi-la. Há, muitas vezes, um desalinhamento de interesses entre os participantes e a Administração, uma vez que o particular poderá buscar, nos estudos apresentados, potencializar suas chances de ser escolhido em um futuro certame, ou mesmo maximizar sua expectativa de lucro após assinatura de contrato, o que conflita com o interesse público na prestação adequada do serviço e no bem-estar da sociedade pelo menor custo possível. Tal situação é agravada pela já mencionada falta de capacidade interna da Administração na modelagem de projetos, que reduz a possibilidade de filtragem de inconsistências nos materiais recebidos.
Tais distorções fazem com que o modelo seja rejeitado por boa parte dos especialistas, que não enxergam nele alternativa sólida para a estruturação de projetos. Acredita-se, porém, que, além de uma maior seriedade na seleção de projetos, no lançamento de PMIs e na análise dos estudos, duas medidas incorporadas à legislação do Estado de São Paulo poderiam mitigar esses vícios diagnosticados, sem a atitude radical de abandono do instrumento, que, certamente, enfrentaria grande resistência no setor público, dadas as já citadas vantagens.
Primeiramente, poderia ocorrer a escolha, antes da realização dos estudos, de um único autorizado a realizá-los, mediante critérios técnicos objetivos, como, por exemplo, experiências prévias. Isso levaria à redução do risco de seleção, podendo atrair atores mais robustos e ampliar a qualidade dos estudos. Também poderiam ser reduzidos, com esta providência, os grandes custos envolvidos na análise de diversos estudos pela Administração, muitas vezes sem utilidade prática, permitindo uma avaliação mais criteriosa dos materiais recebidos.
Por outro lado, também pode mostrar-se interessante a previsão de que a empresa autorizada não pode participar direta ou indiretamente (subsidiando um licitante) da futura licitação, o que mitigaria os riscos de conflitos de interesses. Apesar da autorização genérica da Lei Federal n.° 9.074/1995 à participação dos autores dos estudos na licitação, acredita-se que nada impeça os entes públicos de incluir tal previsão em seus próprios regulamentos sobre o tema e no edital do PMI, ao qual eventuais interessados apenas adeririam voluntariamente, concordando com as regras postas e abdicando expressamente da futura participação no certame.
Ambas as providências, apesar de não serem a panaceia ou mesmo aplicáveis, acriticamente, a qualquer caso, teriam potencial para incrementar a qualidade e a aderência ao interesse público dos estudos apresentados pelos particulares. Num cenário de carências gritantes do Poder Público, as qualidades do PMI não devem ser desprezadas, podendo ele constituir importante ferramenta na concretização de projetos de infraestrutura e de políticas públicas relevantes. A opção pelo simples abandono do procedimento, defendida por alguns com base na alta taxa de insucesso de projetos nele baseados, ignora a realidade interna de muitos entes públicos e a ausência de alternativas viáveis na prática.
Hoje, a Administração não pode prescindir do PMI, muito embora deva refletir sobre a seriedade dos projetos lançados e pensar em formas de dar maior segurança àqueles que se dispõem a colaborar com ela. Há diversos casos de sucesso na utilização deste meio que demonstram que é, sim, possível fazê-lo dar certo, desde que haja o devido engajamento e as correções de percurso necessárias.