Felipe Drumond

A última semana foi decisiva para a finalização de dois marcos legais essenciais para a modernização do Estado brasileiro: a <a href="https://www.jota.info/legislativo/senado-aprova-lei-nacional-de-modernizacao-dos-concursos-15082024">aprovação no Congresso</a> do Projeto de Lei de normas gerais dos concursos públicos e a <a href="https://www.jota.info/executivo/governo-define-diretrizes-para-novas-reestruturacoes-de-carreira-14082024">publicação da Portaria</a> sobre reestruturação de carreiras na Administração Pública federal.
Em uma agenda que tem tido poucos avanços na democracia brasileira, contando com raras medidas em temas estruturais, não é pouca coisa. O projeto de modernização dos concursos públicos (<a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9192148&amp;ts=1723843186961&amp;disposition=inline">PL 2258/2022</a>), encaminhado para sanção presidencial, traz segurança jurídica e possibilita maiores inovações no tema.
Já a <a href="https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-mgi-n-5.127-de-13-de-agosto-de-2024-578207466">Portaria 5.127/24</a> define critérios técnicos para estabelecimento de salários e padronização de carreiras, sendo aplicada a novos pedidos de reestruturação. Mais do que analisar os potenciais benefícios – algo já feito em publicações da última semana – é importante entender o que está por trás dessas medidas. Até porque, não se pode perder de vista que muitos outros avanços são necessários.
A começar, o PL dos Concursos Públicos tramitou no Congresso por quase 24 anos. Apresentado no Senado em 2000, esteve na casa revisora entre 2003 e 2022. Após uma relatoria inconclusiva, em 2019 o projeto foi assumido pelo deputado Luís Flávio Gomes (PSB-SP), congressista que fundou um dos maiores cursos preparatórios para concursos públicos.
Não é de se estranhar que o texto elaborado pelo parlamentar ficou conhecido nos corredores do Congresso como “estatuto do concurseiro”. Foi uma <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1846782&amp;filename=PRL+8+CCJC+%3D%3E+PL+252/2003">peça</a> com 120 artigos cujo foco eram os direitos do candidato e procedimentos burocráticos. Com a morte do parlamentar em 2020, o texto ficou novamente sem “dono”. Assim, em quase 20 anos na Câmara, o projeto apenas tinha atraído a atenção quando esteve vinculado a um interesse específico – de cursinhos e “concurseiros”.
A história finalmente tomou um rumo diferente em 2021. Ao ficar evidente que a PEC 32/2020 só poderia ter novos avanços após a eleição de 2022, os parlamentares da Frente Parlamentar Mista pela Reforma Administrativa buscaram projetos infraconstitucionais que possibilitariam avanços na agenda.
Um deles era o então PL que tratava dos concursos. Foi articulando para que o deputado Eduardo Cury (PSDB-SP) assumisse a relatoria do projeto, atraindo a atenção e fazendo com que gradativamente instituições e entidades de perfil diverso se envolvessem no debate. Junto da equipe do relator, a Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) desenvolveu o novo texto-base, reduzindo-o de 120 para 13 artigos. Essa nova versão foi o projeto base que, após diversas contribuições, originou o texto aprovado na última semana.
Daí para frente ocorreram atuações decisivas de atores diversos. O trabalho como um todo foi bastante direcionado pelos anseios críticos de uma ainda jovem academia brasileira do tema, destacando-se as produções pioneiras<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> dos professores Fernando Fontainha e Fernando Coelho
No terceiro setor e sociedade civil, a República.org e o Movimento Pessoas à Frente tiveram contribuições técnicas diretas e pressionaram para avanços na tramitação em momentos chave. O partido Novo atuou decisivamente para que a votação no plenário da Câmara ocorresse ainda em 2022.
Já no governo petista, mesmo com algumas resistências internas, nos últimos meses, o Executivo federal embarcou no texto. A negociação de ajustes pontuais junto ao relator final, o senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), concluiu seu apoio ao projeto. Entidades sindicais também acompanharam o processo, apresentando suas resistências, algumas das quais foram encampadas pelo governo.
É interessante então notar como diferentes espectros políticos, entidades, instituições sindicais, academia e sociedade civil conseguiram, em dois anos e meio<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, reviver e chegar em um novo texto com pretensões modernizantes. Esse pluralismo é um ingrediente novo na história da área, servindo como um potencial antídoto a dois grandes problemas que as tentativas de reformas frustradas enfrentaram.
Um, é o superdomínio e influência que grupos de interesse monocromáticos. O referido corporativismo. Outro, propostas que, por mais que tecnicamente pudessem ser bem desenhadas, foram feitas com pouca colaboração, fechadas em gabinetes, desconsiderando naturalmente alguns fatores chave. Características que aludem traços tecnocráticos.
Já a Portaria teve como chave um outro fator. Brevemente, sua história remota à apresentação da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2262083">PEC 32/2020</a>. O então governo afirmou que, após a tramitação da Emenda Constitucional apresentada, viriam outros projetos infraconstitucionais, dos quais um prioritário seria a reformulação do sistema de carreira federal.
Esse foco representa um dos principais incômodos que o corpo técnico permanente da área de pessoal do governo federal possui – as distorções entre o desenho e os salários das carreiras federais. Com a não finalização da tramitação da PEC 32, o momento para a apresentação desse projeto nunca ocorreu.
Buscando algum ganho nessa direção mesmo que menor, tais quadros iniciaram o trabalho em uma medida que não dependesse do Legislativo. Foi assim que ainda no último governo elaboraram uma proposta de normativo próprio do Executivo. A estratégia adotada era a de que a criação e reestruturação de carreiras deveria seguir padrões técnicos comuns, o que reduziria gradativamente as discrepâncias do sistema. A proposta, contudo, não foi apresentada pela última gestão do Ministério da Economia.
Como já tem ocorrido em ministérios centrais, a troca de governo não levou a alterações significativas no corpo técnico da área de pessoal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a><a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.  Talvez aí também observa-se a demonstração de um traço pluralista. A proposta de normativa foi então novamente apresentada à direção do ministério responsável, agora o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Passaram-se um ano e sete meses de governo até que viesse a ser promulgada como a <a href="https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-mgi-n-5.127-de-13-de-agosto-de-2024-578207466">Portaria 5.127/24</a>, período no qual o texto foi aprimorado, sofrendo também algumas resistências.
A resolução de problemas complexos, como o desenvolvimento econômico e preservação ambiental, apenas podem ser feitos com agendas de longo prazo. Contar com um corpo técnico permanente, qualificado e com um relativo nível de autonomia são fatores fundamentais para construção de soluções evolutivas e adaptáveis ao longo do tempo.
Esses componentes têm sido justamente relacionados à criação de capacidade para melhores resultados do Estado. Da mesma forma, a modernização da Administração Pública brasileira deve ser enxergada como um problema igualmente complexo. A área de política de pessoal do governo federal, central para o tema, foi historicamente desprivilegiada em recursos e quadros em relação seus pares, como a de estratégia e gestão, e, mais recentemente, a de tecnologia.
Nos últimos 20 anos já ocorreram períodos em que até mesmo o setor foi extinto. Recentemente, um <a href="https://publications.iadb.org/pt/diagnostico-institucional-do-servico-publico-na-america-latina-brasil-2024">estudo</a> que elaborei junto ao BID identificou uma maior capacidade de aprendizado e continuidade de políticas na área. Contudo, isso foi visto em temas menos estruturais e com menores resistências, como o de desenvolvimento e de desempenho. Ter perseguido o objetivo de modernizar o sistema de carreiras em meio a mudanças de possibilidades de ação e de governos, conseguindo ao final obter o primeiro marco normativo técnico no tema, é uma clara demonstração de aumento da maturidade do setor.
Cabe comentar que o pluralismo e a capacidade do Estado não são apenas componentes necessários para este tema. A sua importância vai muito além. Junto a outros elementos, a falta desses dois fatores tem sido relacionada à tendência de erosão dos Estados democráticos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
No que concerne a este debate, a eventual ausência histórica de uma sociedade que conhecesse e participasse de forma mais plural, e de uma maior capacidade do próprio Estado em áreas ligadas ao tema, pode ter limitado os avanços na modernização da Administração Pública brasileira. Que tais fatores, ao serem enxergados como fundamentais, possam ser valorizados e influenciem o curso das próximas ações nesta agenda da democracia brasileira.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Alguns exemplos: Fernando Fontainha, “Processos seletivos para a contratação de servidores públicos. Brasil, o país dos concursos?” (2014 - <a href="https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/13307093-3814-4800-b483-e66fbd14dea6/content">link</a>). Fernando de Souza Coelho e Isabela de Oliveira Menon, “A quantas anda a gestão de recursos humanos no setor público brasileiro? Um ensaio a partir das (dis)funções do processo de recrutamento e seleção – os concursos públicos” (2018 – <a href="https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/3497">link</a>).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A contar do início da relatoria do deputado Eduardo Cury (PSDB/SP).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cabe pontuar que efetivamente o novo governo poderia ter mudado tais quadros[3]
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ao menos em nível diretivo pode-se dizer que a capacidade no tema de foi elevada com a criação de duas novas secretariais além da de gestão de pessoal (uma dedicada a relações trabalhistas e outras somente a temas de Reforma).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Como por exemplo: Francis Fukuyama em “Why is democracy performing do poorly?” (2015) e Pietro Lorenzoni em “Jurisdição constitucional de crise: análise e proposta hermenêuticas para a jurisdição constitucional extraordinária brasileira” (2022 - <a href="https://repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/12688">link</a>).

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JOTA

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