Pedro Henrique Ramos Sales

O presente estudo visa abordar um tema que está na ordem do dia. Trata-se da cessão de direitos creditórios relacionados aos recebíveis inscritos em dívida ativa, matéria tradicionalmente conhecida como securitização da dívida pública. O momento é oportuno, dada a possibilidade iminente de apreciação de um Projeto sobre este tema pelo Plenário do Senado.  
A) A experiência paulista e a posição do TCU
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É importante esclarecer, logo de início, que a securitização da dívida ativa não envolve, necessariamente, a alienação dos créditos inscritos. É possível que ocorra a venda apenas dos direitos creditórios neles consubstanciados, conferindo-se um caráter de direito autônomo aos recebíveis. Essa cisão havida entre o crédito em si e o direito creditório dele proveniente permite a manutenção da titularidade do Poder Público e, assim, viabiliza que a atividade de cobrança continue nas mãos dos órgãos de representação judicial da Fazenda Pública. Entretanto, este não é um ponto pacífico. A representação jurídica da Fazenda Nacional tem manifestado contundente divergência especificamente com relação a este ponto. 
A PGFN[1] já teve a oportunidade de manifestar-se contrariamente aos Projetos que abordaram previamente a matéria da securitização. Suscitou-se, sobretudo, a impossibilidade de transmitir os instrumentos de cobrança do crédito inscrito em dívida ativa ao particular, bem como a indisponibilidade dos referidos valores. Este último aspecto, relativo à indisponibilidade, tornaria o crédito insuscetível de cessão.
A tese defendida pela PGFN é no sentido de que a medida viola os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, a repartição e vinculação de receitas tributárias, o dever de que a cobrança tributária seja procedida por órgãos específicos e o metaprincípio da indisponibilidade do interesse público. A violação à igualdade e à capacidade contributiva decorreria do tratamento diferenciado que seria dado a devedores em situações idênticas, o que seria posto em prática sem razões jurídicas que justificassem o discrímen.
Não se pode perder de vista, entretanto, que as judiciosas manifestações lançadas pela PGFN não apreciaram especificamente o mais recente e bem elaborado Projeto sobre o tema, qual seja, o PLS 204/16. A referida Proposição possui uma conformação distinta daquela que foi analisada nos pareceres que pugnaram pela inconstitucionalidade da securitização.
Existem, a rigor, dois modelos básicos adotados nos programas de securitização. Um primeiro formato envolve a criação de uma sociedade de propósitos específicos (SPE) que adquire os créditos e, com lastro neles, emite debêntures que serão diretamente negociadas com os particulares. A empresa estatal emite a debênture negociada e o Estado emite uma debênture subordinada, que representa tão somente a posição de garante do ente cedente. Neste caso, há uma securitização propriamente dita. Os créditos são convertidos em papéis e, posteriormente, negociados no mercado de valores mobiliários.
A dinâmica delineada foi empregada no Estado de São Paulo por intermédio da Lei estadual nº 13.723/09. Deve ser registrado, contudo, que este modelo foi amplamente questionado pelo Tribunal de Contas da União, que considerou haver uma operação de crédito baseada no compromisso financeiro assumido pelo ente cedente.  A conclusão da Egrégia Corte de Contas, ao analisar a Proposição apontada, foi no sentido de que as operações com debêntures lastreadas em parcelamento de Dívidas Ativas feita pelos contribuintes por meio da cessão do fluxo financeiro têm a mesma natureza de um FIDC – Fundo de Investimento em Direitos Creditórios. Os FIDCs já foram classificados pelo TCU como operações de crédito.
A rigor do entendimento exposto, a posição do TCU na Ata 01/2015 é de que a emissão de debêntures por empresas estatais com lastro em cessão de direitos dos parcelamentos dos contribuintes pelas Prefeituras também é operação de crédito por ARO – Antecipação de Receitas Orçamentárias - claramente tipificada na Lei de Responsabilidade Fiscal. À luz de tal fato, as vendas não poderiam ser realizadas sem autorização do Ministério da Fazenda e do Senado Federal. O TCU entendeu que as operações de debêntures negociáveis e subordinadas são uma tentativa evidente de descaracterizar e mascarar a natureza de operação de crédito e, com isso, tentar dispensar o exame dos órgãos de controle quanto à adequação da operação ao limite de endividamento do ente federal.
Cumpre asseverar, a despeito do alegado pela Corte de Contas, que o Senado Federal alterou a Resolução 43/SF para permitir que as estruturas de Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), com base em recebíveis originados pelo parcelamento de dívida ativa, não sejam consideradas e enquadradas como operação de crédito. Firme no mesmo propósito, o PLS 204/16 trouxe um dispositivo específico que afasta o caráter de operação de crédito do negócio[2]. No Relatório do PLS 204/16, lido em Plenário, o Senador Paulo Bauer foi enfático quanto à ausência de garantia por parte dos entes cedentes. Reitera-se que a caução concedida, via debênture subordinada, era o ponto central para confirmar a assunção do compromisso financeiro caracterizador da operação de crédito.
B) O PLS 204/16: (anti)Juridicidade e (in)conveniência
Em resposta aos questionamentos ocorridos no Tribunal de Contas da União, surge uma segunda geração de Projetos de securitização da dívida. Esta nova geração já nasce blindada contra alguns argumentos que foram articulados contra os Projetos anteriores. No modelo atual, reproduzido pelo PLS 204/16, não há conversão da dívida em papéis. Não existe uma empresa estatal criada sob a forma de Sociedade de Propósitos Específicos que vai adquirir os créditos e negociar os títulos neles lastreados. E como não há uma emissão de debênture negocial, não há a figura da debênture subordinada, o que elimina, portanto, a condição de garante do cedente. 
Trata-se de um modelo mais simples e eficiente. O Estado aliena um crédito futuro e já reconhecido (parcelamentos) sob deságio. Em seguida, recebe do contribuinte devedor, e, posteriormente, repassa a importância ao cessionário que tiver onerosamente adquirido a cessão de direitos creditórios. Neste formato, que retoma a essência original do negócio, o risco de inadimplemento é transmitido ao cessionário. Retorna-se à ideia matriz do negócio, segundo a qual o deságio remunera o risco e não há caução por parte do cedente.
A primeira dificuldade que temos ao analisar a ideia central do Projeto relaciona-se com a questão da vinculação da receita de impostos. Temos sérias dúvidas quanto à possibilidade da Proposição, assim que publicada, subsistir a um crivo de constitucionalidade em uma ação de controle concentrado. Se não bastasse a tormentosa questão relacionada à indisponibilidade dos créditos inscritos na dívida ativa – argumento exaustivamente articulado pela PGFN em seus pareceres – a questão relacionada à vinculação da receita de impostos parece não ter uma resposta satisfatória.
Em que pese o Projeto permita a alienação de ativos não tributários, a parcela mais expressiva do estoque de parcelamentos (obviamente) remonta aos créditos derivados de tributos. No âmbito dos Estados, o acervo de recebíveis é praticamente, em sua integralidade, dívidas de ICMS. Pois bem. Ao alienar recebíveis futuros, oriundos de um parcelamento de débitos de ICMS, o cedente confere àquela importância de imposto devido uma destinação, qual seja a remessa imediata ao comprador da cessão de direitos creditórios. Aquele crédito parcelado deixa de ser um ativo desvinculado - que iria para o caixa único do tesouro sem nenhum compromisso prévio – e passa a ser um dinheiro “carimbado” e com destinação específica. Ora, os recebíveis alienados serão encaminhados ao credor do ente cedente.
No tocante a destinação da receita de impostos, manifestamente vedada pela Constituição Federal, cumpre observarmos outro detalhe crucial. O próprio recurso recebido com a alienação possui destinação específica, dada à obrigatoriedade de aporte em fundos de previdência (70%) e investimentos (30%). É o que se observa da redação do art. 39-A, § 6º, o qual pretende-se inserir na Lei nº 4.320/64.  Existe vinculação tanto com relação ao dinheiro que “entra” - que deve ser aplicado nos montantes e finalidades descritas na norma - quanto ao dinheiro que “sai” - especificamente destinado a remunerar o cessionário. Curiosamente, o Projeto não aborda a questão e não traz nenhuma solução para este problema.
Eventuais defensores da Proposição poderiam dizer: a questão se resolve encarando-se a operação como uma ARO (antecipação de receita orçamentária). Não é má ideia, já que a ARO possui autorização específica para vincular receita de impostos. Trata-se de uma operação que se enquadra nas ressalvas de que trata o art. 167, inciso IV, da Constituição Federal. Entretanto, se encararmos a securitização como uma ARO, incorreremos em dois problemas: (i) voltaremos a cometer as falhas apontadas pelo TCU, quando o órgão afirmara, anteriormente, que a securitização é uma operação de crédito (ARO) mascarada para fugir ao controle do endividamento e (ii) teríamos de aceitar que um determinado Chefe do Poder Executivo teria ingerência sobre créditos tributários futuros que venceriam, eventualmente, no mandato de seu sucessor.
Notoriamente, com relação ao segundo ponto destacado, é delicado aceitar que um governador possa queimar um estoque de créditos que integraria o caixa do governo seguinte. E esta conclusão não se altera pela ocorrência do fato gerador ser pretérita ao início do mandato do sucessor prejudicado. Sob uma perspectiva que admita a ocorrência de uma ARO e, tendo em vista que o parcelamento é uma modalidade de novação, os vencimentos das parcelas são futuros e passam a pertencer a exercícios financeiros eventualmente compreendidos no mandato do próximo Chefe do Poder Executivo. Esse fenômeno, na prática, poderia ensejar uma venda predatória de ativos com vias a dificultar o desempenho do mandato de um sucessor rival. É certo ser este um aspecto baseado em prevenir condutas pouco republicanas, até então idealizadas em um cenário hipotético, mas que ocorrem na prática e não podem ser desconsideradas.
É importante registrar que a preocupação dispensada pelo Senado Federal com a possibilidade de antecipar receitas para além da extensão do mandato do Chefe do Poder Executivo não é inédita. A referida Casa Congressual, de forma atenciosa e prudente, restringiu drasticamente a possibilidade de antecipação de pagamentos futuros em favor dos entes subnacionais a título de royalties e demais compensações financeiras, obstruindo a negociação de recebíveis cujos vencimentos ocorram além da envergadura do mandato do Chefe do Poder Executivo do ente cedente. Trata-se do art.5º, inciso VI alínea “a”, da Resolução nº 43, de 2001.
Ora, se existe um dispositivo que restringe a antecipação para recebíveis de receitas originárias, não há razão para não estender a referida limitação às receitas derivadas. Em suma, os recebíveis tributários deveriam enquadrar-se no mesmo molde de restrição aplicável aos royalties. Trata-se de medida salutar, antenada com a possibilidade de má utilização de instrumento que é altamente suscetível aos influxos da política.
  Por fim, gostaríamos de enaltecer o ponto que consideramos mais determinante. A ausência de vantagem financeira do negócio. Ainda que fossem superados todos os entraves jurídicos apontados até agora, entendemos que o negócio não deveria ser celebrado na medida em que é manifestamente desvantajoso. Deixando o direito de lado para fazer as contas, lamentavelmente, os resultados que projetamos não são nada atraentes. Sobretudo se estivermos falando de tributos partilháveis.
Tomemos, como exemplo, um estado fictício que possui créditos de ICMS em desfavor de um determinado estabelecimento varejista que atua no ramo de peças automobilísticas. O empreendimento tinha um débito junto à fazenda estadual e aderiu a um programa de parcelamento. A dívida do contribuinte, devidamente novada, deveria ser paga em cinquenta prestações de dois mil reais. Dessa forma, a expectativa do tesouro deste estado fictício é agregar aos cofres locais o montante de cem mil reais em cinquenta meses. É sabido que um quarto deste valor deve ser repassado aos municípios. Logo, a expetativa de arrecadação efetiva é de setenta e cinco mil reais.
Aprovado o programa de securitização, o estado poderá antecipar o valor a receber, o que ocorrerá sob forte deságio. Claro, para justificar o abandono de investimento em renda fixa com uma taxa básica de juros de 14,25%, sem nenhum risco, o investidor não vai querer comprar o risco do inadimplemento pagando um preço alto. Vale lembrar a máxima de que o banco nunca perde.
No intuito de ilustrar a dimensão do prejuízo, imaginemos uma operação levada a efeito com deságio de 50%[3]. É evidente que estamos tratando de uma perda bastante substancial, mas não é só isso - diga-se de passagem. Cabe lembrar aqui a ocorrência de um segundo prejuízo. De acordo com o que dispõe o Projeto, o ente cedente não pode prejudicar os demais entes subnacionais que receberiam a partilha do crédito cedido[4]. Em bom português: quem cede os direitos creditórios assume o deságio sozinho. A regra é, em alguma medida, salutar para não vulnerar ainda mais as finanças dos municípios brasileiros. Salutar, mas cruel para fins de viabilidade do negócio.
O estado fictício que receberia cem mil reais a título de ICMS parcelado iria apropriar-se, efetivamente, de setenta e cinco mil reais. Entretanto, após ceder o crédito com deságio de 50%, vai receber apenas cinquenta mil reais. Não se pode perder de vista que apenas vinte e cinco mil reais serão integrados ao tesouro local, dado o dever legal do ente cedente em proceder ao repasse integral da transferência constitucional devida às municipalidades. Partir de uma expectativa de apropriação de setenta e cinco mil reais e lograr arrecadar apenas vinte e cinco mil é uma realidade dura.
Matematicamente, ao menos com relação aos tributos partilháveis, demonstramos que a “venda” dos ativos a receber é quase uma entrega desesperada. Isso porque o ente perde duas vezes: a primeira no deságio e a segunda no dever de promover o repasse cheio da transferência. Após verificar que a cessão terá os efeitos próprios de uma dilapidação, vamos examinar a natureza daquilo que será vendido a preços módicos.
O alvo do programa de securitização, nos termos do PLS 204/16, será o estoque de créditos inscritos em dívida ativa objeto de parcelamento judicial e administrativo. Ora, antes de vender alguma coisa, importa saber a qualidade do que se vende. E aqui mais uma surpresa: a proposta é vender o que há de bom no estoque de recebíveis, uma vez que a taxa de inadimplemento de parcelamentos é baixa. Trata-se de um crédito que é recuperado em grande medida. Essa é uma conclusão óbvia, já que o inadimplemento do parcelamento gera o vencimento antecipado da dívida e a perda das benesses concedidas.
Não bastasse a “entrega” do valor negociado a preço vil, a proposta ainda trata da venda de crédito bom e não de créditos podres, estes assim chamados quando se mostram passíveis de enquadramento em hipóteses de remota possibilidade de recuperação[5]. Por fim, registramos que o site do Senado aponta que 1631 internautas opinaram contra a Proposição e apenas 16 mostraram-se favoráveis[6]. Os números são expressivos e fazem valer o brocardo A voz do povo é a voz de Deus.
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[1] Segundo o órgão, diversas propostas neste sentido foram apresentadas desde 1999. Em todas as ocasiões, a PGFN entendeu que os projetos padeciam de inconstitucionalidades, conforme se observam nos Pareceres n.º 120/2000, 1.052/2001, 15/2004 e 683/2005. O entendimento fazendário expedido em face das propostas atuais consta no Parecer/PGFN/CDA Nº 1505/2015. 
[2] O § 2º do art. 39-A, inserido pelo art. 1º da proposição, esclarece que a alienação de créditos nos moldes referidos não caracteriza operação de crédito nos termos da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF). 
[3] Trabalharemos com este patamar por dois motivos: é um montante razoável para tornar atraente o investimento e representa a média do deságio que foi praticado em Projetos anteriores. 
[4] O Art. 39 –A, § 4º,dispões que A cessão de direitos creditórios não poderá abranger percentuais do crédito que, por força de regras constitucionais de repartição, pertenceriam a outros entes da Federação e a fundos constitucionais.
[5] No mesmo sentido da nossa crítica, enaltecendo a desvantagem de vender um crédito “nobre” para os cofres públicos, confira-se a entrevista da Procuradora da Fazenda Nacional, Ivelize Almeida. A entrevista revela que a PGFN é manifestamente contrária à venda de ativos com alto índice de recuperabilidade. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/07/1794585-governo-deveria-vender-so-osso-da-divida-diz-procuradora-da-fazenda.shtml 
[6] Resultado apurado em  05/10/2016 às 16h52min. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723

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JOTA

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