Rodrigo Tomiello da Silva

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

Iniciamos admitindo uma premissa para a construção de nossa proposta: o setor de combustíveis é de relevância nacional. A greve dos caminhoneiros em 2018, acompanhada de discussões pesadas entre Palácio do Planalto e governadores de estados sobre os responsáveis pela carga tributária sobre combustíveis, demonstra essa relevância.
No campo normativo, exemplos não faltam: o art. 1°, §1°, da Lei n° 9.847/99 aponta a utilidade pública como determinante na construção da política energética nacional; a Lei 7.783/89, que disciplina o exercício do direito de greve, estampa a atividade essencial no seu art. 10, I e, por fim, o Decreto 10.282/20 manteve a comercialização de combustíveis como atividade essencial durante a pandemia, possibilitando a continuidade de seu funcionamento diante da pandemia de COVID19.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>No entanto, a tributação incidente em tão importante setor parece desconsiderar a relevância de matriz constitucional da política energética nacional e o sentido de federação.
Nesse sentido, o ICMS é a causa dos maiores problemas, que vão desde a sonegação (com as patologias concorrenciais decorrentes), dificuldade de fiscalização, previsibilidade orçamentária, altos custos para o cumprimento de obrigações instrumentais, até a dificuldade na compreensão pública do custo do tributo e esgarçamento do tecido federativo pela guerra fiscal.
Esse cenário, vale dizer, é um problema para todos os que atuam conforme a lei – e é uma tremenda oportunidade de atuação indevida por aqueles contribuintes que se valem de práticas vis e contumácia inadimplência para ganharem diferencial competitivo ilícito.
E se queremos, de fato, solucionar esse problema gravíssimo, não será com o doce xarope das fantasias com pretensões eleitoreiras ou emendas fantasiosas. Será com o amargor das medidas técnicas pensadas para fornecer previsibilidade e segurança jurídica, com pensamento a longo prazo.
O objetivo destas linhas é mostrar o quanto que a aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 16/2021, embora desagrade parte da classe política, é um instrumento extremamente útil para quem deseja um ambiente de tributação sobre combustíveis com maior segurança jurídica e menos espaço a malfeitos públicos e privados.
E, para que esse ponto fique claro, é preciso dar um passo atrás e falar um pouco sobre o atual sistema de tributação dos combustíveis e os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016, a respeito da não definitividade da substituição tributária, sobre o setor.
Atualmente, Estados e Distrito Federal podem fixar alíquotas internas de ICMS incidente sobre os combustíveis e prever regras diferenciadas para cada um deles, mas o fato é que hoje a maior parte do setor está submetida à sistemática da substituição tributária (ST).
Por excelência, se há de falar em substituição tributária quando em um cenário de tributação indireta e plurifásica, pois essa técnica arrecadatória significa, via de regra, a transferência de todo o ônus tributário de uma cadeia de tributação, que originalmente era de cada um dos participantes, a apenas um deles.
No mercado de combustíveis, embora haja fatos geradores de ICMS a cada venda (plurifasia) e repasse de ônus financeiro com destaque em nota (indireto), com a substituição tributária se elegeu um único contribuinte – no caso, em regra, o produtor/importador – como responsável pelo recolhimento do ICMS devido sobre uma base de cálculo presumida.
Não há uma regra natural abstrata e clara sobre qual o melhor modelo de substituição tributária, e pelo mais evidente dos motivos: se a ST se presta a combater a sonegação e incrementar a eficiência fiscal, é natural que ela recaia sobre o elo da cadeia onde haja menos participantes – no caso de combustíveis derivados de petróleo no Brasil, em que observamos poucos produtores, muitas distribuidoras e milhares de postos revendedores, é natural entendermos que a substituição recaia sobre o produtor e, portanto, se dê por antecipação.
A finalidade precípua, como se observa, é racionalizar e incrementar a eficiência e segurança do ente tributante quanto à fiscalização e a arrecadação de determinado tributo plurifásico.
<blockquote class="jota-article__eye">Não houvesse a substituição, o Fisco precisaria atuar perante cada elo da cadeia tributária, o que aumentaria os riscos de sonegação à luz da limitação da máquina pública em fiscalizar o adequado cumprimento das obrigações fiscais por cada contribuinte.</blockquote>
Atento a esse aspecto, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 1851/AL, estabeleceu que a base de cálculo presumida deveria ter caráter definitivo, sob pena de esvaziamento dos fundamentos de existência e uso da própria substituição tributária. É dizer, ainda que aquela presunção não se verificasse no valor previsto, nada poderia fazer o contribuinte (pedir restituição) nem o Fisco (pedir a complementação).
Ainda que questionamentos pudessem ser levantados contra essa decisão, fato é que ela trazia um pouco de estabilidade à já conturbada tributação da cadeia de combustíveis.
Ocorre que, em 2016, julgando o RE n° 593.849/MG e as ADIs 2.675/PE e 2.777/SP, a Corte Suprema promoveu revisão de sua jurisprudência e decidiu de forma diametralmente oposta à anteriormente firmada, fixando o Tema de Repercussão Geral n° 201: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.
Na visão do STF, os aspectos da eficiência e praticidade da fiscalização, utilizados para firmar o precedente de 2002, não devem preponderar “na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS”; bem como não se pode “transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta”.
Além disso, entenderam os Ministros que, em 2016, os Fiscos estaduais, diferentemente de 2002, já teriam disponível toda a tecnologia e conhecimento necessários realizar a fiscalização do ICMS devido em todas as operações de circulação, medindo com facilidade as diferenças entre os valores reais e os presumidos.
E por esses motivos, entre outros, assentou a Corte Suprema que aquela base de cálculo presumida não é definitiva e cede à que se verificar na realidade, tendo o contribuinte o direito de pedir a restituição.
Se à primeira vista pode parecer que a decisão prima pelo senso de justiça e pela mutação constitucional no recolhimento de tributos, acabou por implodir o propósito da substituição tributária, já que, agora, o Fisco terá que, entre outros, fiscalizar a cadeia de combustíveis para verificar a base de cálculo efetiva.
A dificuldade se apresenta, no ponto, quando se investigam mais a fundo as reais condições normativas e administrativas dos entes federativos para fiscalizarem e procederem às efetivas devoluções quando os fatos geradores reais ocorrem a menor que os presumidos. Em 2021, a maioria dos Fiscos ainda não sabe como normatizar ou atuar nesses casos de pedidos de restituição.
As UFs mais avançadas nessa organização são aquelas que se aproveitaram para, da mesma forma, promover a cobrança de complemento caso o fato gerador real tenha ocorrido quantitativamente superior ao presumido.
Além disso, ao afastar a definitividade da base de cálculo presumida, o STF acabou por criar uma miríade de dúvidas, sem qualquer solução até o momento, tais como:
(i) o STF, ao citar apenas o direito a restituição na sua tese de repercussão geral, permite aos substituídos buscarem em juízo algum tipo de ordem para submeter os substitutos ou os substituídos anteriores a vendas sem aplicação do regime de substituição tributária, isto é, praticando apenas a tributação e o repasse de ônus com base no valor da venda efetiva?
(ii) um pedido de restituição pode ser operado apenas contra o Fisco ou poderá ser requerida restituição ao substituto tributário, agente central de arrecadação em cenário de tributação por substituição progressiva e câmara de compensação? Haveria legitimidade processual passiva senão no Fisco para cobrança dos referidos valores?
(iii) o STF, ao citar apenas o direito de restituição na sua tese de repercussão geral, também autoriza o direito/dever de o Fisco exigir o complemento de tributo quando o fato gerador real ocorre a maior que o presumido (RE 1.097.998/MG) ou esse direito assiste apenas ao contribuinte, já que a ST é uma opção da UF? (iii.1) se constitucionalmente legítima cobrança de complemento, é necessária lei formal da UF para o prever, haja vista o princípio da legalidade – e correspondente observância da regra de anterioridade –, ou a mera atuação administrativa de lançamento complementar seria possível?
(iv) é necessária norma específica da UF para viabilizar a restituição? Como se daria o direito à restituição caso inexista norma estadual no caso do ICMS (basta o art. 10, LC nº 87/96)? Eventual norma estadual/distrital pode edificar óbices ou impor requisitos além daqueles previstos no art. 10 da LC nº 87/96 para restituição do ICMS ST recolhido a maior que o real? Como se daria o direito à restituição de outros tributos sujeitos a ST caso inexista norma da UF (basta o direito de petição administrativa com base direta no art. 150, §7º, CR)?
(v) o pagamento da repetição pelo Fisco pode estar condicionado ao pagamento dos complementos derivados dos casos em que o FG real ocorrer a maior que o presumido? Pode a UF normatizar impedindo a restituição e impondo ao contribuinte uma compensação com outros débitos – como os de complementos? Isso violaria o “imediata e preferencial” no art. 150, §7º?
(vi) o art. 166 do CTN trata do direito à restituição no caso de tributos indiretos. Sua norma aplica-se à hipótese do ICMS-ST ou não (AgRg no REsp 630.966/RS e EDcl no AgInt no REsp 1.426.465/PR)? (vi.1) se sim (REsp 1.250.232/PR e REsp 1.826.049/AC), qual seria uma forma segura de o contribuinte substituído o operacionalizar e o evidenciar nas operações futuras a seus adquirentes? (vi.2) a tomada de créditos integrais (pela BC presumida, em vez da real) por parte do adquirente inviabiliza a repetição ao substituído alienante? (vi.3) criar condições e demonstrações objetivas (destaque em nota?) e prospectivas quanto à aplicação do art. 166 do CTN pode comprometer todo o estoque de créditos de ICMS referentes a períodos passados?
(vii) qual seria um modo seguro, especialmente em UFs que também prevejam o complemento e condições de compensação entre restituição e complemento, para promover a mais adequada escrituração contábil dessas grandezas?
Teses – tanto absurdas quanto razoáveis – podem ser formuladas para a resposta a todos os questionamentos acima, mas a realidade é que a ausência de um posicionamento linear vinculante faz com que essas dúvidas (entre outras), oriundas das lacunas ainda existentes, gerem imensos problemas práticos para os contribuintes, para as UFs e até para o Judiciário.
Essa imensa gama de incertezas entre o direito à restituição e sua materialização fazem com que no cenário atual as empresas busquem, muitas vezes de modo desordenado, o judiciário, promovendo as mais diversas pretensões em face não apenas das UFs, mas por vezes de substitutos ou substituídos intermediários.
Da mesma forma, a insegurança jurídica faz com que, no caso do ICMS, as UFs demorem a regulamentar o tema e, mesmo quando o fazem, não procedam efetivamente às restituições devidas.
Enfim, como se observa, as dificuldades de tributação nesse mercado não nasceram apenas em 2016 com o fim da definitividade do ICMS-ST. Elas apenas se maximizaram, substancialmente.
É que a falta de definitividade, quando somada ao cenário preexistente de disparidades e cargas entre UFs, posturas de guerra fiscal sem aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal e compadrios políticos na concessão de benefícios despropositados, alcança proporções muito destrutivas no setor de combustíveis, devido à grande disparidade entre as alíquotas de ICMS nas UFs, eminentemente para os produtos etanol hidratado e gasolina C.
Desde 2016, portanto, identifica-se incremento substancial na concorrência desleal, seja por malfeitos de contribuintes que constituem verdadeiras quadrilhas para simulação de vendas interestaduais, adulteração de produto ou dívida fiscal contumaz, seja por má atuação dos próprios entes tributantes, que ora se omitem no combate a devedores contumazes ora lhes concedem benefícios de modo formalmente ilegítimo e materialmente inexplicável.
Caso não haja uma alteração em nível constitucional na tributação sobre consumo, a resposta eficiente em um quadro no qual haja um ICMS de competência estadual/distrital se encontra, decerto, na concentração monofásica de tributo (incidência em apenas um elo), no alinhamento de cargas fiscais e na limitação à concessão de benefícios fiscais por compadrio.
Para os combustíveis, a Constituição da República, após a Emenda nº 33/2001, permite no art. 155, §2º, XII, h c/c §4º, que se institua um ICMS monofásico. Como se trata de um tributo sobre circulação de mercadoria, porém, em nosso ver a monofasia só se mostra verdadeira caso (i) não haja diferença de carga a depender da origem ou do destino dessa mercadoria (obliterando assim uma hipótese primária de restituição/complemento) e (ii) se não permitirmos a manipulação unilateral de dada UF na concessão de descontos ou benefícios fiscais de qualquer natureza.
Além da incidência monofásica, outro ponto importante é a fixação de alíquota ad rem, isto é, um valor fixo por unidade de medida do produto (por exemplo, R$ 3,00 por litro de combustível). Atualmente, as alíquotas são ad valorem, ou seja, aplica-se um percentual sobre um valor fixado em moeda (por exemplo, 25% sobre R$ 5,00) e, pior, esses valores são modificados, em média, a cada quinze dias, de acordo com a MVA (Margem de Valor Agregado) ou PMPF (Preço Médio Ponderado Final) fixado por cada UF.
Portanto, para combustíveis, a tributação de ICMS monofásica e ad rem nos produtores/importadores significaria a carga integral e única de tributo no primeiro elo da cadeia, a viabilidade de controle de valor de tributo por movimentação e volume de produto, sendo assim indiferentes os demais participantes da cadeia e as UFs de origem ou de destino.
Derivariam disso a preservação de arrecadação, uma maior facilidade de fiscalização por volume, uma melhor previsibilidade e estabilidade orçamentária, a redução de obrigações tributárias instrumentais por parte dos participantes do segmento e, com a consequente desoneração de outros elos além do primeiro, minguam as oportunidades de sonegação fiscal e gera-se maior facilidade de responsabilização e cobrança.
Nessa linha, o PLP 16/2021, que nos parece um elemento essencial ao alcance de mais segurança jurídica no segmento de combustíveis, visa exatamente a instituir o ICMS monofásico em âmbito nacional para os combustíveis e lubrificantes a que alude seu art. 2º.
No projeto, há ainda previsão de alíquotas uniformes e específicas (ad rem) por meio de Convênio CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária) – o que, desde já, diga-se, revela-se constitucional, já que este seria um ato conjunto de todas as UFs em âmbito nacional.
Assim, por endereçar alguns dos principais pontos em um mercado extremamente sensível e já se tratar de um projeto em trâmite na Câmara dos Deputados, acreditamos que sua aprovação é medida essencial caso se deseje realmente combater as mazelas fiscais no segmento de combustíveis.
As demais medidas normativas em discussão, ora não endereçam a questão, ora tratam de aspectos apenas temporários ou satelitários do problema, não oferecendo uma solução efetiva.
Aprendamos, pois, com a lição de Cervantes em seu Dom Quixote: "Daí se conclui que só as cabeças temerárias e sem juízo intentam coisas, das quais se sabe de antemão que só nos podem advir mais danos que proveitos; e ainda é pior quando intentamos aquelas a que não somos forçados, nem compelidos, e nas quais já se descobre, de muito longe, que o intentá-las é loucura patente."
<div id="" role=""></div>
<script type=""text/javascript"" src=""https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js""></script> 
<script type=""text/javascript""> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>

ICMS gasolina

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Não definitividade da substituição tributária por antecipação: 5 anos depois e somam-se novos problemas

PLP 16/2021: Monofasia Ad Rem como remédio eficiente para ICMS sobre combustíveis

Não definitividade da substituição tributária por antecipação: 5 anos depois e somam-se novos problemas